VÍDEO: MURILO CAMPANHA CONTA ITATINGA

O psicanalista Murilo Campanha fala sobre Itatinga, um dos maiores bairros de prostituição da América Latina, onde ele tem seu consultório.

O nadador

Uma crônica de Hugo Ciavatta.

Ainda que as bolachas falassem

Crônica de Fábio Accardo sobre infância e imaginação

Ousemos tocar estrelas

Uma reflexão de Thiago Aoki.

Entre o amarelo e o vermelho

Uma crônica de Hugo Ciavatta

O homem cordial vinhedense

A classe média vai ao barbeiro. Uma crônica de Caio Moretto.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Novembro

. . Por Unknown, com 0 comentários





Passei os últimos dias aflito com o telefone, qualquer tilintar pela casa eu já corria os olhos atrás do meu celular. A campainha do vizinho tocava e eu me via ao lado da televisão, onde também está o telefone fixo, acreditando receber uma ligação. Deixei de ignorar as três vezes semanais, ou quase que diárias, em que a operadora de telefonia me liga para oferecer um plano super especial de bônus, mensal, semestral, anual, intersecção com internet, SMS - sim, ainda existe -, conta bancária e crédito pessoal - não entendo como é possível -, mais chamadas de larga distância gratuitas e canais de esporte underground. Atendi todas as ligações crente de que era algo importante, imprescindível, sem ter um motivo, sem ao menos ter uma razão. Tudo o que tinha era apenas um sentimento, um impulso, um reflexo. Mas descobri o porquê hoje pela manhã, estou aliviado. Estamos próximos do fim do ano, em breve vem o Natal: tenho esperado Papai Noel me ligar.

Véinho meu pai é uma pessoa que gosta muito das pessoas, mesmo que não saia por aí demonstrando afeto, sorrindo, cumprimentando e fazendo coraçãozinho com a mão. Ainda que a vida distancie as pessoas, é notável como meu pai gosta de algumas dessas pessoas pela forma com que se interessa por elas, querendo saber delas. É velho fofoqueiro. Pra sacar isso vai um tempo, talvez anos, ele jamais vai admitir, e começo a achar que seja uma virtude - se é que existe isso -, a de não deixar que todos saibam o que quer que seja sobre você. Sendo bem objetivo, ele ultimamente andou perguntando do Rafael, seu sobrinho e meu vizinho. Eles não se veem faz anos. Outra coisa que véinho meu pai lembra bastante é que, uma vez, ficou bravo com Ricardo, também seu sobrinho, mas isso me envolve, e envolve, inclusive, Papai Noel. Ah, como eu gosto do Ricardinho e da Gi, ele diz, puxando o saco, mas aquela vez - meu pai é um escorpiano típico, quando ele diz aquela vez, hmmm, tremei-vos -, aquela vez eu fiquei muito bravo com o Ricardinho.

Não sei quantos anos eu tinha, eu não me lembro, provavelmente eu era muito pequeno, véinho meu pai diz que fez Ricardo me desdizer que Papai Noel não existia. Como qualquer criança que se preze, enquanto se aproximava o Natal, eu não estava nem um pouco preocupado com o nascimento do comunistinha do Jesus de Nazaré. Aniversariante de dezembro, seguramente eu calculava em voz alta o que pediria ao Papai Noel e o que deixaria a cargo dos meus pais no início da constelação de sagitário. Ricardo, alguns anos mais velho, deve ter sacado e, por esporte, mandou logo o clássico, "Papai Noel não existe, prestenção". Inquirido, meu pai, em vez de responder à materialidade das coisas, quis as fontes: sobrou pro Ricardo a bronca.

Como eu não me lembro dessa história, também não me recordo o que ganhei naquele Natal. De todo modo, presentes que me marcaram foram dois. De criança, um autorama enorme, desses que não cabe na sala, não cabe no quarto, que dá trabalho enorme pra montar e faz a gente passar dias com os olhos presos ao chão seguindo aqueles carrinhos velozes. Já adolescente, foi uma bicicleta, que me acompanhou durante mais de dez anos, desaparecendo roubada já no fim da faculdade. O autorama eu tenho até hoje, precisando ser montado dia desses pra desenferrujar. A bicicleta, arma ideológica dos comunistinhas de São Paulo, me faz muita falta. E não, não foi Papai Noel quem me deu esses presentes, eu já sabia naqueles anos, mas ainda não podia afirmar em casa. Papai Noel ligava todos anos em novembro pra saber como estávamos minha irmã e eu. Aval eu não tinha pra desacreditar aquela voz rouca e engraçadinha do outro lado da linha enquanto Helena era criança devota de Papai Noel, mesmo que a adolescência já tivesse me feito pedante. Lá estávamos em novembro, o telefone tocava, meu pai atendia, nos chamava e dizia, cheio de cuidados, é o Papai Noel, ele quer conversar com vocês. Só sendo muito sacana pra levar uma história dessa tantos anos e assistir aos filhos ali, delirando no telefone, sem dar bandeira, em silêncio, ao seu lado no sofá.

Levei muito tempo pra entender uma coisa besta, meu pai curtiu muito a infância e a adolescência minha e da minha irmã. Sessões de teatro, sessões de circo, uma atrás da outra, sessões de teatro, sessões de circo. Vamos andar de bicicleta, vamos nadar. Sessões de teatro, sessões de circo. E, evidentemente, telefonemas do Papai Noel. Se deixar, não duvido que véinho meu pai vá até hoje no fim da madrugada buscar a caçulinha numa festa do outro lado da cidade. Ainda volta falante, contando uma história qualquer de gafieira nos anos 1960. Vai ver que o registro em cartório que deram ao véinho meu pai, de seu nascimento, somente no dia 20 de novembro, explique o seu proceder de leitor de jornais velhos, já que nasceu no dia 10. Até pra completar anos ele leva uns dias pra ser reconhecido oficialmente. Leva tão a sério a coisa de viver demoradamente, quase que duas vezes as coisas todas da vida, que viveu até mesmo a vida dos filhos.

Feliz aniversário, pai, seu mimado, chorão. Obrigado, claro, pelo autorama e pela bicicleta, mas também por ter me feito atormentado pelos telefonemas do Papai Noel. Te amo, do seu filho, piolhento.


segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Os jornais de meu pai

. . Por Unknown, com 0 comentários




Desde que o mundo é o meu mundo, meu pai lê jornais velhos. Do dia anterior, da semana passada, de fevereiro, não importa, ele já foi até mesmo flagrado lendo jornal velho de dois anos. Não é por distração, como quem abre uma caixinha de bombom abandonada no canto da sala imaginando encontrar o paraíso e descobre itens de corte e costura, não, é uma resolução de vida inexplicada, injustificada. Também não é por interesse científico, como um pesquisador, um historiador do cotidiano. Às vezes, penso que esquecido que é do dia a dia, ele lê jornais velhos pra memorizar o que acontece no mundo. Noutras vezes, acho apenas que há quem penteie os cabelos pra direita, há quem prefira a esquerda para as madeixas, uns, pra trás: meu pai lê jornais velhos, só isso.


Com os olhos ainda ligeiramente roxos depois de atropelado, veinho meu pai tem se dedicado efusivamente aos jornais velhos nas últimas semanas. Entre um caderno de notícias Mundo da semana passada, outro sobre Economia, de ontem, ele assiste a Crimes que Desafiam a Justiça, ou coisa que o valha, na tevê a cabo. Deixa a tevê sempre com dois ou três tipos de impressos diferentes, de dias sortidos, e leva-os numa sacola, sentando-se numa cadeira, na calçada, pra tomar sol. Na tevê, não o peguei mais vendo Datena, porque se o faço, ele sabe que dou bronca. Sou bravinho, além de contra o Datena e o Marcelo Resende. Dos impressos, Reinaldo de Azevedo é um que ele sequer pode mencionar, suo frio só de escrever o nome dessa criatura.



Tenho insistido faz anos pra que ele volte a estudar. Ele nega, diz que não tem mais cabeça, que não adianta, não gosta de ler os livros que eu leio, essas ficções, aponta pra estante. Tem um ar de Fahrenheit 451 a fala, eu me arrepio, mas fico quieto. Para não deixá-lo sossegado – afinal, devo fazer jus ao piolhento –, contragolpeei com precisão à última negativa dele: dei minha dissertação exigindo comentários. Véinho meu pai fez cara de me deixa em paz, suspirou mas pegou o texto. Quem não tem sossego agora sou eu, tomar café da manhã e almoçar virou exame de qualificação, banca de defesa. Pergunta daqui, pergunta de lá, ele tá lendo mesmo.



Tá rápido no proceder até. Senhora minha mãe, inclusive, andou revendo a teoria sobre os jornais velhos de véinho meu pai. Para ela, ler jornais velhos é como meu pai acontece, em futuro lento, num presente estendido, ou num passado demorado. Senhora minha mãe ainda não encontrou um conceito que possa resumir tais características de véinho meu pai. Sugeri a noção de eterno retorno, de Nietzsche, ela desconstruiu, disse que não tem nada de eterno, nada de retorno. As coisas acontecem, meu pai, serelepe, passa por elas como se nada tivesse acontecido e, ploft, uma semana depois, a coisa já acabada, ele se dá conta do acontecido como presente, e só então o vive decididamente. Vive quase que duas vezes, ou, melhor dizendo, numa única e demorada vez.



Explico, exemplifico. Um dia ele chegou da oficina empurrando a bicicleta no começo da noite. Ué, furou o pneu, bem, perguntou senhora minha mãe. Não, me senti mal subindo a avenida, parei um pouco, daí resolvi vir caminhando, respondeu o véinho. Mas tá tudo bem, o que é que foi. Ah, não foi nada. Não foi nada naquele dia, porque seis dias depois lá estava ele na mesa de cirurgia, estava infartado. Foi assim, também, com o atropelamento, uma semana depois descobriu que estava com a perna quebrada. A vantagem dessa teoria, senhora minha mãe afirma, é dar perdido na morte, ganhar tempo.



Outro exemplo, mais prosaico, foi hoje pela manhã. Mas isso só na próxima semana, seguramente, é que véinho meu pai estará contando por aí. Enquanto tomava sol na calçada, de ceroulas, lendo jornais velhos, com a perna fraturada apoiada, um popular com a camisa da seleção brasileira de futebol cruzou a rua de bicicleta e lhe gritou:



- Vai pra Cuba, velho barbudo!



Tão longe do marxismo, do leninismo, do trotskismo, de Fidel Castro, ou da Guerra Fria, tão perto da seção de quadrinhos e astrologia, véinho meu pai virou-se pra dentro de casa dizendo:



- Ô bem, cê ouviu, cê viu isso, bem?! Não entendi.



Senhora minha mãe vinha no corredor, e antes que a distância afastasse a compreensão do ciclista, também gritou, em resposta:



- Vai se fuder, filha da puta!



sábado, 4 de julho de 2015

Pósfacio

. . Por Unknown, com 0 comentários



Ao Saulo, que era gaúcho por inveja e agora é mineiro; ao Renato, que continua gostando de queijo; ao Fábio, que tem covinhas, faz um café horrível, só reclama, choraminga e faz drama, por ser único em organizar bagunças dizendo que fez limpeza, mas também por ser imbatível em cruzada de pernas, caras, bocas e sobrancelhas; ao Thiago, meio japonês, meio paraguaio, completamente barrigudinho e bundudo, corintiano e pagodeiro; ao Rodrigo, de quem é melhor não fazer comentários, porque ele se preocupa; à Rita, que insiste em usar roupas amarelas e torcer para o Palmeiras, defendendo igualmente as formigas e o Brasil; ao André Lopes, que virou advogado, desvirou advogado, e será sempre Malinowski; à Lais, que gosta de gatos, cachorros, plantas e de algumas pessoas; ao Patrick, por nunca ter resolvido as paradas na manhã seguinte; ao Caio, por ser grande; à Mari, pelo Caio, e por ter carregado o Samuel por nove meses; ao Mekaru, por ser japonês, nerd, fofinho, teimoso e por se apaixonar muito facilmente; ao Sydnei, que usava bandana e agora vai de topetinho; à Tatiana, por saber tudo de todos os filmes; ao Thiago Peixe, o maior implicante boa vida que se tem notícia; ao Arthur, cujo apelido não faz o menor sentido, mas nunca perde a piada, por ser elegante, perfumado, e jogar conversa fora como ninguém; ao Felipe, por gostar de Guimarães Rosa e falar campinerês fluente; à Natália, que depois que virou bibliografia e, além do mais, carioca, ficou ainda mais popular, e que faz a cara de assustada mais bonita do mundo; à Fernanda, por ser chique e desfazer falsas impressões; ao Samuel, que eu via pela mãe, Neidmar – e de quem eu sinto muitas saudades; à Thais, por ter cabelos encaracolados e enganar todo mundo dizendo que não fala mais palavrão; ao Ariel, que virou antropólogo, mais que todos nós; à Renata, Aline e Liliane, pelos anos na Moradia, e também à Iona, ao Mário, ao Gabriel, ao Marcelo e ao Piá; ao Cadu, por tocar piano, sanfona, ou algo parecido; à Ruth e ao Peter, por serem gringos e com outro Samuel; à Lara, por ser impossivelmente engraçada; ao Julierme, por não ser cachorro banguela e sorrir por qualquer coisa; ao Lucas, que era só um bebê e, agora, meio sociólogo, mas, felizmente, músico; à Camila, que é japinha mas parece índia, que é linda, vegetariana, zen, budista, hare krishna ou algo semelhante; à Elisa, que é igual à Camila, só que dança, não é japonesa nem parece índia, mesmo que adore uma aldeia e caminhe afundando o chão; à Olívia e ao Xuxa, que, apesar de antropólogos, até podem ser legais; ao Henrique, pai do André, da Clarinha e do Diego, por gostar muito de sociologia e, pelo menos, estudar Simmel; à Luisa, que leva Victória no nome, só gosta de pudim se for de leite, adora bichinhos e vive arrumando um “mas e se?” pra tudo; à Stella, que mexe nos cabelos quando está nervosa e, quando não está, também, e de quem é impossível não pegar no pé; à Roberta, por se confundir desconfundindo; ao Diego, por ser rabugento; ao Julian, que usa óculos grandes, carece de palavras mas sobra em gestos e passos de dança iugoslava; à Ana Carolina, que cai a todo momento, levanta-se, sorri e dança; à Bruna, por ser um mito, uma diva, uma musa; à Aline, que é mãe da Flor; ao Igor, pai da Dorinha, pelas dicas de moda; ao Inácio, por rir de si mesmo; à Patrícia, por fazer assim ¬¬; ao Carlos Eduardo, pelo Cruzeeeeiroooo; à Desirée, por falar xis, xis, xis em tudo; à Mariana, pelas gargalhadas que dá; ao Ernenek, por se vestir igual a mim e ser incomparável na invenção de expressões; ao Bernardo, por ser confuso e pai do Mateus; à Graucia, Glacia, Gracia, Glauciela, Godofreda, ou só Glaucia, anyway, que gosta de frases nos muros; ao Berhman, pela Marie Claire e pelo Clement; à Rapha, porque, cara, mano, tá ligado, issae; à Nanda, oh my...; à Teresa, hasteg ésse dois; à Fernanda, pela Gancho; ao Lucas e aos Felipes, pelos vinhos e queijos, cervejas e amendoins; à Millena, por ter certeza de que era o Álvaro quem atendia a porta; à Luisa, por ter espírito tia; à Helena, por ser chata, dorminhoca, chorona e ridícula; ao Adriano, por ser tagarela; à Lis, por ser boboca - enfim, deu pra entender -, gente: muito obrigado.


sexta-feira, 26 de junho de 2015

Coluna do Leitor - Deportações e usos da História

. . Por Mistura Indigesta, com 0 comentários



Narrativas históricas e as deportações iminentes na República Dominicana


Em Milot, vilarejo ao norte do Haiti, a cada dia aumenta a incerteza quanto ao futuro de familiares que cruzaram a fronteira para a República Dominicana. Muitos esperam a chegada massiva de pessoas que serão alvo de expulsão, nomeado pelo eufemismo de “repatriação” do lado dominicano, e outros tantos confiam na possibilidade de que seus parentes consigam escapar da polícia. A lei 168-14, votada pelo Tribunal Constitucional Dominicano, em setembro de 2013, jogou retroativamente milhares de haitianos(as) e dominicanos(as) de origem haitiana em um verdadeiro limbo jurídico. No dia 17 desse mês, chegou ao fim o duvidoso Plano de Regularização de Estrangeiros, e milhares de pessoas nascidas a partir de 1929, julgados como pessoas "em trânsito", perderam sua cidadania por não terem conseguido comprovar a residência de um de seus pais.

Para isso, o Estado e parte da opinião pública da República Dominicana encontram justificativa na (re)produção de uma narrativa histórica de argumentos simplistas, isolados e distorcidos que ganha ares de consenso na mídia dominicana e encontra ecos em jornais estrangeiros: os conflitos e o ódio racial entre as duas nações deita raízes no início do século XIX, precisamente em 1822. Nesse ano, o Haiti, já uma nação livre e independente, fruto das guerras anti-coloniais e de um projeto abolicionista efetivamente universal, estendeu sua jurisdição ao lado dominicano - ainda uma colônia espanhola - unificando a ilha e decretando o fim da escravidão em todo o seu território. O movimento nesse caso é feito por meio do silenciamento de fatos como a participação efetiva e o apoio de vilarejos e de grupos dominicanos à unificação. A esse conjunto de esquecimentos seletivos e oportunistas soma-se ainda a importante participação do Haiti na guerra pela segunda independência da República Dominicana, em 1865, por meio do auxílio às tropas revolucionárias que buscavam suprimentos e munição do lado haitiano e na participação efetiva de colaboradores haitiano-dominicanos no conflito.

Revisões sobre tais episódios foram levadas a cabo por intelectuais-políticos como Juan Bosch, cujo projeto político foi solapado por um golpe de estado de um outro político também afeito à produção de narrativas históricas, o ditador Rafael Trujillo. A partir de 1930, Trujillo iniciou um projeto de “dominicanização da fronteira”, destruindo um rico universo social marcado por trocas, trânsitos e liberdades. Seu projeto político ganhou ainda um viés ideológico centrado, sobretudo, na consolidação do “anti-haitianismo”, política identitária baseada na produção de essencialismos e preconceitos frente à população vizinha, tendo como um dos seus mais marcantes resultados o sangrento massacre de 1937. A simbólica data de 1929 parece ter sido cuidadosamente escolhida pelos juristas que votaram a lei 168-14, desrespeitando a memória desse evento e tentando, sem sucesso, desvincularem-se do fantasma do ditador.

Nesse jogo de produção de narrativas deturpadas e de aplicação de políticas discriminatórias, muitos residentes da República Dominicana começaram a sofrer as consequências dessa lei, aprovada em maio de 2014, expostos(as) a ameaças de expulsão, a abusos e à perda de direitos. Na reprodução de uma imagem de um imigrante perigoso, "em trânsito" e atavicamente atrelado a fatos históricos equivocados, tira-se do campo de visão (e do próprio domínio da razão) a quantidade de riquezas geradas pelo trabalho de haitianos e haitianas nos campos de arroz e de cana-de-açúcar e na construção civil por todo o país.

Se voltarmos ao vilarejo de Milot, o auxílio que familiares vivendo fora do país enviam por meio de remessas garante uma maior diversidade de fontes de renda e a possibilidade de dar conta de instabilidades ecológicas, garantindo recursos para o plantio e a colheita. Recursos muitas vezes mais efetivos do que os planos e projetos de ONGs na região. Se pensarmos ainda no cenário da capital, Porto-Príncipe, devastada pelo terremoto de janeiro 2012, as remessas garantem a continuidade dos esforços de reconstrução de modo mais eficaz do que qualquer outro organismo que tenta gerenciar do alto os enormes fluxos da ajuda internacional.

Na definição das políticas de “lei e de ordem” na República Dominicana, narrativas sobre o passado e a escrita da história tornam-se objeto de disputa pública com atores em posições marcadamente desiguais. Se o passado poderia ser a matéria de um futuro imaginado como um lugar de grandes esperanças, como o é para tantos que migram "buscando a vida", ao invés disso, incertezas se multiplicam em meio a violências que ganham a chancela e a mão pesada do Estado.

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Algumas organizações na República Dominicana que lutam por direitos civis:




Rodrigo Charafeddine Bulamah, de Rondonópolis para o mundo, mestre e doutorando em antropologia pela UNICAMP, atualmente realiza trabalho de campo no Haiti.

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Falha moral

. . Por Unknown, com 0 comentários





Julgo livros pela capa. Entrei na livraria do shopping e me deparei com Fidel Castro fumando um charuto, pensei: é um livro feito pra mim! Julgo-me um guerrilheiro, um estadista, acredito-me capaz de discursos intermináveis. O livro estava entre os mais vendidos: desconfiei, sou para poucos. Peguei-o, folheei-o, vi o sumário, li a orelha, dizia que era uma bomba contra a esquerda, desfazendo mitos da esquerda, mostrando a falácia - usava palavras rebuscadas - moral, a hipocrisia dos costumes da esquerda brasileira. Tiro conclusões precipitadas, também. A questão do livro era mostrar que enquanto as pessoas se dizem de esquerda, essas mesmas pessoas, por exemplo, vestem-se de Lacoste. Quer dizer, desde muito, a esquerda tem gostos de burguesia. Vesti a carapuça e, como bom católico, confesso-me.

Pouca gente sabe, felizmente, no meu meio, nos meus círculos sociais versados em progressismo e descolação, mas tenho um defeito de caráter imperdoável: gosto, ou melhor, sou aficionado por tênis. Não, eu não tenho uma coleção de New Balance anos 80', outra de All Star, tampouco tenho um arco íris de cadarços, por favor, para cada modelito de pisante que uso. Sou obcecado pelo esporte da bolinha e da raquete, das quadras de saibro. Levo horas vendo uma partida de cinco sets, perco finais de semana acompanhando as últimas partidas de torneios, viro noites apenas para acompanhar duelos entre grandes jogadores e, infelizmente, só por hoje, ainda não voltei a jogar.

Sim, eu sei jogar tênis. Sei jogar de verdade, não é aquela coisa de apenas brincar no fim de semana e ir lá numa quadra vazia num domingo qualquer com o sobrinho da vizinha e se sujar de terra batida no clube de infância. Dá licença: eu tenho estilo, tá, meu jogo é clássico, meu backhand é de uma mão só, gosto de saque e voleio, não sou empurrador de bola não, tá. Só que entre a pose e a prática, ai ai, lá se vão dez anos sem jogar com regularidade.


- Playboy: esporte de playboy, Hugo! - já posso imaginar os comentários que receberei, os unfriend que estou ganhando a partir de agora.


Dou unfriend, ora, por muito menos. Foi meu pai quem me ensinou a jogar, eu tinha uns 13 anos. Apenas me lembro que entre os 4, 5 anos, nossos finais de semana eram em quadras de tênis, meus primos e eu estávamos sempre ao redor de uma quadra. É só ver os álbuns de família. Papai às vezes jogava esses torneios de clubes pela cidade. Daí veio a chata da minha irmã, que resolveu nascer e, pra variar, estragou o rolê. Senhora minha mãe já havia parado de jogar, papai tomou a mesma decisão. Foi uma opção deles, queriam "aproveitar os filhos". Até hoje eu acho isso uma bobagem, afinal, os filhos já foram embora, depois desses anos todos, e eles não voltaram a jogar. Tornaram-se dependentes das crias.

Já na adolescência, eu não aguentava mais dizerem pra mim que meu pai jogava muito bem tênis. Não aguentava mais ele mesmo se gabando - ele é bom nisso, gaba-se de tudo, impressionante, nem se atreva a falar de dança com ele, o maior pé de valsa das gafieiras - do saque e voleio dele que, diziam, andava em extinção no circuito profissional.

Guga já havia aparecido e se consolidado com um dos melhores jogadores do mundo à época, então aproveitei o afã e pedi ao garboso do meu pai: me ensina esse trem aí. Ele debochou - ele também é bom nisso -, desempoeirou as raquetes e fomos pra quadra.

Mas meu pai, dessa vez, tinha razão, levei meses para me sentir à vontade em uma quadra de tênis. O tempo de saque, o posicionamento para devolver bem, o jogo de pernas e pés para o backhand, como executar bem um slace, quando tentar um drop shot, a movimentação do braço no forehand, enfim, todo um universo novo de minúcias. Sem contar o desenvolvimento da atenção, da observação dos movimentos de seu adversário, seus golpes, seu posicionamento, suas jogadas. Reaprendi a jogar xadrez jogando tênis. Tinha que estar preparado fisicamente pra correr atrás de todas as bolas, treinado e concentrado para acertar e levar a bolinha onde eu queria, e ainda planejar, executar e estar pronto e ligeiro para replanejar constantemente, a cada batida, as jogadas. Tênis é um esporte enlouquecedor.

Óbvio, nunca consegui executar nada disso a contento, do contrário, não estaria aqui hoje e Rafael Nadal teria pelo menos metade dos títulos que tem em Roland-Garros. Mentira, mesmo porque a segunda bola que Nadal levantasse com spin no meu backhand, fácil, irritado eu jogaria bolinha e raquete nele. E porque pouca gente sabe, outra vez, mas agora, infelizmente, sobre a minha pessoa, sobre meu caráter... Quando Nadal apareceu no circuito, o suíço Roger Federer já estava estabelecido, e com este nascia também outra das minhas birras gratuitas: alimento raiva de listas, de coisas mais mais, de pessoas consideradas as melhores de, daqueles maiores do mundo, melhores da história. Tenho faniquito de hipérboles, de orações e frases excessivamente adverbiadas ou adjetivadas. Entendo-me como um sujeito de clareza e objetividade machadianas, ainda que dado a floreios roseanos. Mas sou muito humilde, claro.

Acompanhando a carreira de Gustavo Kuerten, talvez em 1999, 2000, me lembro de ouvir um comentário em transmissão de jogo. Rui Viotti dizia ter visto, em jogo pouco expressivo numa competição, numa quadra pequena, um jovem que batia na bola de um jeito diferente, de um jeito especial. O narrador ficara impressionado e torcia para que não estivesse enganado, que todos pudéssemos ver o suíço a que se referia. Rui Viotti não estava errado, Roger Federer se transformou em ... Roger Federer. Alguns anos depois o suíço se tornou o tenista número 1 do mundo e largamente considerado... o melhor da história.

O melhor tenista da história, grande campeão de tudo, e maior freguês de Rafael Nadal. O canhoto espanhol, que se tornaria, alguns anos depois, "o rei do saibro", despertou em mim outra agonia insuperável ao assistir aos seus jogos. É o sujeito mais cheio de manias de todos os tempos, muy loco repetindo uma porção de gestos dentro de quadra. Maluquice, pra mim, só explicada por uma capacidade infinita de concentração e obediência tática, além de disciplina e disposição física absurdas.

Não me lembro de nada parecido antes de Federer e Nadal - talvez Agassi e Sampras, vão dizer, muitas outras rivalidades -, mas desde que o suíço tomou conta do circuito, tendo logo em seguida aparecido o espanhol, seu grande rival e algoz, e ambos protagonizando uma série de finais e disputas, a tal expressão, "o melhor da História", "de todos os tempos", "o maior", etc., pra mim, como se fosse Dionísio vs Apolo, é um transtorno. De um lado, ficam exaltando a aplicação física e tática de Nadal, com sua habitual força, sua precisão, devolvendo todas as bolas, contra atacando magistralmente. De outro, endeusam a plasticidade de Federer, os pormenores na realização de seus golpes, a raridade de seu jogo, sua versatilidade, a combinação, a variação de seus golpes e posicionamentos. É enfadonho. Atualmente, Novak Djokovic, que neste momento é o tenista número 1 do ranking, passa por algo parecido, as comparações, mesmo que (ainda?) não se fale "da História", ou mesmo que ele apresente uma sequência impressionante de recordes acumulados.

Acúmulos, recordes, vencedores, os maiores, num esporte predominantemente individual, quem sabe o tênis não seja perfeito para a tal cultura do empreendedorismo. Papai deve ter ido jogar tênis por isso, na certa, desejo de ascensão social. Trinta e quatro anos com a mesma CG 125 azulzinha e, em compensação, voleava que era uma beleza. Mas ele mesmo reconhece a chatice que era quando ia jogar e socializar no ambiente do tênis: ah, mecânico, você?! Diziam, surpresos, desconcertados. E a gente mesmo, outro dia, comentava enquanto assistíamos ao último torneio: Rafa e Nole não andam, desfilam; Roger, ao caminhar, sutilmente joga os pés para fora com seu jeitinho, é como se esnobasse todos. Tênis é esporte de playboy.
  
Só que a gente não culpa ninguém, não são esses caras que fizeram do tênis um esporte, em sua maioria, praticado por pessoas ricas. Não é culpa das pessoas ricas, não é culpa do governo, não é culpa dos pobres. Mania que essa gente tem de falar em culpa. A culpa é sempre de alguém, de algo, não importa, a culpa sempre está ali, lá, aqui. A culpa, ah, seus cristãos, a culpa. A culpa é da esquerda. A culpa é da direita. A culpa é da burguesia, a culpa é da hipocrisia. A culpa. A culpa é do Fidel. Avemaria, a Culpa é da história, ué, maldita, a culpa é das relações sociais, benditas. Estar no mundo, habitar um tempo e um espaço, nomeando-os, reconhecendo-os, enfrentando-os, em seus absurdos, paradoxos, pra alguns, é difícil. É duro, só eu sei o que eu passo, mas também vem do tênis meu costume de usar meias altas - meias pretas, aliás -, na altura da canela. É falha de caráter pra quem denuncia a hipocrisia dos esquerdistas que vestem Lacoste. Vamos discutir, então, teoria social e política, que tal?



segunda-feira, 6 de abril de 2015

Monsieur Francisco

. . Por Unknown, com 0 comentários



Muitas coisas me irritam, no mundo, mas nem uma delas é capaz de despertar em mim a desmedida raiva como a gentileza. Coisas belas me irritam, coisas feias, também, ainda que nem tanto, mas coisas legais me deixam com raiva. Apenas as coisas chatas me encantam, adoro-as sem razão. Por exemplo, pôr do sol: irritação. Fotos de gatinhos: ira. Bom dia de estranhos pela rua: ódio. Wes Anderson: amo.

O zelador do meu prédio é um que, dia desses, vou dar um soco só pra ter certeza se ele é mesmo de carne e osso. Pra mim, é um tipo profundamente odiável. Ninguém consegue ignorá-lo, é tamanha gentileza em um ser que não me resta outra alternativa a não ser a raiva calculada. Comecei a desconfiar dele assim que fui visitar minha então futura residência. Seu Francisco, como se chama o zelador, me recebeu me olhando nos olhos, entre a seriedade e a serenidade: só isso aí já me deixou confuso.

Ao me cumprimentar, Seu Francisco perguntou do trajeto que eu fizera até ali, comentou do tempo – coisas absolutamente banais, que qualquer imbecil faria –, mas ele fez tudo isso no mesmo tom de voz, sem sorrir: ele parecia insuportavelmente sincero. Seu Francisco não parecia um vendedor de creme dental, pronto para te vender um importado dentifrício sabor aspargos – aaaarrrrgggghhhhh –, tampouco um corretor de imóveis, ligeiro para te alugar um apê de cozinha com vazamento na pia, de goteira no teto do quarto e sala de parede mofada, tudo isso como se você estivesse de frente pro mar, no Leblon, em vez de ter coladinho a você o sinfônico elevado Costa e Silva.

Intrigado com o procedimento de seu Francisco, fiz algum comentário idiota - não tomo jeito - sobre o piso da cozinha, que parece causar alucinação. Com a mesma simplicidade, seu Francisco quase deixou a compostura britânica e esboçou, apenas esboçou um sorriso. Não foi um sorriso largo, ele não perdeu a elegância dos gestos, manteve o ar equilibrado na face, mesmo porque faço piadas totalmente sem graça. Ele não fez nada além de outra gentileza, dessas interioranas que não estão exatamente desconfiadas, mas são capazes de fiar conversas por horas. Naquele momento, minha associação pronta ao assistir ao proceder de seu Francisco pela primeira vez foi com o personagem Monsieur Gustave, em O Grande Hotel Budapeste, de Wes Anderson.

Imaginei seu Francisco como aquele elegante senhor de palavras diretas, precisas, retido nos gestos e com certo charme ao caminhar. Pensei seu Francisco fazendo orações ao nascer do sol, tomando seu regrado café da manhã num compartimento pequenino, modesto do prédio. Tentando entendê-lo, vi-o ainda lendo poemas clássicos, recitando de memória versos garbosos e, sim, acreditava-o obcecado por um L'Air de Panache. No entanto, faltava, no meu olhar, encontrar o galanteio de M. Gustave, aquele romantismo desajustado já de finais do século XIX eu não via em seu Francisco.

De fato, me enganei – sou muito bom nisso – e seu Francisco está mesmo distante de M. Gustave. Logo que me mudei, percebi o erro, seu Francisco vai às missas de domingo na igreja do quarteirão de trás. M. Gustave, nossa, eu não consigo imaginar indo à missa. Foi assim que Zero Mustafa, um dia lobby boy no mesmo Hotel Budapeste, tomou força e me parece, por fim, a imagem do homem simples que é seu Francisco.

Tal como o lobby boy Zero Mustafa era praticamente invisível ao funcionamento suiço do grande hotel, seu Francisco passa quase despercebido pela rotina do prédio. A conduta dele como zelador, entretanto, tem efeitos longínquos, atinge todo o quarteirão. As chuvas do final do verão derrubaram uma das árvores na esquina. Saindo para a natação, encontrei seu Francisco no elevador de facão em punho. Fui logo fazendo um escândalo, não me contive: o que é isso, seu Francisco?!; o que o senhor vai fazer com isso?!; pelo amor de Deus, seu Francisco, não faz isso!! Seu Francisco se assustou, eu comecei a rir e ele entendeu, me contando que ia recolher a árvore caída. Fiquei indignado, a árvore era enorme e ele só tinha um facão que, perto daquela árvore, era um canivetinho. Ofereci ajuda, ele negou veementemente.

Ah, mas além de ir à missa de domingo, aos sábados, de folga, seu Francisco também passeia como um popular, um desconhecido, um anônimo na multidão. Flagrei-o faz dois sábados subindo a minha rua, completamente transformado. Com um boné da nike, um bermudão xadrez e uma camiseta justa, seu Francisco – talvez naquele momento ele só atendesse por Chicão – acompanhava duas meninas. Não tive dúvidas no penúltimo domingo, quando as mesmas garotas o acompanhavam na saída da missa do domingo de ramos. Seu Francisco misturava proteção, alegria mal contida, orgulho e corujice: não posso afirmar de maneira convicta, mas tenho pra mim que meu zelador, aos finais de semana, disfarça-se de pai.

Aos domingos, ainda, especialmente pela manhã, seu Francisco me confessava outro dia, assim como a maioria das pessoas que não são pilotos de Fórmula 1, Roger Federer, ou Paolo Guerrero, sente preguiça. Eu lhe perguntava da história de um incêndio que ouvi uma manhã dessas e ele dizia que, sim, era verdade o fogo no prédio ao lado. Mas ele mesmo não levantara, não descera pra ver de onde vinham os gritos de corre, chama a ambulância. Era domingo, insisto. A zeladora do prédio vizinho tinha enlouquecido, colocado fogo em seu apartamento e transeuntes faziam uma gritaria lá fora: seu Francisco e eu, pelo que pudemos averiguar, estatisticamente, preferimos um incêndio no prédio a deixar nossas respectivas camas nas manhãs de domingo. Um lobby boy talvez não tivesse tamanha preguiça.

De todo modo, pensei que não é má ideia um zelador colocar fogo no dormitório. Não conheço o quarto da enlouquecida zeladora vizinha, porém, enquanto procurava uma chave de fenda para montar o armário da cozinha de minha residência, busquei por seu Francisco e... sem entrar no quarto que ele vive, naquilo que é um pedaço de escada acima do último andar, entre o vão que dá arquitetonicamente a distribuição dos apartamentos pelo nosso prédio, entendi por que são as meninas filhas que vem visitar o pai e eles estão sempre pelas ruas: eles não cabem naquela caixa de sapato. Tem mais é que botar fogo no prédio mesmo.

Humpf, mais fácil eu vencer o próximo Roland-Garros que seu Francisco ter uma atitude extremada. Até os fósforos devem se sentir impressionados, recusando sua própria natureza diante da candura do zelador do meu prédio. Outro dia ele apareceu com uma mesa para a minha residência, disse que estava sobrando, não tinha onde colocar e estava se desfazendo dela, perguntou se eu não queria e já foi trazendo, colocando na sala. Quando dei por mim, estava assistindo à novela das oito com a TV sobre a mesa que era de seu Francisco. Como eu não acredito em presentes, prefiro dizer que ele se desfez mesmo daquilo. É meu cálculo de raiva, senão qualquer dia sou eu quem toca fogo no prédio diante de tanta gentileza vindo de quem não deveria, nesse mundo, nem ao menos um pouquinho, ser assim.

sexta-feira, 6 de março de 2015

[sem título]

. . Por Unknown, com 0 comentários









Aconteceu mais ou menos comigo ano passado. Mais pra menos que pra mais. Sai de casa no fim da tarde e vestia um tênis, um shortinho e uma camiseta apertada, levava o cabelo em coque e a barba sem raspar havia algumas semanas. Sou desses. Eu ia correr, apenas correr na avenida, mas no quarteirão de baixo eu ainda caminhava quando, em sentido oposto ao meu, na mesma calçada, vinha uma moça. Ela vestia um tênis, um shortinho, uma blusinha apertada, levava o cabelo preso mas não tinha barba. Ela era igual a um zilhão de garotas. Cruzamos o passo na frente do estacionamento de um restaurante bem movimentado. Ela tinha fones nos ouvidos, eu, não. Daí ouvi dois fiu fius quase simultâneos, alguma coisa que não entendi bem, mas que se referia à bunda, mais um convite pra ir lá chupar alguma coisa. Parei, me virei pro estacionamento, o que ouvia vinha de um grupo de homens que entrava ali. Eles todos olhavam pra garota, que seguia caminhando. Levei as mãos à cintura, separei uma das pernas e falei alto, rasgando a voz:


- Brigaaadah, genthyyy! Ameeey, vocês são todos uns liindos - enquanto levantava uma das mãos e apontava lentamente pra cada um deles com o pulso quebrado.



Nunca havia recebido olhares como os que recebi nesse instante. Dei a volta por trás do quarteirão e passei o resto da noite em casa. Não passei mais na frente daquele restaurante, tampouco corri no mesmo horario.



Os olhares não são os mesmos, claro, mas as mulheres sentem algo parecido com isso todos os dias, a maior parte da vida.





quinta-feira, 5 de março de 2015

29 F

. . Por Unknown, com 0 comentários




29-F, vinte e nove éfe, repito depois de passar o portão de embarque e guardar o bilhete da passagem, era o meu assento. Coloco o bilhete junto ao passaporte e guardo-o rapidamente. Perco coisas e documentos como quem escova os dentes. Também faço comparações ruins e referências baratas. 29-F: corredor de embarque. Vinte e nove éfe: entro no avião. Bom dia, diz a aeromoça, 29 éfe, eu respondo. Cacete, que poltronas essas as da classe executiva, 29-F, assim eu dormiria fácil. 29 éfe: ê fundão da classe econômica. Se essa porra cair lá de cima, 29-F, morremos todos igualmente, 29 éfe. Fileira C, D, E, F, direita, 24, 25, 26, esquerda, 27, 28, 29. 29-F, janelinha. Isso aí, adoro ver as cidades lá de cima, não consigo distinguir um ponto de ônibus de um edifício empresarial e as pessoas aqui embaixo se dão tanta importância. 29 éfe mais um boné com brilhantes, lantejoulas, aba reta, uma camisa do Chicago Cubs e uma calça xadrez. Me visto muito mal, mas tenho senso de ridículo, não sou eu ali, penso enquanto procuro pelo bilhete. Onde foi que coloquei o passaporte? Ai, não posso ter perdido, faz um instante apresentei isso... penso de novo e a moça da 27-F, no corredor, mira o sujeito do Chicago Cubs sentado naquela que seria a minha poltrona. Sou péssimo para ler emoções, não consigo entender se ela apenas o interroga para saber o que está acontecendo, se o agride com ar de naturalidade demonstrando raiva - imagino que são um casal -, e antes deles dizerem qualquer coisa, digo que tudo bem se aquela for a minha poltrona, posso sentar na fileira de trás, que está toda livre. Enquanto guardo a mochila no bagageiro acima, percebo que a 28-F está me olhando. Com o queixo quase tocando o peito, um sorriso levemente envergonhado, a menina estava me olhando. Digo oi, reproduzindo meu sorriso ensaiado, passo para a fileira de trás e, enquanto sento, confiro se era comigo mesmo, se não havia alguém atrás de mim e eu me intrometia naquele olhar. Não, era pra mim mesmo.


Era pra mim, também, porque a menina virou-se brevemente para a fresta entre as poltronas, em seguida, assim que sentei, a ver onde eu estava, atrás daquele que eu imaginava ser o pai dela, o cara da poltrona que deveria ser a minha. A menina mantinha o mesmo olhar, o mesmo sorriso, o mesmo queixo, e quando tentei reproduzir também o mesmo sorriso ensaiado, ela logo se virou pra frente. Achei que eu pudesse ter assustado a garota. No entanto, ela estava olhando pra mim e não conseguiu parar de repetir isso, pois voltou-se para a fresta entre as poltronas inúmeras vezes, inúmeras vezes com o mesmo olhar, o mesmo sorriso e a mesma posição do queixo antes do avião decolar. Sim, às vezes até eu me canso das minhas próprias repetições. Mas se ela se repetia no movimento, eu alternava o mesmo sorriso ensaiado, um aceno com alguns dedos e apertar dos lábios, um coçar na cabeça, um novo oi, uma sobrancelha, duas sobrancelhas, até que, por fim, o avião decolou.


Fiquei curioso pra ver o que ela assistia no vídeo de sua poltrona, já que por alguns instantes ela se esqueceu de mim. Achei muito rosa o cenário do vídeo clipe que se repetia na tela. É, achei muito ruim, muito ruim, confesso, mas tento salvar um trecho da música: 


~I see the magazines working 
That photoshop
We know that shit ain't real 
C'mon now, make it stop 
If you got beauty beauty just 
Raise 'em up' Cause every inch of you is perfect


O clipe se repetia na tela da poltrona da menina, imaginei assim que isso fosse uma característica dela, mais do que minha, a repetição. Pensei em dizer que o livro que eu lia também era sobre a letra da música. Na verdade, ia dizer que o meu livro era melhor que o vídeo clipe e a letra da canção: 


~Havia nele tiques normalizados – visíveis todos os dias e em qualquer situação. Havia outros tiques conjunturais (…). E havia ainda tiques imprevisíveis – que não estavam, ou não pareciam, associados a nenhum acontecimento específico~


Era a explicação, a definição, bem diante dos meus olhos, para o que acontecia bem diante dos meus olhos: ela apenas tinha tiques. E eu assumia o sarcasmo do autor do livro que eu lia. Não, a repetição do vídeo clipe na sua tela cessou, deu lugar a um filme sobre gelo. Em vez de rosa, tudo então ficou branco no cenário do seu assento. A repetição nela, em relação a mim, do mesmo modo se modificou. O queixo se levantou e o sorriso não era mais tão tímido. Ela mantinha, porém, o mesmo olhar. Virando-se pra mim, duas vezes ela apontou a tela do vídeo, ~for the first time in forever~, contraditoriamente. No seu caso, o diagnóstico talvez fosse uma repetição com pequenas modificações assim que se trocavam as cores.


Ela dormiu, terminei o livro. Também dormi, que alívio, eram 6h de voo. Acordei com a ponta dos dedos dela, entre as poltronas, tocando meu joelho. Ela ainda me olhava do mesmo jeito. Mas não eram tiques, ela não estava mentindo, Hugo. A gente já tá chegando, foi o que ela disse. Como eu fiquei olhando pra mão dela, ela completou, mostrando a outra, que tinha pintado cada uma das unhas de uma cor. Nossa, que legal, eu disse rindo e coçando os olhos. Ela também sorriu. Acho legal mesmo. Enquanto o avião descia, ela me mostrou o presente que ganhara, contou-me da vovó e do vovô que a aguardavam no aeroporto, que ela morava ali mesmo, naquela cidade que tinha uma porção de luzes lá embaixo, como ela disse e víamos pelas janelas. O avião preparava-se para o pouso e ela ainda perguntou se eu gostava de construir bonecos de neve. Eu disse que sim, ela falou que também gostava. Ela não se repetiu mais, quer dizer, apenas continuava me olhando do mesmo jeito.


Já em terra, enquanto eu ligava o celular, não a vi sair, mas no corredor do portão de desembarque, escutei um quase grito se estedendo, ~a gente tá indo atrás de vochê, a gente tá indo atrás de vochê~, entre um riso e outro, seguido também por um ~Daniela... Daniela...~, daquela moça que se sentava na poltrona 27-F, talvez a mãe, que então empurrava o carrinho em que se sentava Daniela. Daniela é o nome dela, pensava e olhava pra trás, de olhos arregalados, procurando pra onde correr, hesitando o passo e indo de um lado pro outro, como se estivesse perdido, em fuga. Era de mentira, mas era verdade, Daniela, eu estava mesmo fugindo. Pensei que talvez devesse ter lhe dito, Daniela, pra que você nunca mais repetisse nada daquele voo, porque é perigoso. Pensei em mandar você mexer com alguém do seu tamanho, cara. Mas, sabe, boa sorte.






* música: Meghan Trainor, All about that bass.
** livro: Matteo Perdeu o Emprego, Gonçalo M. Tavarez.
*** filme: Frozen.

*** foto: Luna, museu Frida Kahlo

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Louco, eu?

. . Por Fernando Mekaru, com 0 comentários

Era madrugada. Estava a sonhar com escadas rolantes enferrujadas no meio de algum lugar do semiárido, e as tais escadas em tons de laranja-escuro ascendiam ao céu cor de chumbo, naquelas cenas absurdas cheias de sentidos que só existem durante o sono. Estava apreciando essa cena tétrica, congelada no tempo, com a cores empoeiradas do solo contrastando com os tons estranhamente naturais-mas-artificiais das escadas contrastando com os tons etéreos do céu, com firmamento e solo unidos por uma ponte artificial, quando começou.

Uma batida metálica, repetida, espaçada em intervalos iguais, em uma intensidade certamente inadequada a qualquer momento do dia, subentendendo desespero ou inspiração extraordinária; parecia a marcha louca e sem sentido de um homem só sobre o capô de um carro.

O barulho dissipou qualquer ensejo de se manter sonhando.

Levantei grunhindo, procurando na realidade aquilo que conseguia superar com tanta insistência a existência de um sonho. Abri a janela mais próxima da fonte de barulho, me preparando para tentar entender o absurdo que é ficar fazendo um estardalhaço desses de madrugada, e...

Nada.

Só o silêncio das cinco da manhã, o vento carregando o frio que o sol do amanhecer ainda não roubou, o sol se levantando timidamente por trás das árvores de uma praça e a típica inação de um dia que ainda não começou.

Um silêncio mais do que desconfortável fez com que eu questionasse o quão real era o maldito barulho metálico que me acordou e, por extensão, qual seria o remédio que se deve começar a tomar quando começa-se a ouvir barulhos intensos que talvez nem existam.

Deixei isso pra lá para assistir, um pouco impressionado, à luz do sol passando pelos buracos entre as folhas das árvores e iluminando com tons rosados as poucas nuvens do céu e as casas, prédios e lojas ao redor da praça, conforme amanhecia o dia. Conseguia distinguir só formas e cores, graças à miopia forte e à falta de óculos, mas nem por isso a paisagem estava menos bonita: o cenário estava instigante no jogo que luz, sombra e formas borradas desenhavam, à maneira de uma paisagem impressionista trazida ao mundo por um par de olhos falhos.

Independente dos sons terem sido reais ou não, as ações que eles desencadearam tinham valido a pena: sem querer, comecei a entender o porquê do nascer do sol ser considerado tão bonito, inspirador e estimulante a ponto de fazer algumas pessoas aguardá-lo tão ansiosamente em algumas situações.

Fiquei quinze minutos tomando vento na cara, vendo o sol se levantando e deixando a madrugada com cara de manhã.

Fui dormir, satisfeito e surpreendido, pensando em como algo que pode ter sido real ou não fez com que eu visse algo tão bonito e aproveitável. Ensaiei em pensar como isso tudo pode ter um paralelo com a arte, que independente de partir do real ou não, de ser criada com sanidade ou loucura, tem a sua importância não na sua origem, mas sim àquilo que ela nos leva - experiências curiosas e únicas, que ajudam a carregar a vida e seus problemas com um pouco mais de leveza.

Dispensei tudo isso e caí no sono com a certeza de que era só louco, pesadamente míope e levemente sortudo de ter aberto a janela na hora certa.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Coluna Do Leitor - Sobre o fenômeno dos empregos imprestáveis, por David Graeber

. . Por Mistura Indigesta, com 1 commentário

Texto original publicado na revista Strike!

[Tradução de Rodrigo Charafeddine Bulamah]


Em 1930, John Maynard Keynes previu que até o fim do século XX a tecnologia teria avançado suficientemente que países como a Grã-Bretanha ou os Estados Unidos conseguiriam chegar à implementação de 15 horas de trabalho por semana. Há todas as razões para se acreditar que ele estava certo. Em termos tecnológicos, somos bastante capazes disso. Mas ainda assim, isso não aconteceu. No lugar, se algo de fato aconteceu, foi que a tecnologia foi mobilizada para encontrar formas de fazer com que todos nós trabalhássemos mais. Para alcançar esse feito, foram criados empregos que são, efetivamente, inúteis. Quantidades incríveis de pessoas, na Europa e na América do Norte, em particular, passam toda sua vida profissional cumprindo funções que elas acreditam intimamente que não precisariam de fato cumprir. O dano moral e espiritual que surge a partir dessa situação é imenso. É uma ferida em nossa alma coletiva. Mas ninguém fala sobre isso.

Por que a utopia prometida por Keynes – aguardada com grande expectativa nos anos 1960 – nunca se materializou? A resposta mais comum hoje é que ele não se deu conta do aumento massivo do consumismo. Frente à escolha entre menos horas de trabalho e mais brinquedos e mais prazeres, nós optamos coletivamente pelo segundo. Isso dá uma boa fábula sobre a moral, mas basta uma reflexão rápida para mostrar que isso não é bem uma verdade. Sim, nós testemunhamos a criação de uma variedade infinita de novos empregos e novas indústrias desde a década de 1920, mas poucos têm algo a ver com a produção e distribuição de sushi, iphones ou calçados bacanas.

Então quais são, de fato, esses novos postos de trabalho? Um relatório recente comparando o emprego, nos EUA, entre 1910 e 2000, nos dá uma imagem clara (e, destaco ainda, muito parecida com aquela do Reino Unido). Ao longo do século passado, o número de trabalhadores empregados como servidores domésticos, como trabalhadores da indústria e do setor agropecuário colapsou drasticamente. Ao mesmo tempo, “trabalhadores profissionais, gerencias, eclesiásticos, de vendas e de serviços” triplicou, crescendo “de um quarto para três quartos do total de empregos”. Em outras palavras, trabalhos produtivos foram, tanto quanto previsto, extensamente automatizados (mesmo se levarmos em conta globalmente os trabalhadores industriais, incluindo a mão-de-obra massiva na Índia e na China, tais trabalhadores estão longe de formar a maioria da população do mundo, como um dia o foram).

Mas ao invés de possibilitar uma grande redução das horas de trabalho, liberando a população mundial para seguir em busca de seus próprios projetos, prazeres, visões e ideias, acompanhamos uma escalada não tanto do “setor de serviços”, mas do setor administrativo, chegando até, e incluindo, a criação de indústrias inteiramente novas como os serviços de finanças ou o telemarketing ou a expansão sem precedentes de setores como o direito corporativo, a administração acadêmica e de saúde, os recursos humanos e as relações públicas. E esses números nem levam em consideração todas aquelas pessoas cujo trabalho é o de fornecer suporte administrativo, técnico ou de segurança a essas indústrias, nem tampouco toda a organização de indústrias auxiliares (como tratadores de cães em pet shops ou os entregadores de pizzarias abertas 24h) que só existem pelo fato de que todas as outras pessoas estão passando muito do seu tempo trabalhando em todas as funções descritas acima.

Estes são o que proponho chamar de “empregos imprestáveis” (ou ainda, “empregos de merda”).

É como se alguém estivesse em algum lugar por aí inventando empregos inúteis pela simples razão de manter todos nós trabalhando. Aqui é, justamente, onde jaz o mistério. No capitalismo, isso é exatamente o que não deveria acontecer. Claro, nos ineficientes Estados socialistas, como a União Soviética, onde o emprego era considerado ao mesmo tempo um direito e uma função sagrada, o sistema inventou tantos empregos quanto fossem necessários (isso explica porque nas lojas de departamento soviéticas eram necessários três balconistas pra vender um pedaço de carne). Mas, é claro, esse é exatamente o tipo de problema que a competição de mercado deveria corrigir. Ao menos, segundo a teoria econômica, a última coisa que uma firma que busca o lucro faria é desembolsar dinheiro pra pagar trabalhadores que não precisa empregar. Ainda assim, de alguma forma, é o que acontece.

Embora as corporações possam passar por impiedosos redimensionamentos (downsizing), as demissões e reescalonamentos caem sobre a classe de pessoas que estão realmente fazendo, movimentando, consertando e mantendo as coisas; por alguma alquimia estranha que ninguém pode de fato explicar, o número de burocratas assalariados parece aumentar e cada vez mais empregados veem a si mesmos, tal como os trabalhadores soviéticos, trabalhando 40 ou mesmo 50 horas por semana no papel, mas efetivamente trabalhando 15 horas, exatamente como previu Keynes, já que passam resto do dia organizando ou frequentando seminários motivacionais, atualizando o perfil do facebook ou baixando músicas e seriados de TV.

A resposta, claramente, não é econômica: é moral e política. A classe dirigente se deu conta de que uma população feliz e produtiva com tempo livre ao seu alcance é um perigo mortal (pense no que começou a acontecer quando nos anos 1960, nos aproximávamos disso,). Por outro lado, lhes é extremamente conveniente o sentimento de que o trabalho é um valor moral em si mesmo e que qualquer um que não queria se submeter a alguma forma de disciplina intensa de trabalho durante grande parte de sua vida não mereça nada.

Certa vez, ao contemplar o aparente crescimento sem fim de responsabilidades administrativas nos departamentos acadêmicos britânicos, me veio uma possível imagem do inferno. O inferno é uma coleção de indivíduos gastando a maior parte do seu tempo trabalhando em uma função de que não gostam nem executam bem. Digamos que eles foram contratados por serem excelentes fabricantes de armários, mas então descobrem que devem passar uma boa parte do seu tempo fritando peixe. Mas nem a função necessita de fato ser realizada, pois há somente um número muito pequeno de peixes que é preciso fritar. Ainda assim, de alguma forma, eles se tornam tão obcecados, ressentidos por pensarem que alguns de seus colegas podem estar gastando mais do seu tempo fazendo armários e não dividindo de modo justo as responsabilidades de fritar peixe, que em pouco tempo há inúmeras pilhas de peixe frito sem utilidade alguma espalhadas por todo o escritório e isso é tudo o que todos realmente fazem.

Acho que esta é uma descrição bastante fiel da dinâmica moral da nossa própria economia.
*
Agora, reconheço que esse argumento irá levantar objeções imediatas: “quem é você pra dizer quais trabalhos são de fato ‘necessários’? Afinal, o que é mesmo necessário? Você é professor de antropologia, qual é a “necessidade” disso?” (E, sem dúvida, muitos leitores da imprensa marrom tomariam a existência do meu trabalho como a própria definição de uma despesa social extravagante). E, em certa medida, isso é obviamente verdadeiro. Não pode haver uma forma objetiva de medir o valor social.

Eu não me atreveria a dizer a alguém que está convencido de que contribui de forma significativa para o mundo quando ela, de fato, não contribui. Mas e com relação àquelas pessoas que por si só estão convencidas de que seu trabalho é insignificante? Não faz muito tempo, eu retomei o contato com um amigo da escola que eu não via desde os 12 anos. Fiquei impressionado quando descobri que, nesse interim, ele tinha se tornado primeiro poeta e depois o cantor de uma banda de indie rock. Eu tinha escutado suas músicas na rádio sem ter ideia de que o cantor era alguém que eu efetivamente conhecia. Obviamente, ele era brilhante, inovador e seu trabalho tinha, sem dúvidas, alegrado e melhorado a vida de muita gente ao redor do mundo. Porém, depois de alguns discos sem muito sucesso, ele perdeu o contrato e, atormentado por dívidas e com uma filha recém-nascida, acabou, como ele mesmo disse, “tomando a escolha mais simples de tantos sem-rumo: a faculdade de direito”. Hoje ele é um advogado de empresa trabalhando em uma firma proeminente de Nova Iorque. Ele foi o primeiro a admitir que seu trabalho era completamente insignificante, não contribuía em nada com o mundo e, segundo sua própria avaliação, não deveria realmente existir.

Há uma série de questões que poderiam ser feitas a partir daqui. A primeira seria: o que quer dizer sobre nossa sociedade essa produção de uma demanda extremamente limitada por poetas e músicos talentosos, mas uma aparente procura infinita por especialistas em direito empresarial? (Resposta: se 1% da população controla a maior parte da riqueza disponível, o dito “mercado” reflete o que essa minoria, e ninguém a não serem eles, julga ser útil ou importante). Mas, mais ainda, isso mostra o quanto a maioria das pessoas nesses trabalhos está consciente desse fato. Na verdade, eu não tenho certeza se algum dia conheci um advogado corporativo que não achasse seu emprego uma estupidez. O mesmo vale pra quase todas as novas indústrias mencionadas acima. Há toda uma classe de profissionais assalariados que, caso você os encontre em uma festa e diga que você faz algo interessante (um antropólogo, por exemplo), evitará conversar sobre seu trabalho. Dê a eles algumas bebidas e eles se lançarão em diatribes sobre o quão inútil e estúpido o trabalho deles realmente é.

Há uma profunda violência psicológica aqui. Como alguém pode começar a falar de dignidade no trabalho quando esse alguém intimamente sente que seu trabalho não deveria existir? Como, a partir daí, não surge um sentimento de profunda raiva e ressentimento? No entanto, é no funcionamento peculiar da nossa sociedade que os dirigentes encontraram uma saída, como no caso dos fritadores de peixe, para assegurar que a raiva seja dirigida contra aqueles que de fato fazem algum trabalho significativo. Por exemplo: em nossa sociedade, parece haver uma regra geral de que, quanto mais óbvio é o benefício do trabalho de alguém a outras pessoas, menos se é bem pago por isso. Mais uma vez, uma medida objetiva é difícil de encontrar, mas um jeito fácil de entender isso é se perguntar: o que aconteceria se essa classe inteira de pessoas simplesmente desaparecesse? Diga o que você quiser sobre enfermeiras, garis ou mecânicos, é óbvio que se eles desaparecessem em uma nuvem de fumaça, os resultados seriam imediatos e catastróficos. Um mundo sem professores ou estivadores não demoraria a entrar em apuros e até mesmo um mundo sem escritores de ficção científica ou músicos de ska seria claramente um lugar pior. Não está tão claro o quanto a humanidade iria sofrer se todos investidores de capital privado, lobistas, consultores em relações públicas, seguradores, operadores de telemarketing, oficiais de justiça ou consultores legais igualmente desaparecessem. (Muitos suspeitam que melhoraria significativamente). Ainda assim, para além um conjunto pequeno de abastadas exceções, como os médicos, a regra se mantém com surpreendente firmeza.

Ainda mais perverso é o sentimento generalizado de que as coisas deveriam ser assim. Esse é um dos segredos do sucesso do populismo de direita. É possível ver isso quando, por exemplo, a imprensa marrom estimula o ressentimento contra operários do metrô por paralisarem Londres durante disputas de contrato: o simples fato de que operários do metrô possam parar Londres mostra o quão seu trabalho é realmente necessário, mas isso parece ser o que de fato incomoda a todos. Isso é ainda mais claro nos EUA, onde republicanos tiveram um notável sucesso mobilizando o ressentimento contra professores ou operários da indústria de automóveis em razão de seus salários e benefícios supostamente excessivos (e não, consideravelmente, contra administradores de escolas ou diretores industriais que, de fato, causam os problemas). É como se nos estivessem dizendo “mas vocês tem a sorte de ensinar crianças! Ou de fazer carros! Vocês conseguem ter trabalhos de verdade! E pra coroar isso vocês tem a coragem de ainda lutar por pensões de classe média e seguro de saúde?”

Se alguém tivesse planejado um regime de trabalho perfeitamente adaptado à manutenção do poder do mundo financeiro, é difícil imaginar como poderia ter feito um trabalho melhor. Trabalhadores de verdade, produtivos, são implacavelmente explorados e alvo de precarizações. Os restantes são divididos entre um estrato aterrorizado e universalmente vilipendiado de desempregados e um outro estrato maior de pessoas que basicamente são pagas para não fazer nada, em posições concebidas que se identifiquem com as perspectivas e as sensibilidades da classe dirigente (gerentes, administradores etc.) – e particularmente seus avatares financeiros – mas, ao mesmo tempo, cultivem um ressentimento constante contra qualquer um cujo trabalho possua um valor social claro e inegável. Evidentemente, o sistema nunca foi conscientemente planejado. Ele surgiu a partir de quase um século de tentativa e erro. Mas é a única explicação do porquê, apesar de nossa capacidade tecnológica, não estamos trabalhando 3 ou 4 horas por dia.

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David Graeber é ativista e professor de Antropologia na London School of Economics. Ainda pouco traduzido em língua portuguesa, é autor de livros importantes como “Toward an Anthropological Theory of Value: The False Coin of Our Own Dreams”, “Fragments of an Anarchist Anthropology” e “Debt: the First 5000 Years”.

Rodrigo Charafeddine Bulamah, de Rondonópolis para o mundo, mestre e doutorando em antropologia pela UNICAMP.

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Há outra tradução para o português no Portal Anarquista do Colectivo Libertário de Évora



sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Um herói para Samuel

. . Por Caio Moretto, com 1 commentário





Certa vez, numa calourada do curso de ciências sociais da Unicamp, chamaram o prof. Sérgio Silva para falar na aula magna. O tema era Maio de 68. Já tínhamos ouvido suas aulas sobre indústria cultural, sociedade do espetáculo etc. Mas dessa vez o professor, o ícone, o cara que estava lá quando tudo aconteceu, ia falar sobre Maio de 68! Depois de grande rebuliço (a minha versão preferida é a contada com a dramaticidade do Sumaré, que não usa essas palavras estranhas como “reboliço”, mas que faz a gente se imaginar sentado na primeira fileira), o professor liga o microfone e declara da maneira mais clara que poderia: “maio de 1968 não existiu”.

Eu nunca fui de ter heróis, porque sempre tive essa impressão de que eles nunca existiram, de que são uma grande invenção. Maio de 1968, como é no imaginário dos calouros de ciências sociais, certamente não existiu. Se existiu algo, foi talvez apenas um grupo de pessoas que saíram nas ruas para reivindicar que a a dita democracia se convertesse minimamente em direitos à população.

Maio de 1968, para muitos, foi apenas um ano de trabalho, de formatura, de dramas pessoais mais ou menos descolados da realidade social, o que se chama, muitas vezes, de dramas burgueses. O mesmo pode ser dito da ditadura civil-militar para muitos brasileiros que mal a perceberam. Em certo sentido, 68 na França não foi diferente de 2013 no Brasil, nem do que está acontecendo aqui hoje. 

Me peguei pensando nisso tudo porque não sei que histórias de heróis gostaria de contar para o Samuel. Desde que a Mari engravidou, não participamos mais de nenhuma manifestação. A partir de então, toda vez que tem protesto, fico em casa preocupado com xs amigxs e conhecidxs que estão lá, mostrando a cara. 

Às vezes me pego pensando: “Que saco, por que eles vão? Só para a gente ficar preocupado!” Mas logo me deparo com as histórias de colegas em seus dramas cotidianos: uma colega agredida na rua por sua identidade de gênero, um aluno que não poderá pagar a faculdade, uma vizinha que não levará a filha de novo ao médico ah, já estava tudo bem, não vou pagar mais duas passagens de ida e duas de volta. E volto a pensar no Samuel, nos heróis e em como os nossos dramas individuais são afetados pela realidade social.

Não sei quais serão as escolhas e os desejos do Samuel, que sonhos terá, qual será sua profissão, seu estado de saúde ou sequer como será sua capacidade física de se locomover. Também não sei até quando teremos aulas de filosofia e sociologia no Ensino Médio e, portanto, não sei qual será nossa situação financeira como família no próximo ano. Mas fico feliz que ainda tenha gente lutando para que isso não importe, para que ele possa ter todos seus direitos como cidadão e possa se realizar plenamente como ser humano independente de quanto dinheiro a gente tenha.

Já começo a pensar em como contarei ao meu filho a história dessas pessoas que lutam para que a dita democracia se converta minimamente em direitos à população, a história desses momentos épicos que não existem, mas que mudam as nossas vidas. Carxs amigxs, vocês são a inspiração da minha vida, são o mais próximo de heróis que eu jamais tive. Contarei a história de vocês com entusiasmo e com a esperança de que algum dia alguém diga de nosso tempo, idealizando nossas conquistas, que ele também não existiu.

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