VÍDEO: MURILO CAMPANHA CONTA ITATINGA

O psicanalista Murilo Campanha fala sobre Itatinga, um dos maiores bairros de prostituição da América Latina, onde ele tem seu consultório.

O nadador

Uma crônica de Hugo Ciavatta.

Ainda que as bolachas falassem

Crônica de Fábio Accardo sobre infância e imaginação

Ousemos tocar estrelas

Uma reflexão de Thiago Aoki.

Entre o amarelo e o vermelho

Uma crônica de Hugo Ciavatta

O homem cordial vinhedense

A classe média vai ao barbeiro. Uma crônica de Caio Moretto.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

O Caubói e o Cão...

. . Por Thiago Aoki, com 4 comentários

A nova do dia é que o governo do Novo México está estudando um possível perdão a “Billy the Kid”, mais de 130 anos depois de sua morte. Se a discussão permaneceu após tanto tempo, isso se deve principalmente pela grande admiração que ele possuía – e possui - por parte da população americana mais pobre, que, inclusive, o ajudou em uma de suas lendárias fugas, quando fora condenado ao enforcamento. Seu primeiro grande ato de coragem fora comandar uma quadrilha cujo objetivo, cumprido com êxito, era o de exterminar uma gangue ligada a grandes proprietários rurais para vingar um rancheiro amigo seu. Isso com míseros 19 anos, daí o “the kid”. O fascínio do povo era tanto que, em uma das cartas que escreveu ao governador exigindo liberdade, o “gângster” reclamou que policiais estariam cobrando ingresso para que as pessoas visitassem sua cela.

Dizer se é justo ou não o perdão a “Billy the Kid” é a mesma tolice que discutir se Capitu traiu ou não Bentinho. Pois tanto não é essa a questão mais importante para a lenda do caubói americano, como também não está na confirmação (ou não) do adultério o sublime da obra machadiana. Mesmo assim, o fato de a discussão estar em pauta, aguçou minha curiosidade. Perdoado ou não, Billy tornou-se livro, filme, música, bate-papo de esquina e incrustou-se no imaginário popular global. Ao ler a reportagem, lembrei-me que eu costumava chamar meu “feroz” poodle de “Billy the Killer”, fazendo um trocadilho com a alcunha do caubói e dando uma conotação de valentia ao pequenino cão, o que causava graça aos que presenciavam a cena. Eu particularmente nada sabia de concreto sobre a biografia do maior mito do velho oeste norte-americano, mas sabe-se lá porque seus valores estavam em minha cabeça.

Talvez porque a história de Billy – o caubói, não o cachorro – esteja intimamente ligado a temas universais, como vingança, injustiça, corrupção, lealdade e a morte. Por suas ações foras da lei, que deixavam os bons costumes de lado para assumir o compromisso com um valor ou causa justificáveis, pode ser designado como um típico anti-herói. É, neste sentido, um microcosmo de Meneghetti, o bom ladrão paulistano, e talvez um sucessor de Robin Hood, que roubava dos ricos para dar aos pobres. Ou quem sabe não tenha influenciado Zorro, que transforma o Sargento Garcia em vilão pitoresco. Há que se lembrar também da figura de Lampião, o rei do cangaço brasileiro.

Enfim, Billy - o caubói e o cachorro - cumpriu sua missão na terra, ao mostrar que a realidade estrita não pode impedir o alcance de nossas ações. Não é preciso estar dentro dos padrões morais e normas vigentes para se fazer o justo. Não é preciso ser grande para ser valente. Talvez por isso minha admiração...

Por ambos.

---

Billy the Kid, o caubói, morreu ao ser atingido por tiros à queima roupa em 1881, pelo sargento Pat Garrett, o mesmo que escreveu sua biografia. Já Billy the Killer, o cão, morreu em 2005, vítima daquelas doenças de carrapatos, que nada puderam escrever sobre o temível cão.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Olhares Cotidianos

. . Por Unknown, com 5 comentários

"Nada me impressionou mais no relato que li, certa vez, sobre os últimos dias da Segunda Guerra Mundial na Europa do que saber que, enquanto as tropas russas entravam em Berlim, em algumas zonas da cidade o leite continuava a ser entregue, os carteiros continuavam a fazer suas rondas, a vida "normal" seguia seu curso. Não sei se achei isso admirável - o poder de resistência ao caos do banal e do cotidiano - ou um exemplo assustador da rotina desconsiderando a História. Viver "normalmente" num mundo em conflito permanente entre riqueza e miséria, privilégio e exclusão, progresso e atraso é a experiência comum de todo o mundo. Isso inclui os desenvolvidos e os sub, inclui todos sem exceção - a não ser, talvez, os escandinavos. Mas mantemos nossas rotinas mesmo sabendo dos bilhões de despossuídos da Terra, incluindo os que vemos pelas nossas janelas. Fazer o quê? Sentimos muito, nos indignamos, votamos em quem promete melhorar a situação pelo menos na nossa vizinhança, mas nossas vidas têm que seguir seu curso. Como em Berlim, o conflito está acontecendo longe do nosso cotidiano. Mas às vezes - como no Rio -, o conflito invade o cotidiano. A rotina é abalroada pela História. Nosso dia a dia não é mais refúgio nem álibi e somos obrigados a enfrentar a realidade."
(Luis Fernando Verissimo, A rotina e a História. O Estado de São Paulo, 9 de dezembro de 2010)

O dia mal amanheceu e, já de pé, é preciso tomar o café rapidamente antes que um possível atraso no trânsito atrase ainda mais o planejamento das visitas. É só mais um quarto indiferenciado, igual a tantos outros no edifício, num prédio também comum a tantos outros. Não, a primeira cena não é o traseiro de uma bela moça deitada num quarto de hotel, como no filme. Se tudo aqui pode ser visto como uma Viagem, um percurso cheio de estranhamento, falta lirismo ao olhar e aos olhares pelo caminho agora. Porque no corredor, ainda que muito cedo, o olhar com o qual se encontra é o mesmo daqueles dias em muitos lugares pela cidade, arregalado, mas ali com os olhos baixos e cravados num canto da parede, como se não prestasse atenção à passagem, embora cumprimente, dê "bom dia" e continue virado para baixo, numa subserviência que se confunde com (auto)repressão sofrida, e um pedido de "por favor, me ignore como sempre", ou "não me humilhe com sua presença". E depois de um "bom dia" quase formalmente obrigado, já no elevador social, com uns olhos que dessa vez não estão baixos, apenas no vazio, pro lado, pra cima, tanto faz, o saguão lhe reserva, além dos tais olhos arregalados, sorrisos de plástico não arregalados ao Senhor. E antes fosse Ele.
- Bom dia, senhor. Posso ajudar?
Após olhar pra trás e para os dois lados. - Bom dia ... Senhor?! (risos de constrangimento) Gostaria de retirar o carro do estacionamento, por favor.
Um carimbo, uma assinatura, e um pedido ao telefone, pronto:
- O veículo está a caminho, senhor. Mais alguma coisa?
- Não, obrigado. Tchau, tchau.
- Tenha um bom dia, senhor.

(Senhor, senhor, senhor... É adorável ser mimado, bajulado, paparicado, no entanto, ser servido é muito diferente. É uma humilhação recíproca, muitas vezes, de algo que alguém poderia muito bem fazer sozinho, mas que outro te faz, simplesmente.)
Curioso funcionários para cima e para baixo com as coisas de hóspede, quando não há necessidade alguma, parece que esperam alguma coisa em troca no final. Talvez um obrigado, valeu, parceiro, não precisava. Mas com o carro que saia na frente ficou um dinheiro na mão do manobrista … ? … Hum, gorjeta! Os sorrisos, a espera de alguns, isso explica expressões de contragosto depois de uma espera ou percurso não retribuído. E a cara de pobre meio que ajuda alguns outros hóspedes, às vezes, quando não, são apenas desprezados mesmo, e o serviço vira um favor. Ironias. Ainda bem que nem todos agem desse modo.

Pé na rua, ou melhor, rodas. A visita estava marcada, a espera é que não estava. Então, nada como conhecer a vizinhança, as pessoas que trabalham no local, interagir, não é mesmo, já que andava com preguiça até pra isso … Os olhos arregalados da vizinha do comércio na frente de nada sabia, somente que ali se juntava um monte de lixo, e “a mulher” logo voltaria pra reabrir o galpão. O simpático patrício de olhos arregalados, protegidos por um impactante par de fundos de garrafa, e que caminhava por detrás do próprio portão de sua casa, disse a mesma coisa, que “a mulher” fora com o caminhão, devia de ter ido buscar mais lixo.

Na calçada, aquela mulher de negro que olhava, arregalada e desconfiada, desconfiada se aproxima pra dizer o mesmo, que “ela voltaria logo”. E a senhorazinha sentada na escada da entrada, enquanto arrastava os olhos arregalados junto ao calcanhar no cimento, resmungava qualquer coisa pela falta de dinheiro. A mesma mulher de negro não era desconfiada, não, o movimento da cabeça era muito rápido, e o tom de voz era diferente agora, muito diferente em poucos segundos:
- Tá, tá, vai pra lá com essa conversa. Vai, vai, fica aí com a tua igreja e o teu Senhor!
(Senhor de novo? Potz … Não, dessa vez é Ele, de fato)
Atravessa a rua, irritada, discute, discute, argumenta, se altera, volta e senta, tudo isso faz sozinha. A senhorazinha sentada não deixa por menos:
- Fica aí falando mal das igrejas do Senhor que cê vai ver só!
(Impossível de acreditar, o sentimento de desespero ensaia dar as caras. De quem é a loucura?)

Caminhar pela rua, abandonando a calorosa discussão deve ajudar a engolir a situação. Mas é bom voltar logo, há outra visita marcada, e longe, claro. Nada lá é próximo, nada, ninguém, tudo é distante.

Ah, “a mulher chegou”:
- Vamos ali no bar, porque como cêis vê, não tem lugar aqui pra gente conversar, só os bag de prástico e papelão que nesse mês nóis num conseguiu vendê tão ocupando tudo, daqui a pouco temô que botar as coisa até na calçada, vai ver.
- Ah, sem problemas. Tomamos uma água, inclusive. Que calor é esse, né?
- Pro cêis vê, daqui a pouco cai aquela chuva de novo …


- Foi uma felicidade pra nóis trabalha na corrida, ah, nem fale, ganhamo cento e vinte reais em três dia. Eles vinha busca nóis lá na central de triagem, cedinho, depois voltamos a noite, deu quase uns quatro reais a hora de trabalho, né?! Era tanto material, tanta latinha, tanto papel, e o material, os resíduo ficou tudo pra gente vender pra recicrage, foi ótimo. Nunca trabalhamo tanto, ficamo atrás dos cesto, embaixo, era muito rápido, as pessoa ia passando, jogando as coisa, e já enchia tudo, trocávamo rapidinho e levávamo pros container, quando chegamo de volta já tava cheio os cesto de novo, e eram grandes, viu, pro cêis vê! Nhá, foi bom demais!
(Quase quatro reais a hora, três dias, cento e vinte reais? Matemática avançada, então foram mais dez horas de trabalho por dia. Se você está dizendo, com os mesmos olhos arregalados, com essa boca de poucos dentes apodrecidos, com esses braços sujos, com esse rosto marcado da sujeira que revira diariamente, e com essa felicidade humilhante pra qualquer ser humano, que trabalhou bastante naqueles dias, então realmente deve ter trabalhado feito um rato, escondido, sem ninguém ver, e mesmo que visível por poucos instantes, sem ninguém perceber. Agora que porra de remédio cê toma pra uma alegria assim?!)
- Expectativa?! Ah, ter um espaço maior pra trabalhar, né?! Cêis estão vendo, né?!
- Sim, sim, tá certo. Muito obrigado, viu, Dona. Vamos indo, então, estamos atrasados já. Tchau tchau.
- Obrigado por terem vindo, viu, corre porque si a chuva que vier pega ocêis, só bem tarde vão chegar no centro. E vão com Deus.
(… não, não, não, Dona, cê não tá entendendo, meu. cê não tá ligada. cê não pode dizer isso, tá ligado, não cola no enredo, saca? cê tem é que ficar com ódio, ódio, ódio, entende? cê tem é que ajudar a botar fogo em tudo isso, porra. que merda! e não achar que tá tudo indo, que vai dar tudo certo, só falta dizer que tudo vai dar "super certo", porque não vai, não tá, não tá, NÃO TÁ …)

Os olhos arregalados bem que podiam entrar numa daquelas categorias antiquadas, ultrapassadas, como se fossem traços, aspectos culturais, atravessando classes sociais, gênero, cor de pele. Afinal, se uma bandeira, se uma cor, se uma religião não define muita coisa, por que cargas d'água o rosto vai definir alguém … ? Assim, grotescamente, a explicação para os olhos arregalados, dos quais nem os orientais ali presentes escapam, seria fruto do volume de informação, da exigência de atenção que a cidade obrigaria, mergulhada em caótica pouco comparável, em confusão fascinante, num entorpecimento estúpido do qual muitos dizem saber a idiotice que é viver ali, mas da qual não saem pelo encanto paradoxal que tudo aquilo propicia, e por medo de perder o que reclamar, isto é, a própria condição. E se existem formas distintas de arregalar os olhos, infelizmente esta não é a de uma menina bonita com cara de sonsa. Naquela cidade imensa o movimento de arregalar os olhos não advém de susto, brincadeira ou diversão espontânea, imagina-se, apenas do cansaço, do medo, do receio, da preocupação, daquilo que alguns nativos chamam de estresse. Se fosse de qualquer alegria banal, o arregalar não traria pelos cantos brancos dos olhos aquelas marquinhas amareladas, pequeninos traços de esforço, de exaustão. Antes, em lugares distantes dali, e ali mesmo, ouvia-se a expressão “introspecção”, ou “ensimesmamento”. Arcaismo, sem dúvida, porque lá, na terra dos olhos arregalados, o ensimesmamento parece comum, é um peso diante dos olhos, como se os forçasse a saltar. A aparente introspecção já não se identifica mais, justamente por ter se tornado natural, tão normal pelas ruas.
Absurdos.

André Dahmer. Malvados

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Quem tem medo do Wikileaks?

. . Por Thiago Aoki, com 1 commentário

Julian Assange, australiano fundador do Wikileaks, é a bola da vez e ninguém consegue defini-lo.

Na grande mídia, revistas e jornais se contorcem ao tentar julgá-lo. Ora santo, por gerar furos que todos gostariam de ter dentro do que se entende por jornalismo; ora demônio porque, no fundo, a contestação e liberdade de expressão de Assange vai em sentido contrário ao conservadorismo político dos donos dos jornais.

A esquerda, que não encontrou em nenhum grande autor termo para alcunhá-lo, acaba por incorporar parte das ideias de Assange, ainda tímida e forçando esdrúxulas ligações com Marx, Trotsky, com o movimento comunista transnacional, ou que quer que seja. A direita está dividida. Enquanto alguns deleitam-se por gafes da política externa brasileira e latinoamericana serem trazidas a público, parte dela se revolta com a irresponsabilidade moral do jovem.

O incômodo é tanto que parte dos republicanos estadunidense não aceitam tamanha humilhação e defende a condenação à morte para o "ciberterrorista", "ciberativista", ou simplesmente vagabundo. Até a Interpol já criou fatos e manteve preso o rapaz sob a acusação de (pasmem!) transar sem camisinha. Seguindo a lógica, deveria então indiciar boa parte dos cânones da igeja católica. Aliás, não duvido que, se o Wikileaks anunciasse ter documentos do Vaticano, até o Papa viria a público condená-lo por não usar preservativos.



Assange, com as decorrentes contradições dos discursos dos mais distintos atores sociais diante dos furos do Wikileaks, conseguiu, mais que Nelson Rodrigues, mostrar que, no topo da pirâmide de poder do mundo, todos os faraós têm teto de vidro. O jovem não é um louco ingênuo. Prova disso foi a inteligência que teve em revelar documentos de Dilma após as eleições. Assange, que já possuía os documentos, poderia ter caído na tentação da fama e ser protagonista em uma virada histórica de José Serra, mas teve sabedoria política para não o fazer. Outro exemplo de noção política é o de sempre, em seus discursos, esquivar-se do personalismo e colocar o Wikileaks como uma organização maior que ele, com mais pessoas que lutam pelo ideal de um mundo verdadeiramente livre. Força esta demonstrada por Hackers que se unem em ações pró-wikileaks.

Um impulso corre os dedos que teclam essas letras para nominá-lo como fundador de um novo movimento, independente, organizado e de cunho anárquico. Não o farei. Apenas posso afirmar que sua imponência é uma lição a todos os que se consideram portadores de ideais revolucionários, e deixam de lado o novo, colocando tudo o que surge como modismo e alienação. Assange domina e subverte a onda de tecnologias, redes sociais e indústria cultural com um ambicioso projeto, de difícil contenção.

Que o poder, seu e dos demais, não sucumba estes que esculacham os poderosos..




---

Em tempo:

1) Com os diversos ataques hacker aos quais a wikileaks.org vem sofrendo, quem organiza e distribui as notícias do site referentes ao Brasil para a mídia brasileira é Natália Viana, jornalista independente. Ótimas mãos.

2) Veja a resposta, mais uma vez lúcida, de Assange ao pronunciamento de Lula.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Coluna do Leitor - Luzes sombras e cores

. . Por Mistura Indigesta, com 3 comentários

Tenho cá minhas dúvidas se um dia a comunicação entre duas pessoas pode vir ser transparente e cristalina: tudo o que é dito de um lado é compreendido do outro, e eventuais falhas no entendimento logo sanados. Se acaso for possível tal nível de esclarecimento, quero distância.

Em geral, vemos os mal-entendidos sempre de maneira negativa, quase que a origem dos males do mundo - ou ao menos das relações humanas. Não discordo que eles podem acarretar muito desgaste e conseqüências desagradáveis, porém julgo tais conseqüências antes frutos de nossas dificuldades para o diálogo do que do mal-entendido mesmo.

Um mal-entendido pode ser uma oportunidade para um encontro franco com outra pessoa - assim como consigo mesmo, uma vez que pode deixar evidentes certos preconceitos nossos muito ínfimos, mas não menos presentes. Pode ser a chance de uma nova e repentina idéia; a abertura para o inesperado que o contato transparente não deixaria: se tudo é sabido, por que arriscar? No que arriscar?

Meu elogio das sombras - na comunicação, inclusive - é algo recente, tem três anos. Já precisei me vigiar mais para tentar manter um certo equilíbrio entre luzes e sombras - e não jogar luz sobre tudo, como desejo em minha herança iluminista. Hoje já não tenho esse ímpeto luz luz luz e chego, eventualmente, até a perder a medida: semana passada achei que fora cristalino, mas a luminosidade do que eu dissera ficara bem aquém do que eu julgara. O que era para ser sabido, pré-combinado, sem sobressaltos, tranqüilo, num sopro se tumultuou e se desfez ganhando surpreendentes cores inusitados contornos outros significados diferentes perspectivas novas possibilidades - se serão predominantemente positivas ou negativas, ainda não sei, e isso tem também sua graça (da qual faz parte certa angústia).

Voltei para casa perplexo, como ainda estou: como pode da sombra tantas cores? E como pôde eu um dia querer só luz?

Sombras, por favor!

Daniel Gorte-Dalmoro é um chato, um cara que diz que quer trabalhar, mas demonstra mais empenho em fugir de. Enquanto isso tromba com japonesas de um metro e meio, mas sem sucesso escreve textos como este.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Conto retirado de uma notícia de portal

. . Por Thiago Aoki, com 0 comentários

Extra, Extra!

Mensagem oficial destinada ao governo estadunidense é revelada em site subversivo. O telegrama foi enviado ao presidente dos Estados Unidos por um importante e condecorado membro do alto escalão da inteligência ianque. Segundo informações do site, o mesmo fora mandado para terras tupiniquins há três meses, com a missão de entender o modo de vida do maior país da América Latina. No trecho traduzido abaixo, o “espião” relata detalhes da política interna brasileira ao chefe de Estado norte-americano:

Caro presidente,

É preciso ficar atento ao povo brasileiro.


Temos que desmistificar a ideia de que o brasileiro tem memória curta.


É mentira.


Tampouco é hospitaleiro ou gentil.


Tudo mentira.

É um povo rancoroso, que pode nos trazer futuros problemas.

Para se ter uma idéia, senhor presidente,


No Brasil, são necessários anos, décadas


Para quase se esquecer uma paixão,


E apenas o intervalo de um samba cadenciado


Para relembrá-la inteiramente.


É preciso ficar atento, senhor presidente.”



O presidente dos EUA negou a autenticidade da carta. Já a presidenta brasileira ressaltou que o episódio não abalou o relacionamento entre os países.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Esquina, caixas e luzes

. . Por Unknown, com 2 comentários

Dos dois lados, muitos se empoleiram momento a momento, inúmeras vezes durante o dia enquanto esperam, esperam o instante em que, depois de poucos segundos, não menos vividos com expectativa, ansiosamente, poderão enfim seguir, ir em frente. Parece uma verdadeira guerra, as trincheiras estão a postos, marcadas pelos primeiros corpos em linha, perfilados. Atrás dos primeiros, homens e mulheres, linhas e linhas de outros corpos estão aglutinados caoticamente, quase já amontoados, eles também aguardam. São duas multidões, artilharias opostas, frente a frente, e que transpiram ávidas pelo sinal que lhes permitirá partir de encontro uma a outra. Porém, o vermelho que, de um lado, poderia anunciar o sangue de uma guerra de fato, não, somente pede para aqueles que se encontram protegidos dentro de suas armaduras parem com seus veículos potentemente motorizados. O vermelho também traz o verde que os corpos perfilados tanto desejavam, e esta mesma cor ainda os libera para seguir, simplesmente.

Se faltam armas de fogo, sobram pisões, encontrões e empurrões, quando não, beliscões e um carinho discreto entre os mais íntimos, todos que vão de uma calçada a outra. Privilegiados, os motoristas assistem àquele verdadeiro desfile frenético, quase relâmpago, que os passantes realizam nos poucos segundos de intervalo para um novo arranque dos automóveis.

Enquanto isso, a luzinha verde, que possibilita aquele intenso movimento de pedestres, vem de um homenzinho de dentro de uma caixinha. É o semáforo, ou farol, como quiser. Sem sair do lugar, o homenzinho caminha dentro da caixinha quando se pode atravessar a rua. Acima dele, correm os segundos para que também os carros possam ter permissão de seguir caminho novamente. O clímax de tudo isso surge quando faltam somente três segundos para se acabar o tempo de travessia dos andantes, então a velocidade do homenzinho verde aumenta bastante e ele aperta o passo dentro da caixinha do semáforo. Ele corre.

No desespero, será que ao invés de fugir dos carros que vão começar a passar rapidamente, vruumm, vruumm, vruumm, o homenzinho não pode acabar atropelando a si próprio?

É o que se pergunta de dentro de outra caixa um pouco maior, um pouco mais acima de todo o suceder, o Coleirinha. Ao lado dele, um velho senhor têm os olhos também naquela direção, do cruzamento, na pressa de todos em aproveitar os segundos que restam antes de um novo interrompimento da passagem. Porém, mesmo que repousando os olhos ali, o pensamento do velho parece encerrado em qualquer outro canto, talvez dentro de si, ou da sacada em que está. Possivelmente, ainda, tenta responder a si próprio o que o teria trazido até ali, sem ao menos conseguir ouvir os tantos Trica-Ferros, Pintassilgos e Curiós das gaiolas ao redor.

Cansado, sem ouvir seu próprio piar, o Pintassilgo tenta inventar uma biografia para o senhorzinho, pensando em quando o velho ainda tinha forças para estar ali embaixo, entre aqueles tantos de um lado para o outro. Sem conseguir imaginar muito o enredo, ou a trama, o desfecho da história dele já estava pronto, de uma ironia tristemente realista. O velhinho passou a vida toda admirando o canto dos pássaros e hoje é ele quem está preso, tal como os pássaros, atrás das grades da sacada de seu apartamento, em silêncio, com os olhos que não mais reparam, apenas se distraem no fluxo a que pode assistir.

Mas o sinal fecha para os pedestres, novamente, e tudo se reinicia. O som dos carros é maior que o de pessoas, e outro movimento começa na sinfonia nada harmônica da esquina.

sábado, 27 de novembro de 2010

De Kafka a Liza Gilbert

. . Por Unknown, com 11 comentários

"I left my home in Georgia
Headed for the Frisco Bay
I've got nothin' to live for
Looks like nothing's gonna come my way, yeah...
Sittin' on the dock of the bay
Watchin' the tide roll away
Sittin' on the dock of the bay
Wastin' time..."
(Otis Redding)




Poucas obras talvez tenham um início tão emblemático como A Metamorfose, de Franz Kafka, ou melhor, talvez poucas obras sejam tão emblemáticas como este livro do escritor nascido em Praga: "Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso." Gregor é um funcionário público com uma vida padronizada, pautada pelas obrigações tanto em relação à sua família como em relação à sociedade, na qual as relações entre as pessoas eram norteadas por um interesse material, mercantil, somente. Kafka, com o poder que só "o papel e a caneta" poderiam lhe dar, transforma-o em uma barata. Então, com o absurdo que não só a literatura permite, Gregor adquire humanidade. Enquanto homem, Gregor era um inseto desprezível e nojento, imagina-se, como uma barata. Ao longo da novela, todavia, como uma barata do tamanho de um homem adulto, Gregor é de fato um Ser Humano, preso dentro de um quarto. E, ao mesmo tempo, pela mesma transformação, também, passam seus familiares, que adotam uma postura mais sensível entre si e em relação a Gregor.

Quando assisti ao Comer Rezar Amar (Eat Pray Love), adaptação do livro de Liza Gilbert, do qual ela é também personagem, mais uma vez me lembrei de Kakfa, porque a primeira vez que a recordação me ocorrera foi vendo Na Natureza Selvagem (Into the Wild), que conta a história de Christopher McCandless.

Nos diz Liza:
- Preciso mudar.
(...)
- Eu nunca dei um tempo de duas semanas só pra mim.
(...)
- Toda a minha enorme sede de vida desapareceu.
- Quero ir a algum lugar e me maravilhar.
(para se sentir livre)

Liza vai à Itália, à Índia e à Bali. Já Chris McCandless deixa pra trás tudo, família, amigos, dinheiro, ateia fogo no carro e em seus documentos, e desaparece no interior dos EUA.



A postura de Chris parece muito mais crítica, afinal, está contestando A Sociedade. Ele abre mão de tudo para viver em meio às aventuras que a natureza pode lhe proporcionar, distante da falsidade, das mentiras que os homens vivem uns com os/pelos outros. Chris deseja encontrar-se consigo, longe de tudo que apresenta e representa a sociedade na qual todos vivemos. Submete-se a um processo que ele mesmo nomeia de "revolução espiritual". Assim, Chris encontra Liza, e ambos, a seus modos, dialogam com Kafka.

Se a atitude de Chris pode parecer crítica, no entanto, nada tem de inovadora. Por exemplo, Edgar Allan Poe já descrevia o flâneur, trabalhado também por Walter Benjamin. Este, por sua vez, pensava o poeta Charles Baudelaire da Paris de meados do século XIX, transformada pela revolução industrial. O flâneur é uma figura sobretudo urbana e que ressaltava a perversidade das relações humanas, das quais, não por acaso, Chris também se queixava. A diferença é que, ao invés de partir para o isolamento da Natureza, o flâneur se esquece em meio à multidão presente nas ruas.

Enquanto Kafka transforma seu personagem logo de início em uma barata para torná-lo humano, Chris rejeita tudo e todos à sua volta, mostrando o quão barata, asqueroso e repulsivo, tudo ao seu redor é. Já Liza, talvez, se apresente como uma espécie de Gregor, sentido-se uma barata e em busca de uma transformação que a realize. Destituída de "crítica social", Liza viaja o mundo em busca de si própria, consome o mundo e a diversidade dele para si.

Chris e Liza estão à frente de suas decisões, de suas próprias histórias, numa postura que se confunde em meio a vários elementos, à coragem, à autoafirmação, à vaidade, ao egocentrismo, e até mesmo à indiferença, em algumas situações. Ao longo de suas trajetórias, quem se sobressai, quem está a frente, no começo, no meio e no final, no caso de Chris trágica e resignadamente, são eles, Liza e Chris. Voltados a questões distintas, Chris inconformado com a sociedade na qual vive, querendo se afastar para se transformar, e Liza incomodada consigo mesma, precisando mudar, ambos parecem seguir com rigor os valores aos quais estão ligados. São EUs enormes desfilando, que poucas concessões estabelecem ao mundo e às pessoas ao seu redor. Sujeitos bem informados, que muito bem falam, mas que têm dificuldade para ouvir. E, ironicamente, nada de novo descobrem quanto a si próprios, apenas se redescobrem. Com Chris a situação é ainda mais irônica, porque ele se depara com a obra de Boris Pasternak, que esteve com ele o tempo todo desde que partira, e da qual ele gostava muito, Doutor Jivago.

Por isso Kakfa, em A Metamorfose, triunfa, na posição de escritor genial, nos comunica nossa miséria, de barata que todos somos, em perspectiva.

♫ ♫ "Sittin' on the dock of the bay/ Watchin' the tide roll away/ Sittin' on the dock of the bay/ Wastin' time..." ♫ ♫

"A verdadeira viagem de descobrimento não consiste em buscar novas paisagens,
senão em ter novos olhos" (Marcel Proust)

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Crianças Contemporâneas

. . Por Thiago Aoki, com 3 comentários

(Aviso já: um texto um pouco mais longo e denso sobre arte contemporânea)

Esses dias, tive contato com uma palavra que me remeteu à sua beleza enquanto termo e fonema: "Hermético". Escutei-a em seu terceiro significado no dicionário Houaiss: "difícil de entender e/ou interpretar, obscuro, ininteligível". Dizia-se que a arte contemporânea, mais especificamente a dança contemporânea, seria "hermética", daí sua baixa popularidade e dificuldade em formar um público que venha de outro lugar que não da própria classe artística.

Algumas linhas pedagógicas afirmam que o brinquedo, do modo como o conhecemos, mais limita do que educa uma criança. Isso porque o brinquedo tem uma estrutura rígida com regras de como deve ser usado, muitas vezes estimulando o pensamento único e a repetição de movimentos. Um exemplo grotesco: nada mais se faz em um escorregador do que subir a escada e descer a rampa bundado, repetindo-se ciclicamente. Pouco se estimularia, em ambos casos, a imaginação e a sinestesia da qual a criança poderia provar. A proposta é que as escolas comecem a construir espaços semi-estruturados, com elementos que forneçam possibilidades, cuja brincadeira ou atividade seja norteada pela imaginação da própria criança, evitando que a criança seja condicionada a partir da estrutura em si. Ela mesmo criará suas regras e normas.

Me parece que esse tem sido o movimento na arte contemporânea hoje, ao trazer às exposições e espetáculos com tamanho grau de obscuridade. Espera-se que cada um que se depare com o trabalho tenha significado/experiência distintos, chamando isso de "ampliação da subjetividade do espectador".

O problema é que se esquece da praticidade que se tem em descer um escorregador. Além disso, para a criança, ela nunca está apenas descendo uma rampa, seria menosprezá-la. Rubem Alves disse alguma coisa no sentido de que deveríamos viver nossa vida com o espanto e a curiosidade de uma criança que encontra uma conchinha. O escorregador do clube, para mim, já foi ponte, tunel do tempo e até cachoeira.

Do mesmo modo, não acho que é o caso de culpar apenas o público pelo "baixo grau de instrução", "pouco contato com as artes" ou "falta de sensibilidade". Não, não é culpa do futebol. É simplesmente natural sentirmo-nos afugentados diante do novo, daquilo que nos foge do controle, do comum. Precisa-se sim, do lado do artista, pensar para quem e até quem chegará a arte que está fazendo. É possível uma arte provocativa, que consiga seduzir o público, mas que não caia no mero hermetismo, tampouco seja óbvia e que ainda obtenha a proeza de ser aclamada pela crítica? É. Acreditem, já brinquei em escorregadores que davam várias voltas, de diferentes formatos, velocidades, texturas, até com recursos tecnológicos. E a molecada adorava. Também já tive a oportuidade de conhecer diversos espetáculos, exposições, intervenções dos mais inovadores serem aplaudidos de pé por pessoas das mais tradicionais.

Entretanto, em alguns momentos, o que a suposta inovação tem provocado - tanto para o público da arte contemporênea como para as crianças exiladas de seus parquinhos - é o mesmo que alguns críticos fazem ao utilizarem o termo "hermético", ao invés de "obscuro": nada.

Muitas vezes, uma tela branca é apenas uma tela branca. Ou, como disse algum antropólogo, num contexto bem diferente, uma piscadela é apenas uma piscadela.

(PS: Espero não ter sido (tão) obscuro, quer dizer, hermético. E sim, sou leigo)

---

Misturas Relacionadas:

Quão abstrato pode ser um conceito? - Por Fábio Accardo
Viva a Vaia - Por mim mesmo

sábado, 20 de novembro de 2010

Sobre Bolas e Crianças...

. . Por Thiago Aoki, com 0 comentários

Acordei sentindo falta. Sentindo falta da dose de coragem que continha o vinho dos poetas românticos de outrora. Do brilho profano dos olhos adolescentes refletidos no espelho de meu quarto. Do espasmo saltado à face das crianças que chutam bola diante da descoberta do movimento (será que se excitam por que sentem que podem controlar a direção da bola ou por não saberem em que local a redonda se aportará?).

O tempo, meticulosamente sádico, acordou preguiçoso, calorento e lento, como que a colocar agulhas em minha incompletude, intensificando a falta que sentia. Demorou a passar as horas. Por vezes, a raiva tomou conta e quase perdi o relógio de pulso ao jogá-lo contra a parede logo após constatar: o ponteiro dos minutos pouco havia girado.

Era o tempo lento ou a angústia apressada?

Coloquei devagar a ponta do pé para sentir a temperatura da água. Estava Quente. Um banho, talvez a solução. A água, feito enxurrada, escorria pelo corpo. Já não sabia se as gotas eram do chuveiro ou de meus olhos, importante era que tinham o mesmo destino: o ralo.

Abri a janela do quarto - as cortinas sufocavam - e libertei o sol pra dentro, junto com uma suave brisa quase divina a refrescar. Não resisti, saí de casa. Sentei no banco da praça da esquina e observei: brincavam com a bola dois garotos provocadoramente ingênuos e risonhos. Será que se excitam porque sentem que podem controlar a direção da bola ou por não saberem em que local a redonda se aportará? À pergunta, antes em parênteses, mas agora trazida à tona pela razão, nenhum autor que havia lido conseguira responder.

As crianças sorriem tão naturalmente quanto o axioma de a bola rolar na descida. Não há como não imitar o sorriso infantil, é quase um bocejo. Abri um sorriso discreto enquanto os meninos corriam ladeira abaixo disputando a pelota. Voltei para casa, escurecia.

Amanhã seria um outro dia, novas bolas atravessariam o caminho à espera do chute. Melhor mesmo fazer como as crianças.

Dormi sentindo falta, mas sorrindo, um sorriso ainda tímido.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Há um Ano...

. . Por Mistura Indigesta, com 1 commentário

Há um ano, não imaginaríamos uma presidente mulher. Tampouco o palhaço Tirirca com mais de um milhão de votos no Estado de São Paulo. Saramago, mestre morto? Nem pensar. Brasil, vexame na Copa do Mundo, quem diria? (O Hugo, mas ele não vale, é um chato pessimista!). Há um ano, nenhum apostador em sã consciência jogaria suas fichas em Obama, estapafurdiamente, como Nobel da Paz (o Fernando, mas ele não vale também, porque explica coisas inexplicáveis) e Mario Vargas Llosa, atrasadamente, como Nobel da Literatura. Há um ano, se falássemos em mineiros saindo do buraco, remeteríamo-nos ao Cruzeiro, Atlético Mineiro, Ipatinga, quem sabe, mas jamais aos bravos chilenos. Há um ano, parecia apenas blá blá blá estudantil dizer que a reitoria da Unicamp, junto a uma associação de moradores, reprimiria manifestações culturais na universidade (pasmem!), e incentivaria a entrada da polícia no campus como algo normal (oras!). Há um ano, dizer que Silvio Santos estava a beira da falência era apenas início de piadas infames (como as que só(!) o Thiago sabe fazer).

Dentre de tantos imprevitos, jamais poderíamos, em 16 de novembro de 2009, saber que estaríamos, exatamente um ano depois, mantendo este Blog. Que teríamos novos layouts. Que seríamos convidados a participar de um livro didático. Que seríamos indicados ao prêmio Top Blog na categoria "Arte e Cultura". Que alguém, além de nós mesmos, investiria seu tempo com nossas postagens. Que faríamos deste um espaço de hobby (ou seria de happening, como só o Caio é mestre?!), de discussão e, acima de tudo, de encontro entre amigos e desconhecidos que, sabe-se lá porque, nos acessam, comentam, mandam sugestões e textos para serem publicados.

Que teríamos 92 postagens, 40 parceiros de botequim, 169 seguidores no twitter, 224 amigos no Facebook, em um total de 10.090 de page views e uma média de 570 acessos únicos por mês.

Tantas surpresas são, na verdade, motivos pelos quais insistimos em dormir tarde para corrigir uma postagem, em dar uma escapadinha no trabalho para atualizar nossas redes sociais, em pensar em novos textos e postagens, em buscar novidades e em abrir espaço para quem se identifica e gosta de jogar conversa fora.

"- Afinal, mas quem são vocês e o que estão fazendo com isso aqui, um blog?" - mais uma vez nos perguntam. "Quais são seus objetivos, finalidades, propostas?"

Pois é, o que fazemos, quem somos e para onde vamos, parafraseando Schopenhauer, é justamente o que nos perguntamos... Tudo bem, tudo bem, talvez muitos já tenham nos visto por aí: cinco amigos que entraram no mesmo ano em Ciências Sociais na Unicamp. É claro, temos muitas afinidades, primeiro, simplesmente, pra topar uma iniciativa coletiva e pública, aberta, que se pode acessar de qualquer lugar no mundo, desde que devidamente equipado. Um exemplo que daria 'pano pra muito post': o título (e, note bem, que incrível, ainda(!) não é "O blog do Fábio", pois ele se apropria de tudo, de tudo!) Mistura Indigesta - Arte e Cultura. Ahn? Então ao juntar Arte e Cultura se faz uma mistura indigesta?? Quem sabe, sim. Só que pra definir o que é Arte e o que é Cultura... aí entraríamos em pequenas discordâncias... na relação entre os mesmos termos e tantos outros, como Política... humpf, haja post... Porém, acreditamos que isso não é nada demais, pelo contrário, é um prazer abrir este verdadeiro mural eletrônico e ler o que nossos amigos próximos, ou mesmo distantes, conhecidos, pouco conhecidos, pessoas de fato desconhecidas, pensam sobre o que dissemos, ou tentamos dizer com um texto, uma postagem. Ora, o blog pode ser visto como uma conversa na qual aqueles que atravessam esse espaço virtual podem mostrar como lêem, o que acham, enfim, expressar-se também. Nos arriscamos, por que não, a dizer que este blog é um espaço público: como uma rua pela qual muitos podem apenas atravessar, passeando, no entanto, podem também parar um tiquinho e trocar figurinhas, conhecer algo novo, e nos mostrar algo novo também.

As mãos que tocam o teclado são as mesmas que abrem portas e atiram pedras...

A todos que, insanamente, nos acompanharam nesse trajeto, nosso muito obrigado!

Equipe Mistura Indigesta!

PS: Desculpem as piadas internas, mas é o risco de se fazer um texto em 10 mãos amigas!

---
Para quem tiver interesse:

Se você tem algum projeto, atividade cultural , ou trabalho a ser divulgado, envie as informações e nós divulgaremos em nosso "Divulgando".

Se você possui algum site independente, que possui assuntos compartilhados por este Blog, envie para inserirmos em nosso "Recomendamos".

Se você escreve, fotografa, pinta, canta, ou algo do gênero, envie seu texto ou projeto para publicarmos em nossa "Coluna do Leitor".

sábado, 13 de novembro de 2010

No Escuro

. . Por Caio Moretto, com 3 comentários

Nada de extraordinário para um paulistano em trabalhar no feriado, ainda mais para um publicitário. Não fiquei mais chateado ou mais irritado por não poder viajar e já havia me acostumado com a idéia de que o dia acabaria bem com uma típica lasanha de microondas em meu apartamento não fosse por um arcaico e desagradável imprevisto: estava sem eletricidade.

Acabo de entrar pela porta principal e o interruptor está inútil, mas demoro um pouco para interpretar os sinais contraditórios. Subi de elevador e a luz do corredor funciona perfeitamente. Há algo errado. Tomo um susto com o gato preto do João - filho da mãe! – mas o xingamento é para o dono. Não estamos sem força, fomos cortados. Ele não pagou a conta.

Começo a me incomodar com os olhos amarelos do nosso invisível bicho de estimação e com as coisas que deixarei de fazer. Um momento de racionalidade me faz pensar as opções que tenho: dormir mais cedo ou lutar heroicamente contra a conspiração de meus colegas caloteiros e da Eletropaulo para ferrar o meu feriado. O momento passa. E a luta começa.

Horas e horas perdidas assistindo James Bond e MacGyver, a escuridão não tem a mínima chance. Uma passada no corredor para ativar o sensor de movimento da luz do elevador e consigo encontrar provisões e alimentos. Distraio-me um pouco comendo o pacote de Club Social e ela se apaga novamente, só para me provocar.

É hora de jogar duro. Encarrego o gato de manter a lâmpada acesa, um pouco contra sua vontade e vou buscar uma extensão. Será que tem gente que usa a tomada do corredor para economizar na conta de luz? Pode parecer ridículo, mas foi o que pensei quando constatei que nenhuma funcionava.

O gato não gosta de mim, mas faz um bom vigia de corredor. A luz apaga, ele se levanta, o sensor ativa, ele resolve ficar mais um pouco. Um ótimo método, mas insuficiente para meu novo objetivo. Decidi que para vencer essa batalha é preciso decretar vitória moral ao inimigo. Eu preciso ler um livro.

Encontro três velas de bolo. 1, 2 e 3. Talvez aniversários de algum sobrinho, talvez um colega de 32, que não quer esbanjar com um novo três a cada ano. Quantos anos teria o gato? Esqueço os números e acendo cuidadosamente cada vela, colando-as com sua própria cera no fundo de xícaras de chá. Uma na sala, para quando chegarem os outros moradores e duas para zombar do adversário com uma boa leitura em minha cama.

Dois “parabéns para você”. Acho que este é o tempo médio de uma vela de aniversário. Talvez seja proposital, para a gente usar um novo 3 a cada ano. Foi o suficiente para ler uma única página de Fernando Sabino. Uma que já havia lido, para retomar a história. Mas gol de barriga também dá vitória. E já é tarde demais para um paulistano estar acordado se divertindo. Afinal, amanhã terei que acordar mais cedo para pagar a conta de luz.

P.S.: Nenhum animal foi prejudicado durante a produção deste texto.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O céu não tem região...

. . Por Thiago Aoki, com 2 comentários

-Que presepada aquilo lá embaixo, não?

-Aquilo o quê seu Luiz?

-Brasileiro falando de brasileiro, mas como se não fosse brasileiro.

-Qual é seu Luiz?

- Vi na revista hoje, todo mundo culpando o nordeste.

-Culpando do quê, seu Luiz?

-Não sei direito, acho que das coisas tarem como tão. Desse fuá que o mundo tá.

-Mas eles estão certos, seu Luiz.

-Como assim certos?

-Você tem que entender que o Brasil passou por uma “Afrociberdelia” aguda.

-Cuma?

-Bom, deixa eu falar de outro jeito. É o seguinte, como meu amigo Fred disse há algum tempo atrás, precisávamos deslobotomizar e carregar as baterias da cidade nordestinas...Injetar energia na lama, Gonzaga, é disso que estou falando!

-Carregar as baterias da cidade, é?

-Sim, mas isso pensamos em fazer faz é tempo, uns bons vinte anos atrás.

-E fizeram, é?

-Claro, e lá sou eu cabra só de falar, seu Luiz?

-E como fizeram isso?

-Misturando muita coisa, coisas que pareciam distantes uma das outras. Tudo quanto é ritmo e movimento, queria ordenar aquele caos todo e criar um novo caos muito melhor, um caos que funciona, que integra e cria algo novo, algo que vibra, que dá luz! Sair pro mundo seu Luiz!

- Mas revista falou de...

- Sei que você tá desconfiado seu Luiz, mas foi uma pegada louca, não tem nada no mundo que não pode ser juntado, agregado, reaproveitado, nada que não possa ser usado pra fazer um barulho novo! No começo, teve muita gente que torceu o bico, mas até uma revista gringa disse bem de nós! O Nordeste tava mostrando que dava pra regionalizar o universal e devolver o trem refeito pro mundo!

- Calma menino, que você tá fazendo presepada! A revista disse que tem um monte de tabacudo que não é daqui, dizendo que nordestino não gosta de trabalhar, vota nas pessoas erradas, que só tem analfabeto. Tem gente até querendo matar a gente do nordeste. Tirar do país. Todo mundo com ódio de nós.

-Que loucura seu Luiz! Dá gastura só de ouvir. Acho que a molecada não entendeu nada do Brasil. Foi só eu sair do país e o negócio ficou assim é? Sobrou ninguém lá não? Quem que falou essa besteraiada toda? Não era só nos caranguejos que faltavam cérebros?

- Um pessoal, desses fuleiros que ficam atrás do computador, sabe?

- Num era desse caos que eu tava propondo. Eu queria juntar, não separar.

- Eu sei menino, não fique cabreiro. Apesar de falar umas coisas abiloladas, Você parece um menino bom, diferente desses doidos que passeiam as mãos tão ligeiras nas teclas pra escrever tanta besteira, tanto fuzuê. Vale menos que corrida de ganso.

- Hehehehe... Logo você, seu Luiz, reclamando da habilidade com as teclas?

- Mas a tecla que minha mão toca só sai coisa boa, cabra!

-Verdade Seu Luiz... Verdade...

-Como é teu nome mesmo menino? Lembro de você, mas não do teu nome.

- Francisco de Assis, mas já que não sou santo, pode me chamar de Chico. Ou Chico Science, como me chamavam lá embaixo.

- Chico, o quê?

-Science!

-Tá, vou te chamar só de Chico, pode ser?

-Claro que pode. Mas chega de prosa, vamos descer da nuvem, vai ter um show de um camarada lá embaixo, chama Otto, cabra bom de música que só vendo, vamos lá comigo seu Luiz, você vai ver a mistureba gostosa que ele faz!

-Bora lá então. Chega de leriado que você me deixou curioso como esse negócio de Afrociber-seiláoquê. Quando subi pra cá ainda não tinha muito disso não.

-Vamos lá que você vai entender o que digo. Mas vai tocando seu acordeon que é pra embelezar a viagem! Depois acho que podíamos pensar em misturar seu baião com um manguebeat, ia ficar um fuá pra lá de bom!

-Deixa eu tocar meu acordeon mesmo, antes que você fale mais coisa esquisita:


---

domingo, 31 de outubro de 2010

Coluna da Leitora - Metalíngua

. . Por Mistura Indigesta, com 4 comentários

Escritor: não somente uma certa maneira especial de ver as coisas, senão também uma impossibilidade de as ver de qualquer outra maneira.
- Carlos Drummond de Andrade

Todo escritor é intolerante e todo leitor é curioso, mas apesar de estas serem características um tanto quanto distintas, ambos são regidos pelo mesmo motivo. A expressão escrita não permite que o outro incomode suas vírgulas, lacunas e pontos finais, é a expressão dos impacientes, daqueles que não querem ter que discutir muito. Você joga suas idéias, alguém lê e se não concordar, que procure outro texto. Se não lhe entendeu, que interprete, que se vire, que vá as favas. Há certa dose de prepotência na escrita, que reside na possibilidade de sempre dizer que o outro lado que foi incapaz de sentir e por isso o texto não lhe serviu. Escritores nunca se admitem medíocres, é uma raça insuportável apoiada nessa premissa de culpar o outro. Drummond sabia bem disso: não somente uma certa maneira especial de ver as coisas, senão também uma impossibilidade de as ver de qualquer outra maneira.

O leitor é parecido, já que não quer lhe olhar nos olhos e perder suas horas entre conversas e vinhos, ele só quer saber o que você pensa, não quer tentar lhe mudar ou lhe convencer. Muito pelo contrário, o leitor quer que alguém fale por ele e vai buscar, de palavra em palavra, algo que possa roubar para sua realidade. Diga-se de passagem, foi isso que fiz ao roubar a frase de Drummond, deixei que ele se expressasse por mim, por julgar que possui mais clareza e elegância.

Existe um sem fim de poesias de Drummond das quais me valho ao tentar entender porque escrevo tanto. Sou compulsiva, posso passar horas e horas ouvindo o barulho do grafite arranhar no papel. Ele me ridicularizaria, já que minha expressão é intencional, meus textos tem uma finalidade estabelecida. Ele estava certíssimo ao dizer que a arte de verdade é aquela que deixa escapar, sem querer, uma ponta de beleza. Eu não, não transbordo essa beleza ao acaso, cada palavra aqui é forçada e sua posição no texto é escolhida depois de uma análise lógica digna de jogadores de xadrez. Não consigo me culpar por isso, sou engenheira e a beleza que enxergo nessa dança de ritmos e cadências vem exclusivamente do ato de vê-las como argumentos estratégicos. O papel não julga seu tom de voz, não percebe seus vícios através da pupila, ele apenas aceita. Qualquer coisa, nunca vai dizer que aquela mão que o rabisca pertence a um péssimo fingidor.

Fernanda Maria Ribeiro Fernandes, é contra indicada. Mentira. O título aham, Cláudia, senta lá é um outro bom exemplo. Impaciência e grosseria podem ser pensados quando se vê a já famosa frase da "Rainha dos Baixinhos" num dia inspirado (sic). Ironia da Fernanda, claro, no Tumblr, uma mistura de blog e microblog, ela faz de uma espécie de diário, um espaço incrível de criação e reflexão sobre os mais variados temas.

O Mistura Indigesta espera contribuições, críticas, comentários, xingamentos, desabafos, choros, e até textos! Escreva-nos: misturaindigesta@gmail.com

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Entre falas, coelhos e lapsos: escrita

. . Por Unknown, com 5 comentários

De ideias de girico, algumas vezes, mas apenas algumas vezes, que fique bem claro, muito raramente, aparecem coisas legais. Não digo isso por pura pretensão generalista, somente porque o sujeito que mediou os diálogos que foram editados em Conversa Sobre O Tempo solta uma pérola na abertura digna de nota. O jornalista Arthur Dapieve compara o encontro de Luis Fernando Verissimo e Zuenir Ventura a um reality show: uma ideia de girico. Você já imaginou Luis Fernando Verissimo e Zuenir Ventura em alguma coisa que lembre, de relance, de longe, sem óculos e um pouco ébrio, enfim, que lembre alguma coisa parecida com um Big Brother Brasil, ou A Fazenda, pra não dizer A Casa dos Artistas? Não dá. Uma ideia de girico, mas apenas para aqueles precipitados, como eu, que lêem a primeira oração e quase fecham o livro. Porque Dapieve se explica em seguida, dando a peculiaridade do encontro, realizado ao longo de cinco dias. O jornalista, assim, apresenta o resultado das conversas entre os escritores e amigos que o livro nos traz, e que dispensa incentivos a leitura. Dividida em quatro partes, Amizade & Família, Paixões, Política e Morte, esta última talvez reserve os momentos mais impressionantes do livro.
Me chamaram a atenção, contudo, as falas de Ventura e L.F. Verissimo a respeito da relação deles com a escrita.

Ventura: Escrever é realmente pra mim muito mais penoso. Ler é que é bom. Mas, enfim, escrevo por necessidade, escrevo porque é realmente o ganha-pão, minha maneira de viver, de sobreviver. (...)

L.F.Verissimo: Eu não concordo com a ideia de que o escritor tem uma função social. É sempre por prazer, para fazer uma terapia individual, fazer literatura é ter uma história que tem que botar para fora, de alguma forma. Mas acho que é também uma forma de organizar o meu pensamento. Muitas vezes eu descubro o que penso sobre determinado assunto quando começo a escrever sobre aquilo. É a tua reação diante do mundo, diante das coisas. É uma maneira de botar as tuas ideias para fora.

Ventura: Eu acho que, no meu caso, tem também essa pretensão, do papel, da função social. Existe a vontade de escrever para comunicar, para intervir de alguma maneira, mostrar sua opinião ou sua indignação, ou o que seja, em relação a um fato, a um episódio. (...) Isso pra mim é uma motivação, mas a motivação de escrever é muito mais a necessidade. (p.130-131)

Prazer, necessidade, função social, exteriorizar um história, ou um pensamento... Entre as discordâncias de ambos, me veio um conto de Julio Cortázar.

Carta a una Señorita en París está em "La isla al mediodia". O conto inicia-se com o narrador remetendo suas palavras à Andrée, proprietária do apartamento onde o próprio narrador se encontra. Há uma queixa do narrador, na carta, que se refere à dificuldade por entrar em uma "ordem fechada", como ele mesmo anuncia de início, ou: "Me es amargo entrar en un ámbito donde alguien que vive bellamente lo ha dispuesto todo como una reinteración visible de su alma". Ele situa essa dificuldade ao lado dos coelhinhos vomitados por ele, fato que o levou a escrever a mesma carta. Não, não está errado, o narrador vomita coelhos ao longo da carta. Isso, aqueles animaizinhos brancos mesmo, eles vão aparecendo enquanto ele conta os dias vividos no apartamento de Andrée. Cortázar é conhecido por uma escrita demasiado alegórica, com metáforas pouco usuais para falar de uma determinada temática. Difícil é saber, assim, exatamente, o que o escritor argentino diz quando usa o "vomitar coelhos".... "Como siempre me ha sucedido estando a solas, guardaba el hecho igual que se guardan tantas constancias de lo que acaece (o hace uno acaecer) en la privácia total." O narrador do conto relata, ainda, que soube, que sentiu que logo vomitaria um coelhinho ao entrar na casa de Andrée, e foram dez desde então. Todos os coelhos estariam agora dentro do armário dela, dormindo durante a noite. Dessa forma, a empregada, Sara, parecia desconhecer a existência dos coelhos, uma existência apenas noturna: "Su día principia a esa hora que sigue a la cena, cuando Sara se lleva la bandeja con un menudo tintinear de tenacillas de azúcar, me desea buenas noches - sí, me las desea, Andrée, lo más amargo es que me desea las buenas noches - y se encierra en su cuarto y de pronto estoy yo solo, solo con el armario condenado, solo con mi deber y mi tristeza."
Amargura, tristeza, e angústia também, quem sabe, sejam materializados em forma de coelhos na carta, na qual o narrador justifica a escrita em um momento: porque gosta de escrever e pois chove, simplesmente, construindo um cenário de solidão e isolamento.

Com as discordâncias de Luis Fernando Verissimo e Zuenir Ventura, o conto de Cortázar talvez nos ajude um pouco, imagino. Mas, antes, é justamente por L.F.Verissimo e Ventura discordarem da relação que eles próprios mantém com a escrita, como escritores, que a produção deles se torna atrativa. Se fossem iguais, seriam chatas, provavelmente. Tal como o são, são belas em suas diferenças.
Já o narrador de Cortázar, quando está estranhando profundamente o apartamento de Andrée, diz que "las costumbres son formas concretas del ritmo, son la cuota del ritmo que nos ayuda a vivir". No caso dele, num "ritmo" de angústia e solidão, aparentemente. Enfim, isso me fez imaginar que a escrita pode ser um "costume", muitas vezes ligado à memória, também, e não necessariamente amargurado:

"Estando mais ou menos na metade da metade da minha vida (1/4), já me dei conta de que me esqueço de várias coisas que vivi. Trechos cotidianos, principalmente, que me deixam surpresa quando os recordo. Se isso já ocorre agora, quando eu estiver em outras décadas talvez irei acreditar que minha vida foi composta só das recordações mais fortes, algo que penso ser muito sacana por parte do meu cérebro. Eu não respirei apenas aquilo que me marcou, existiram zilhões de dias e momentos banais. (...) Se estou condenada a deletá-las da memória só porque é assim que as coisas ficam com o tempo, pra que as vivi então? (…) É por isso que escrevo tanto, pra sempre ter ao meu alcance minha vida inteira." (Lapsos, Fernanda Maria Ribeiro Fernandes)

Quando a escrita aparece entre a memória e os fatos da vida, quase como uma ferramenta de registro, nesse pequeno espaço entre elas parece surgir a criação, a invenção de algo que não é nem o acontecimento em si, nem apenas a lembrança, mas literatura.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Elite Responsável?

. . Por Thiago Aoki, com 11 comentários


"É reconhecidamente um dos pontos de comércio mais elegantes da cidade. A rua, de acordo com a Mystery Shopping International, foi eleita uma das oito ruas mais luxuosas do mundo, e é o mais pujante símbolo dos Jardins, região de São Paulo que concentra grande parte do comércio de rua de luxo do país. Uma ampla reforma foi realizada durante 2006 ao custo de 8,5 milhões de reais, com enterramento de fios e padronização do mobiliário urbano. Cerca de metade do valor das obras é de origem de verbas municipais. No convite acerca da inauguração distribuído à imprensa, lia-se em um trecho: 'Poeira, marteladas e barulho acabaram. No lugar dos operários, homens e mulheres bem vestidos e com a aparência favorecida em todos os aspectos voltam a circular pelas calçadas da rua Oscar Freire'." (trechos retirados do Wikipedia sobre a rua Oscar Freire, São Paulo)

Lá, na rua Oscar Freire, nas paredes de uma loja especializada em óculos de sol, acaba de ser inaugurada uma exposição com fotos clicadas por moradores de rua. Antes, os mesmos passaram por 5 meses de curso em fotografia digital. A ideia é fruto de parceria entre o Instituto Brasis e a loja Op Art, dos quais Marcos Amaro é presidente e dono, respectivamente. A exposição, na sequência, deve passar pela Daslu, loja de artigos de luxo localizada no bairro do Morumbi cercada por imensa favela.

Luz de Velas. Foto de Marli Pereira Dias, moradora de rua.
---

Há algum tempo, a mesma Daslu, cuja dona é Eliane Tranchesi, cedeu, polemicamente, espaço para o lançamento do excelente livro do rapper brasileiro MV Bill, intitulado "Falcão, meninos do tráfico", que relata situações de violência vividas por crianças das favelas brasileiras ligadas ao tráfico de drogas. À época, Lúcia Mineiro, socióloga - tinha que ser! - chamada para dar uma palestra durante o evento, causou alvoroço:

- "Estamos aqui na Daslu, no templo do consumismo! Isso aqui também é responsável pela violência."

Imediatamente, a líder comunitária da favela pegou o microfone, defendeu a - segundo ela - "amiga pessoal" e dona da botique, emocionando os clientes presentes.

- "O que essa mulher [Lúcia] falou não tem nada a ver! Misturou consumismo com violência! Estamos aqui num evento tão bonito..."

Por fim, foi a vez da própria Eliane, que nove meses antes havia sido presa por sonegação fiscal, advogar-se a si mesma.

- "Ela tem que entender que o consumo é bom! Nós, empresários, geramos empregos, pagamos impostos, gente!"

---

As imagens expostas na Op Art por moradores de rua impressionam pela qualidade das imagens e densidade autobiográfica que contêm em si, escapando de estereótipos ou dramatizações autopiedosas. Assim como o livro de MV Bill, além de muito bem escrito, mostrou um Brasil errante, até então pouco conhecido em tamanha riqueza de detalhes.

O que está em questão, no entanto, não é a qualidade dos trabalhos, mas a estratégia do "choque" provocado ao levar para a elite realidades tão contrastantes através da arte. Há tempos ouvimos sobre a "perversidade de nossa elite". Alguns pensadores reformistas defendem uma modificação cultural e humanista nas classes dominantes como condição para que haja o bem estar social - ou, nas palavras de Marcos "o capital é uma ferramenta quase sempre usada para gerar mais capital. Eu estou tentando entender como usar ele para criar cidadania”. Mas para mim, o argumento de diminuir o hiato entre as classes é inconsistente. Porque simplesmente não há um hiato, hiato algum, entre o consumidor da alta moda e o morador de rua ou traficante da favela. Há, sim, uma relação de interdependêcia e de dominação. Porque, em última instância, a socióloga está certa, todos queremos aquele tênis, aquele vestido, aquele sanduíche - seja qual for a classe. A "arte social", neste caso, posta à contemplação nas paredes ou limpando nome de marcas, não basta. É preciso algo maior que isso e menor que um assalto. Se quer tocar e modificar de verdade a elite, a arte à ela levada deve conter o tom de denúncia, mostrar sua responsabilidade como topo da pirâmide. Talvez a fala da socióloga pode ter sido uma boa tentativa, mas além de constrangimento e subsídio para essa postagem, pouco efeito surtiu. Isso porque dizer aos templos do consumo qual seu papel nesse circo de horrores ultrapassa os limites da vinculação da marca às questões sociais, "pega mal". Aí que está: Por mais que seja tudo bem intencionado, há um hiato, aí sim, entre o que transforma de verdade uma atitude e o que apenas serve como desencargo de consciência ou valorização da marca.

Esse é o ponto de meu ceticismo.

Espero estar errado.

---

Misturas Relacionadas

Filme: "Um sonho possível"

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Forasteiros

. . Por Thiago Aoki, com 3 comentários


Iñarritú, Bardem, Biutiful


Entre os destaques do lançamento do Festival de Cannes deste ano, estava o longa "Biutiful", do diretor Alejandro Gonzalez Iñarritú. Foi o primeiro filme que Iñarritu dirigiu depois de sua ótima parceria com o escritor Guillermo Arriaga que levou à trilogia "Amores Brutos", "21 Gramas" e "Babel". "Biutiful", título que remete à palavra inglesa beautiful, emocionou boa parte dos cinéfilos ao falar sobre uma Barcelona pobre e cerceada pela exploração à imigrantes.

Javier Bardem, muito elogiado pela crítica, faz o protagonista Uxbal, que jamais conheceu o pai, tem uma esposa problemática e cuida sozinho dos filhos. Para isso, "agencia" imigrantes ilegais - africanos e chineses.

Claro que, como a maioria dos brasileiros, ainda não tive a oportunidade de assistir ao longa, mas gostei de uma entrevista que li com o ator principal. Em uma das falas, o entrevistador pergunta algo como se não era estranho o artista ter participado como protagonista de dois filmes que mostram Barcelonas tão diferentes, referindo-se à pobreza de "Biutiful" e o glamour de "Vicky, Cristina e Barcelona", dirigido por Woody Allen. A ótima resposta do ator é a seguinte: "A Barcelona de Alejandro é a da corrupção e da exploração de imigrantes ilegais, sem a qual a Barcelona de Woody Allen não existiria. As duas realidades são interdependentes, dois lados de uma mesma moeda." Infelizmente o repórter, ou a edição da reportagem, mudou de assunto.

---

Banksy e os Simpsons

No último domingo, foi ao ar, nos EUA, uma polêmica abertura dos Simpsons, dirigida e produzida pelo polêmico grafiteiro Banksy, a pedido dos prdutores da série. O casamento dessa espécie rara de anti-herói marginal com a Fox, gigante da produção cinematográfica, só poderia mesmo ser, no mínimo, problemática. A animação é desde o início interessante com alguns toques notáveis do artista, e radicaliza-se no final, quando a câmera se afasta da fotografia tradicional da família sentada ao sofá, que encerraria a abertura. Uma nova fúnebre trilha sonora se inicia e a imagem escurece. Chega-se a um lugar insalubre, com diversos trabalhadores semelhantes, imigrantes ilegais caracturais e tristonhos, em uma linha de montagem para a confecção de produtos da minissérie. Além disso, evidencia a matança e maus tratos de animais que, tristes, cedem à lógica do lugar feito escravos. Após a forte e torturante cena, a câmera afasta-se mais um pouco e percebe-se que aquilo tudo está ocorrendo dentro do alicerce do emblema da Fox, que por sua vez está dentro de uma televisão - no caso, da televisão de quem está assistindo ao programa. Dá a entender, assim, que o espectador, acostumado a rir com as peripécias de Hommer e companhia, assite também a uma empresa cujo interior é composto pelo submundo da exploração do trabalho imigrante e de mazelas sociais. Diz-se por aí que as notícias sobre terceirização de trabalhadores coreanos por parte da megaempresa teriam "inspirado" o artista.

Eu não esperava menos de Banksy e de sua arte diversas vezes posta à prova pela Indústria Cultural. Por outro lado, devo reconhecer que fui supreendido pela exibição sem cortes do polêmico trecho. Seria mesmo contraditório a série que tem como cerne o exagero dos costumes e problemas americanos censurar uma brincadeira consigo própria. Ainda que toda brincadeira tenha um fundinho de...Bom, vocês sabem...



(Fiquei imaginando a abertura de uma novela ou "reality show" brasileiro qualquer. A câmera se afastando da imensidão tecnológica dos estúdios e chegando às vilas existentes na periferia de SP, com trabalhadores coreanos, bolivianos e peruanos - superexplorados pela indústria têxtil. No escuro da fábrica, a confecção em massa de vestidos e figurinos para a emissora. Claro que nunca houve essa ligação, é só realismo fantástico de minha parte...)

---

Tendo como ponto principal a questão da exploração de imigrantes, ferida aberta em boa parte dos países de "primeiro mundo", os casos de "Biutiful" e da abertura dos Simpsons demostram que é possível uma arte relativamente autônoma e contestadora desenvolver-se no seio da Indústria Cultural. Superando possíveis embates institucionais, tanto Biutiful fora ovacionado em Cannes, e deve concorrer a algumas estatuetas do Oscar, como a abertura dos Simpsons fora transmitida integralmente e é hoje um dos vídeos mais assistidos na web. Se é a fórmula mais eficiente e conceitualmente válida não sei, mas é uma boa maneira de equilibrar visibilidade, recursos e inovação - equação tão cara aos artistas de hoje. Não é preciso ser da periferia para ser marginal. Agindo nas brechas da corrente que tudo engloba, é possível fazer arte sem ser óbvio, simplista ou passivo.

---

Misturas Relacionadas:
Nous Sommes Tous Des Immigrés - Por Caio Moretto
Quem é Banksy? - Por mim mesmo

domingo, 10 de outubro de 2010

Minha Casa, Sem Endereço

. . Por Unknown, com 2 comentários

"Veja o mundo passar
Como passa
Uma escola de samba
Que atravessa
Pergunto onde estão
Teus tamborins?
Pergunto onde estão
Teus tamborins?
Sentado na porta
De minha casa
A mesma e única casa
A casa onde eu sempre morei..."

(Zeca Baleiro - Minha Casa)

Ouvia o trecho desta canção acima com estranheza, imaginando ser muito acomodada a posição do eu-lírico. Oras, que diabos é um sujeito pra dar uma sugestão como essa, uma espécie de Deus sentado numa nuvenzinha celestial?!

Depois de conhecer o trabalho do Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto, no Tatuapé, em São Paulo, outra perspectiva ganhou o mesmo trecho. No início daquele dia, quando conheci algumas unidades e projetos do Centro Social, passava por mim aquele filme de Sérgio Bianchi, Quanto Vale ou é Por Quilo?. No filme, o diretor explora a relação do discurso da responsabilidade social e da solidariedade que encabeça muitas atividades do terceiro setor, iniciativas atreladas à lógica do lucro, como se fossem empresas de marketing da miséria. Mas o Centro Social me pareceu muito distante do universo retratado pelo filme. De trabalhos com crinças com HIV, sem família, à atividades de reinserção social de população de rua, nenhuma delas se aproximava do objeto da desmedida crítica de Bianchi.

O trabalho que mais me chamou a atenção no Centro Social foi o 'Agente nas Ruas', em que hoje ex-moradores de rua ajudam pessoas em situações de rua. Um agente nos contava a dificuldade das pessoas de reconhecerem a própria situação delas, de procurarem ajuda nos postos de saúde, por exemplo, diante de qualquer problema cotidiano. Muitos não têm documentos de identidade, e não conseguem assumir, também, que não têm residência. Fomos conhecer uma região onde vivem muitas pessoas, abaixo de um viaduto movimentado e ao lado de linhas de metrô.

E então o trecho de Zeca Baleiro me pareceu assustador. Saímos da calçada da avenida abaixo da ponte e caminhamos, subimos e subimos até bem próximo do concreto do viaduto. Por fim, avistamos um porção de madeiras e lajes dispostas verticalmente, ao redor de onde começava um trecho da ponte. O agente se aproximou e bateu nas portas, pediu licença para entrarmos e, assim, passamos adentro.

Um rapaz, muito contente com a presença de três estudantes, nos apresentou cada um dos cômodos da residência. Ao entrar, passamos por uma varanda onde brincavam algumas crianças, em seguida, estava a sala com três sofás dispostos circularmente, uma mesa no centro e uma televisão na lateral de um dos assentos. Logo depois, bem atrás, reconhecia-se a cozinha com a mesa maior no centro, um vaso de flores e as cadeiras ao redor. Guiados pelo rapaz que nos recebeu, passamos aos quartos: duas caçambas, e algumas barracas de lençóis. Pareciam viver ali, mais ou menos, cinco famílias. Não havia paredes, claro, mas as marcas de cada espaço eram evidentes. O teto era a ponte, o som ambiente vinha do trânsito, da chuva e do metrô, e o cheiro de álcool perpassava os cantos, também.

Momento cômico: quem nunca brincou de Tartarugas Ninja? Santa Tartaruga! (risos) O espaço de higiene, como o truta nos dizia antes de nos levar até a boca de acesso à rede de água, que passava no alto e ao fundo, já fora da proteção da ponte, não parecia esgoto, tampouco a rede de abastecimento propriamente. Pelo que ele dizia, enquanto baratas e animaizinhos diferentes corriam de um lado ao outro, ali corria a água de alguns condomínios da região, com um desvio feito por eles, que usavam aquela água para o banho, mas brincavam ser o espaço das "Tartarugas Ninja". Constrangedor.

Se fosse (d)escrever o dia, os espaços visitados, as conversas, enfim, leitor preguiçoso, você teria um filho colorido. Conto ao meu terapeuta pequeno burguês, como eu, depois, e te poupo de arrastar a barra lateral.

Porém, pensei naquele rapaz pedindo pra que eu cantasse o trecho inicial, aqui, da canção de Zeca Baleiro. Os meus tamboris certamente eu não encontro. E, talvez, pudéssemos pensar então em "casa" como uma grande metáfora, para sair da imeeensa desigualdade social que nos acompanha, porque aí a discussão se alongaria muito.

Criar a própria casa independente de paredes e localização espacial pode ajudar quando tratores e ladrões, dos mais variados tipos, te levam o abrigo e a paz.



domingo, 3 de outubro de 2010

Eu confesso...

. . Por Thiago Aoki, com 5 comentários

Esses dias, sem querer querendo, caiu no meu colo uma linda crônica de Tostão - fantástico futebolista e futebólogo. Dizia ele que é mentira a máxima segundo a qual a bola procura o craque. Pelo contrário, é ele que busca e encontra o lugar certo, na hora certa. "O grande craque, além da técnica e da habilidade, antevê o lance, inventa, improvisa e surpreende. Ele sabe antes dos outros. Como ele sabe? Sabendo. Existe um saber intuitivo que antecede o raciocínio lógico. Ele sabe, mas não sabe que sabe." ("O Corpo, a Alma e o Futebol" - Folha de São Paulo, 12/02/2006)

Para escrever essas linhas, Tostão deve ter pensado nos grandes mestres da bola, como Pelé, Cruyff, Romário. Ao lê-las, no entanto, me vêm à cabeça Drummond, Van Gogh, Cartier-Bresson. Que diabos havia na na cabeça do poeta mineiro no momento em que escrevia seus poemas? Ele aliás, tem uma célebre frase sobre Pelé: "O difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols como Pelé. É fazer um gol como Pelé". O mesmo poderíamos dizer sobre sua poesia tão inovadora, e tão já sabidamente eterna. E Van Gogh, com sua pincelada única, que força estranha possuía suas mãos guiando seu pincel de modo que nenhum outro pudesse imitá-lo? Deve ser algo semelhante ao clique da câmera fotográfica de Cartier-Bresson, cujo instante, estático na foto, movimenta-se em nossos devaneios após contemplá-la.

Todos sabiam os conhecimentos específicos de sua área de atuação: literatura, pintura, fotografia. Mas não podemos considerar apenas uma técnica apurada. Algo ali os distinguiam da média. Algo não concreto, não didático, intuitivo, impossível de se quantificar ou coisificar, que nos permite e obriga a ficarmos encantados. Um saber para além da lógica, beirando o metafísico. Nosso próprio encantamento não depende do conhecimento estrito e racional. Não é preciso conhecer o movimento na harmonia musical ou a tonalidade em que se dá a progressão das notas para se encantar com "Jesus, alegria dos homens", obra imortal de Bach ou com o violão de Baden Powell. Acho que é isso: as obras desses artistas estão tão carregadas de inspiração e intuição, esse sexto sentido que Tostão descreveu, que não há como não nos entregarmos a elas.

E o que faz de uma obra medíocre seria o contrário. Podemos acertar o emprego de todas as crases e pontuação de um texto, mas odiarmos seu conteúdo ou forma. O texto de jornal, aquele que relata friamente uma notícia, diferencia-se de uma grande obra literária porque, por mais correto ortograficamente, não contem a subjetividade que a inspiração de seu autor poderia adicionar ao nosso cotidiano. Claro que cada um inspira-se de um modo e talvez seja apenas uma ideia minha pensar que Chico Buarque é melhor que Felipe Dylon. Como também há, quem sabe, quem prefira Felipe Melo ao Garrincha. Gosto é gosto e vice-versa.

Mas o que fazemos quando, apaixonados e esperando por Garrinchas, encontramos apenas Felipes Melos? Se ao nosso redor não encontramos praticamente nenhum resquício de nossas referências, de nossas inspirações, outrora completas? Se nada fosse suficiente para preencher qualquer tipo de esperança?

Chame do que quiser: vazio da modernidade, mal estar da pós-modernidade, fim das utopias. Mas eu simplesmente não aceito o menos pior, o básico. Aquele que, com muita sorte, tem apenas o conhecimento técnico da coisa. Que longe de inventar ou surpreender, padroniza, torna estático o que seria sublime. Aquele que é pragmático, utilitário e funcional - apenas.

Prefiro simplesmente me abster, esperar, enquanto busco noutros cantos outros encantos. Não quero levar comigo o desalento forçoso de achar magia onde não há. Como pode ser tão grande a distância entre o cheiro fétido que inalamos e o perfume suave e sedutor que deveríamos sentir? Nego-me a contentar com tão pouco, com o que não inspira... Nego-me a alimentar com comida podre para saciar a gula..

Nego-me a escolher entre o sórdido e o inconcebível.


Qual a confissão? Anularei meu voto no segundo turno das eleições de 2010 para presidência do Brasil. Por enquanto...

    • + Lidos
    • Cardápio
    • Antigos