VÍDEO: MURILO CAMPANHA CONTA ITATINGA

O psicanalista Murilo Campanha fala sobre Itatinga, um dos maiores bairros de prostituição da América Latina, onde ele tem seu consultório.

O nadador

Uma crônica de Hugo Ciavatta.

Ainda que as bolachas falassem

Crônica de Fábio Accardo sobre infância e imaginação

Ousemos tocar estrelas

Uma reflexão de Thiago Aoki.

Entre o amarelo e o vermelho

Uma crônica de Hugo Ciavatta

O homem cordial vinhedense

A classe média vai ao barbeiro. Uma crônica de Caio Moretto.

domingo, 10 de março de 2013

Coluna do Leitor - Historicizar sempre ou como provocar "emoção épica"

. . Por Mistura Indigesta, com 0 comentários

ou uma leviana tentativa de objetivar o sentimento

ou, ainda, anotações colhidas durante cinco meses de oficina com a Cia. do Latão

Brecht afirma: “para observar é preciso comparar, mas para comparar é preciso ter observado em algum momento”. É desta simples frase dialética que, talvez, nasce este texto, de uma tentativa de comparação a partir de cinco meses de observação. Comparação, essencialmente, entre possibilidades teatrais.

Por que ser dialético ao fazer teatro se esta linguagem deve ecoar no sujeito? É a pergunta-acusatória que fazem aqueles que se valem da fragmentação atual para pensar a encenação como campo de exploração do subjetivo. Porém, acodem desesperadamente à mesma fragmentação para não se posicionarem, narcotizados por uma suposta exacerbação dos sentidos, em um transe quase orgástico. Antes fosse ledo, o vil engano de supor que a dialética exclui o sujeito. Pelo contrário, ao deslocá-lo de seu lugar de conforto e inseri-lo em um todo contraditório, em transformação, o teatro épico ecoa de maneira devastadora no próprio sujeito.

“Furar a cabeça do espectador, nem que seja a fórceps, para arrancar questionamentos”, propõe o cineasta Camilo Cavalcante. E isso não significa desprezar o público, mesmo porque nada mais honesto do que buscar o distanciamento, que impede que o espectador se envolva “emocionalmente” com a peça, chegando a ponto de alienar-se de sua própria consciência crítica. Porém, essa honestidade atua como fim último, pois em determinado momento é necessário trair este espectador. Fazê-lo, por um instante, acreditar na possibilidade de desenlace, na afirmação do esquema tradicional. Se os tubarões fossem homens, os teatros do fundo do mar mostrariam valorosos peixinhos a nadarem, com entusiasmo, rumo às gargantas dos tubarões. É por isso que Brecht nos ensina a jogar com força a isca dramática, enganar o espectador para, ao mesmo tempo, ser incondicionalmente sincero com ele, pois não se trata de ganhá-lo, de provocar identificação, mas justamente de perdê-lo, de colocá-lo distanciado e, por isso mesmo, emancipado. Emancipado da goela dos tubarões do teatro. 

E é justamente emancipado, talvez idealizadamente por um momento com as rédeas de sua própria capacidade de se emocionar, que o espectador do teatro dialético se vê frente a tal “emoção épica”, devastadora, aparentemente quase abstrata, metafísica, mas pelo contrário, extremamente material, pois sentida no âmbito da própria relação entre homens. Não se trata aqui de menosprezo a um tipo de arte, mas fato é que aquele que já sentiu a “emoção épica” não se contenta mais com a “emoção dramática”, mesmo porque o dialético só o é ao pressupor o dramático para com ele romper. Porém, é imprescindível a clara noção de que a busca pelo distanciamento não pode ser puramente formal, não tem a ver com estilo. Na verdade, ela não pode ser formalista nem conteudista. 

A problemática de como causar estranhamento ou provocar a “emoção épica” traz também a questão, que pode ser uma falácia, de como sentir a “emoção épica”, posições ativas e passivas dentro de uma mesma construção. É certo que é preciso abandonar, de uma vez por todas, qualquer tipo de crítica moral. Brecht aponta que para isso é necessário mostrar um processo maior que o indivíduo, historicizar, causar olhar histórico e estabelecer conexões, tarefa cada vez mais essencial em tempos de suposta fragmentação. A cena precisa revelar outro tempo, além do tempo presente dela. É justamente o olhar histórico que permite desnaturalizar e levanta questões ligadas à causalidade social das relações. Isso ocorre, por exemplo, de forma exemplar, quando, na recente peça “O Patrão Cordial”, da Cia do Latão, os personagens sobem em um inventado pico do Jaraguá para relembrar fatos históricos da cidade. Ali, naquele momento, o drama do patrão e do empregado é contextualizado e deixa de ser puramente dramático. Irrompe-se, com brutal força a “emoção-épica”, termo talvez ainda abstrato, mas que o espectador que experimenta de certa entende.  

Porém, como enfatiza Sérgio de Carvalho, há que se ter a precisa consciência de que este teatro deve buscar revelar as contradições, mas não resolvê-las, pois a resolução pede uma ação social coletiva e não somente uma ação estética e individual, por mais que uma pressuponha sempre a outra, afinal é dialética. Marx e Engels escrevem, em “A Ideologia Alemã”: “os indivíduos isolados apenas formam uma classe na medida em que têm que manter uma luta comum contra outra classe”. É por isso que as forças coletivas devem ser representadas na relação entre indivíduos. As coisas não se resolvem ideologicamente, mas na prática material. No idealismo, o sentimento vem antes da ação. Ser materialista é justamente o esforço de não abstrair as pessoas da realidade delas.   

É tarefa também deste teatro fugir da tendência à harmonização, buscar a cena mais torta, de personagens com consciência torpe, falhada. Uma cena é sempre morta se é a ilustração de uma ideia. Para ser dialético é preciso lutar contra a cena-estado a favor da cena-relação, que traça claramente situações gestuais em que um está em relação com o outro. Ou, como diz uma personagem da peça-exercício realizada durante a oficina: “E se nós tentássemos estabelecer relações entre essas pessoas, olhar nos olhos? Isso também é teatro político”. De fato, a forma tem que vibrar num registro mais torto, mas isso não pode ser formal como querem os pós-modernos. Temem um teatro escancaradamente político, em nome de um agir político que parta da experiência do sujeito em contato com novas formas. Acreditam piamente que são as formas que transformam o indivíduo, mas olvidam que é o choque entre forma e conteúdo que “ressignifica” o próprio fazer teatro e a experiência de uma pessoa, enquanto espectadora desse teatro. Não percebem o quão antipolítico é dispensar a relação entre homens e idealizar uma política que se resolva per se, no íntimo preservado. Ou pior, percebem sim. 

Assim são os tempos: medonhos, tétricos, quase desesperadores. Mas é preciso manter-se firme, convicto, mesmo que para isso seja necessário constantemente se voltar aos grandes, para algo deles se apropriar. No caso do texto, se apropriar significa usar a primeira pessoa, mas, claro, do plural, para idealizar uma coletividade: É a sensação de desacerto, que nos vem perante as reproduções dos acontecimentos ocorridos no mundo dos homens, que reduz nosso prazer no teatro. A razão desse desacerto é o fato de a nossa posição em relação ao objeto reproduzido ser diversa daquela dos que nos antecederam. Contra isso, historicizar sempre. 

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Bruno Mello Castanho é diretor de cinema e roteirista, participa do coletivo Cinefusão e tem acompanhado de perto o trabalho da Cia. do Latão. O texto, publicado originalmente no site do coletivo, foi gentilmente cedido pelo autor.

segunda-feira, 4 de março de 2013

Django - A mão que segura a navalha

. . Por Thiago Aoki, com 2 comentários


Quando lançado, Django Livre foi considerado um filme polêmico por tocar em um ponto delicado do passado norte-americano, a escravidão. Ledo engano. Para mim, a força política do filme de Quentin Tarantino está justamente no fato de que seu roteiro questiona, na verdade, os dias atuais.

Quando, por exemplo, "imbecializa" a elite que compõe a Ku Klux Klan, impossível não nos lembrarmos das situações surreais de jovens com pouca idade e muito conservadorismo no coração, que em plena juventude têm propostas conservadoras tragicômicas como a refundação do Arena ou o protesto contra as cotas nas universidades públicas.

O filme inteiro dialoga com o presente, muitos seriam os exemplos, mas provavelmente o personagem de Samuel L Jackson seja o mais sintomático. Um escravo que faz o jogo da escravidão. Semelhante a Prudêncio, escravo presente na obra de Machado de Assis, que quando conquista a alforria vai logo comprar um escravo para si. Ou ao subalterno do mundo corporativo que apanha de quem está em cima e bate em quem está embaixo no organograma da empresa.



A situação de reprodução social é retomada em um dos melhores diálogos do filme. Com o crânio de uma caveira na mão, o escravista interpretado por Leonardo Di Caprio conta a história de Ben, um falecido escravo, antigo barbeiro da família. Ele vivia o horror da escravidão na pele e estava todo o dia com a navalha no pescoço do seu dono, então por que não cortava a sua jugular? Para explicar, ele se vale de um discurso cientificista, segundo o qual o cérebro do negro possuía o gene da subserviência. Talvez uma brincadeira com o peso que damos às “verdades científicas” e aos “esclarecidos” que se pousam como neutros, mas nada mais fazem que justificar nosso modo de vida desigual.

Assim como em Bastardos Inglórios, onde uma sobrevivente judia resolve vingar-se de Adolf Hitler, Django
Livre mostra mais uma vez a história de um indivíduo que, por motivos pessoais, vê-se obrigado a atuar contra o sistema social vigente. Sujeitos que enxergaram para além do paradigma, da bolha invisível que deixa as relações sociais nebulosas. Personagens que até então eram esmagados pela estrutura social e que resolvem fazer algo. O êxito da vingança é quase uma recompensa, impossível não se deliciar ao assistir à explosão da casa grande ou com o incêndio do cinema nazista, por mais imoral e violento que pareça.

Como disse no começo, tenho pra mim que Tarantino não fala sobre a época do nazismo ou da escravidão, mas sim dos dias de hoje, tanto que parece pouco se importar com a veracidade histórica das cenas. Ele se vinga do passado para questionar o presente. Há um século era normal que um negro não pudesse ter seu próprio cavalo ou entrar em um bar (embora muitos estabelecimentos e instituições ainda pensem como no século retrasado). E hoje, o que consideramos normal e que daqui a um século será considerado absurdo? Noutras palavras, o que de absurdo vivemos como normal? O sistema financeiro? A homofobia? A péssima distribuição de renda? Intolerância religiosa? A democracia representativa? 44 horas de trabalho?

Cada um elencará seus palpites. Mas Django Livre mostra que é preciso ir além da consciência do absurdo que se tornou normal no dia-a-dia. É preciso saber se, tendo a navalha conosco, teremos a coragem de cortar o pescoço ou apenas apertaremos a mão de nossos senhores, selando assim nossa própria inércia diante do mundo.


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