segunda-feira, 4 de março de 2013

Django - A mão que segura a navalha

. . Por Thiago Aoki, com 2 comentários


Quando lançado, Django Livre foi considerado um filme polêmico por tocar em um ponto delicado do passado norte-americano, a escravidão. Ledo engano. Para mim, a força política do filme de Quentin Tarantino está justamente no fato de que seu roteiro questiona, na verdade, os dias atuais.

Quando, por exemplo, "imbecializa" a elite que compõe a Ku Klux Klan, impossível não nos lembrarmos das situações surreais de jovens com pouca idade e muito conservadorismo no coração, que em plena juventude têm propostas conservadoras tragicômicas como a refundação do Arena ou o protesto contra as cotas nas universidades públicas.

O filme inteiro dialoga com o presente, muitos seriam os exemplos, mas provavelmente o personagem de Samuel L Jackson seja o mais sintomático. Um escravo que faz o jogo da escravidão. Semelhante a Prudêncio, escravo presente na obra de Machado de Assis, que quando conquista a alforria vai logo comprar um escravo para si. Ou ao subalterno do mundo corporativo que apanha de quem está em cima e bate em quem está embaixo no organograma da empresa.



A situação de reprodução social é retomada em um dos melhores diálogos do filme. Com o crânio de uma caveira na mão, o escravista interpretado por Leonardo Di Caprio conta a história de Ben, um falecido escravo, antigo barbeiro da família. Ele vivia o horror da escravidão na pele e estava todo o dia com a navalha no pescoço do seu dono, então por que não cortava a sua jugular? Para explicar, ele se vale de um discurso cientificista, segundo o qual o cérebro do negro possuía o gene da subserviência. Talvez uma brincadeira com o peso que damos às “verdades científicas” e aos “esclarecidos” que se pousam como neutros, mas nada mais fazem que justificar nosso modo de vida desigual.

Assim como em Bastardos Inglórios, onde uma sobrevivente judia resolve vingar-se de Adolf Hitler, Django
Livre mostra mais uma vez a história de um indivíduo que, por motivos pessoais, vê-se obrigado a atuar contra o sistema social vigente. Sujeitos que enxergaram para além do paradigma, da bolha invisível que deixa as relações sociais nebulosas. Personagens que até então eram esmagados pela estrutura social e que resolvem fazer algo. O êxito da vingança é quase uma recompensa, impossível não se deliciar ao assistir à explosão da casa grande ou com o incêndio do cinema nazista, por mais imoral e violento que pareça.

Como disse no começo, tenho pra mim que Tarantino não fala sobre a época do nazismo ou da escravidão, mas sim dos dias de hoje, tanto que parece pouco se importar com a veracidade histórica das cenas. Ele se vinga do passado para questionar o presente. Há um século era normal que um negro não pudesse ter seu próprio cavalo ou entrar em um bar (embora muitos estabelecimentos e instituições ainda pensem como no século retrasado). E hoje, o que consideramos normal e que daqui a um século será considerado absurdo? Noutras palavras, o que de absurdo vivemos como normal? O sistema financeiro? A homofobia? A péssima distribuição de renda? Intolerância religiosa? A democracia representativa? 44 horas de trabalho?

Cada um elencará seus palpites. Mas Django Livre mostra que é preciso ir além da consciência do absurdo que se tornou normal no dia-a-dia. É preciso saber se, tendo a navalha conosco, teremos a coragem de cortar o pescoço ou apenas apertaremos a mão de nossos senhores, selando assim nossa própria inércia diante do mundo.


2 palpites:

Gostei do texto, Thiaguera.
Mas tenho cá minhas dúvidas sobre essa divisão entre o "passado" tal como abordado no filme e o "presente" que ele interpela. Claro, estamos de acordo que não há muito rigor histórico. E nem acho que deveria. Mas e se pensarmos no fato de que o mundo de hoje só é o que é pelo fato de ter sido construído sobre a violência da escravidão? Aí, acho que passado e presente se juntam. Não só pela possibilidade latente de resitência, mas por uma série de continuidades.
Diga lá o que você acha e podemos papear mais.
Um abraço,
Rodrigo

gostei muito do texto também. o filme é ótimo.

concordo com o Rodrigo, acho que a gente faz muito o "passado" e o "presente" como pretexto pra poder começar a falar sobre as histórias. o que se sobressai, no entanto, são as continuidades. é "passado" quando não se tem mais as vidas e a possibilidade - absurda - de equiparar violências, torturas, etc. por isso a vingança na tela do cinema, a imaginação fazendo o papel daquilo que seria, hoje, outro absurdo fora dela, acredito. mas é "presente" quando ao menino no Rio de Janeiro lhe pedem que saia de concessionária BMW, afinal, quem ele pensa ser, "a nigro on the horse"?! é "presente" quando o racismo é cotidiano, nos EUA, no Brasil, enfim... por isso também me soaram tão fora do lugar as palavras do Spike Lee, algo como não se poder falar de forma cômica(?) da "honra dos antepassados". mas qual é esse passado, se o filme é tão atual? de novo, são continuidades.

uma coisa que tá no filme ainda é a violência do não dito, a violência do não visto. é a cena dos cães. nos filmes que vi do Tarantino, durante todo o Django também, é morte, sangue, catchup pra todo lado, pastelão. até a ironia, o deboche é jogado na nossa cara sem delicadeza. é tudo muito explícito, menos nessa cena dos cães, no Django. e é aterrorizante essa cena. se cinema é uma forma de ver a imaginação do diretor, ou a nossa, Tarantino inverte nessa cena, ele provoca a imaginação do espectador. é como se ele dissesse: por mais que eu tente fazer vocês verem e ouvirem, com diálogos, com palavras e imagens pesadas, por mais que eu queira que vocês pensem sobre isso, o horror só vai lhe desesperar quando sua própria imaginação te fizer enxergar.

abraços

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