VÍDEO: MURILO CAMPANHA CONTA ITATINGA

O psicanalista Murilo Campanha fala sobre Itatinga, um dos maiores bairros de prostituição da América Latina, onde ele tem seu consultório.

O nadador

Uma crônica de Hugo Ciavatta.

Ainda que as bolachas falassem

Crônica de Fábio Accardo sobre infância e imaginação

Ousemos tocar estrelas

Uma reflexão de Thiago Aoki.

Entre o amarelo e o vermelho

Uma crônica de Hugo Ciavatta

O homem cordial vinhedense

A classe média vai ao barbeiro. Uma crônica de Caio Moretto.

terça-feira, 27 de março de 2012

Coluna do leitor - Considerações sobre Belo Monte

. . Por Mistura Indigesta, com 0 comentários

Por Márcio M. Ribeiro



"Estou na amazônia e todos meus amigos correm desesperadamente atrás de pequenos animais silvestres.

Muitos deles já tinham conseguido pegar algum filhote de onça ou de crocodilo e o levam de baixo do braço.

Eu quero ajudá-los mais minhas pernas não se mexem.

De repente eu sou a menina de Pinheirinho, aquela da foto,

mas ao mesmo tempo vejo o olhar fulminante dela/meu e é como se ela olhasse pra dentro de mim.

A água já está acima do umbigo. É o dilúvio do fim do mundo entregue dentro do prazo pela CCBM.

Meus amigos seguram os filhotes acima da cabeça procuram desesperadamente por uma arca que nunca vem."



Em janeiro viajei com amigos para Altamira para, além de curtir as férias, conhecer mais sobre a construção de Belo Monte. Ouvíramos falar muito sobre o assunto durante os meses acampados sob o viaduto do chá, mas sabíamos da importância de ir até lá para ver de perto. Fora o relato da viagem, não escrevi nenhum outro texto sobre o assunto desde então, por isso, faço-o agora.



O Crime


A usina de belo monte está sendo construída na região do município de Altamira e, se concluída, irá custar por volta de 25 bilhões de reais. A montante (acima) da barragem do rio irá alagar as propriedades de 16 mil pe... 24 mil pessoas. Pouco se sabe sobre o impacto na ictiofauna (nos peixes) local, mas certamente milhares de animais serão sacrificados e algumas espécies serão extintas. A jusante (para baixo) da barragem do rio irá secar privando centenas de indígenas e ribeirinhos de sua única forma de sustento.


Outros 4 projetos de barragem existem para o rio Xingu e especialistas afirmam que a construção de Belo Monte só será economicamente viável caso se considere a construção destas outras barragens. Isto significaria o alagamento de uma área ainda maior da amazônia que incluiria dezenas de terras indígenas e o extermínio de mais alguns milhares de animais e plantas.



Mas claro que cada habitante desalojado receberá uma indenização justa previamente acordada, vide o seu Sebastião. Os índios obviamente estão sendo consultados e a Norte Energia já providenciou a arca que irá salvar meia dúzia de animais antes do dilúvio.


Porém, mais importante do que isso. Todo este sacrifício é por um bem maior. Afinal, o fim justificam os meios, né?



O Discurso


De um lado temos um investimento público bilionário em um país carente de tudo, milhares de desapropriados, extermínio de espécies animais e vegetais. E do outro lado?


Bom, do outro lado temos o crescimento econômico. A energia barata de Belo Monte irá atrair investimentos. O país manterá seu lugar como principal produtor de alumínio e papel e a industria nacional irá se desenvolver forte e competitiva.


Mas o que EU tenho a ver com isso? Bom, mais energia, mais investimento, mais recursos, mais empregos. Para manter nossos empregos, atribuímos à Amazônia um papel de provedor de energia, assim como para manter seus empregos os japoneses atribuem ao Brasil o papel de provedor de alumínio. Está tudo conectado - nos dizem - tudo globalizado.


E me pergunto: porque nos esforçamos tanto para compreender a conexão econômica entre São Paulo, Altamira e Tókio e somos TÃO preguiçosos para compreender a conexão entre nós, nossas famílias, os ribeirinhos, os índios, os peixes e as árvores de Altamira? Aí - nos dizem - estamos sendo metafísicos. Vocês acreditam mesmo nesta baboseira de Gaia, Pacha mama, Baba Nam Kevalam?



A Resistência


Poderia escrever mais algumas dúzias de linhas pra convencê-lo(a) da materialidade de nossa conexão, mas não vou fazê-lo porque sei que você sabe do que eu estou falando. Sei que você também chora quando ouve a história da Maria do Espírito Santo e do José Claudio, que você sente a injustiça no olhar da menina do pinheirinho. Não tenho que te explicar porque você sente em você a dor do décimo terceiro tiro no mineirinho.


Queria só que você soubesse que não está sozinha, que eu sinto isso também e que, como eu, outros tantos também o sentem e gritam. Sei disso porque vejo um grafite, um lamb, um vídeo, uma música, uma pequena manifestação... e nessas horas tenho certeza, e sei que você também tem, de que essa conexão é tão real quanto a outra.




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Marcio Moretto Ribeiro (@marciomoretto) é doutor em ciências da computação pela USP, pós-doutorando em lógica pela Unicamp e indigesto por parentesco. Já escreveu aqui no Mistura Indigesta sobre a Ocupação do Viaduto do Chá e compartilha agora suas considerações sobre Belo Monte após retornar de Altamira.

domingo, 18 de março de 2012

O cinza de David Small

. . Por Unknown, com 3 comentários

"(...) cuando el enfermo se acostumbraba a su estado de vigilia,
empezaban a borrarse de su memoria los recuerdos de la infancia,
luego el nombre y la noción de las cosas,
y por último la identidad de las personas
y aun la conciencia del proprio ser,
hasta hundierse en una especie de idiotez sin passado."
(G.G. Márquez)

Nos últimos anos, muitas são as HQs (Histórias em Quadrinhos) autobiográficas. Uma rápida pesquisa pela internet traz nomes como “Fun Home”, de Alison Bechdel, “Mas ele diz que me ama”, de Rosalind Penfold, “Essa Bunch É um Amor”, de Aline Kominsky-Crumb, e “Persépolis”, de Marjane Satrapi. Essa última, inclusive, ficou bastante conhecida com a adaptação ao cinema. Mas inventariar essas publicações - curiosamente escritas por mulheres -, numa verdadeira obsessão "estatística" a procura de elementos recorrentes nesse cenário, não parece responder à razão do suposto crescimento de títulos desse gênero. Mesmo que um hipotético painel dessas publicações fornecesse uma visão das temáticas presentes nas histórias de cada desenhista, suas mais variadas origens pelo mundo, épocas e influências, traços e grafias igualmente diversificadas, haveria de haver aquela historia pra nos deixar desconcertados. Foi assim que passei dias, semanas com “Cicatrizes”, de David Small.


Não conhecia “Cicatrizes”, nunca tinha sequer ouvido falar do autor, mas a capa (à esquerda), o cinza, a opacidade, a fresta pela qual corre a luz do quarto depois da escada, tudo isso me assustou. Eu tampouco sabia que o livro era autobiográfico. Mas com ele em mãos, era apenas uma história que parecia envolver medo, suspense e, quem sabe, terror. A contra capa (à direita), no entanto, diz que o rosto de um jovem, de um homem, carrega o menino que outrora foi. Qualquer obviedade, porém, fica para trás com a leitura, que se torna apressada a cada página, tal é o envolvimento que provoca. Uma tarde, uma manhã ou uma noite, que seja, é o suficiente para não descansar enquanto não virar a última página do livro. É como se fôssemos engolidos pelo papel.

Engolido tal como o menino David nesta imagem (abaixo). A referência a Lewis Carroll e ao “Alice No País das Maravilhas” é explícita, já que Alice cai na toca de um coelho e vive uma aventura fantástica, imaginária, como que adentrando os meandros de seus sonhos. David Small, todavia, foge da mensagem de Carroll e mergulha no real, duro, pétreo. Os quadrinhos, os desenhos dele talvez fossem o recanto de seus sonhos, a forma de não ver tão de perto o mundo ao redor.


Porque o mundo de Small, então menino e adolescente, é mais de sombras que de lugares, é mais de esguelha, mais de fechaduras, mais de repreensões que de sorrisos. E isso se reflete em quase todos os personagens da trama, em seus familiares, especialmente. A câmera que os retrata tem a lente torta, quebrada, desajustada, esvazia-os, eles raramente têm olhos, muitas vezes, somente os óculos preenchidos de branco encontram o leitor. A vida de Small não é uma história de terror, é apenas real, demasiadamente.

A exceção é o analista com que o jovem David Small conversa. Novamente, a referência a Carroll é evidente, pois o analista aparece como um coelho, como aquele que guia ou inquieta Alice. É ele quem lhe diz o que é quase impossível para qualquer um, ainda mais para uma criança, aceitar: a mais absurda revelação, tão clara ao longo daqueles anos todos. Se nossas convenções não permitem imaginar, o traço de Small não, era apenas uma questão de tempo para nos assaltar, percebemos em seguida. Depois das palavras do coelho, o que Small descobre não tem nada demais, é absolutamente normal. O casamento insosso dos pais, a infelicidade de todos e a dificuldade por representar uma vida que eles não queriam. Após aquelas palavras do terapeuta, segue o silêncio de Small, o grito, o sufoco e, finalmente, o universo dele parece humanizado. Seus familiares, seu mundo, a Detroit em que viveu, todo o cinza, se não adquire cor depois disso, pelo menos o faz deixar o absurdo e encarar cruamente a tristeza.

Por fim, me lembrei de François Dosse, em “O desafio biográfico”. O filósofo francês, ao recuperar diversos pensadores desse gênero tão controverso, diz que textos (auto)biográficos quase que desidratam o passado para consumo, como se retirassem dele a intensidade do trágico, ao mesmo tempo em que o deixariam doce, singelo, agradável para o hoje. Assim, nessas escritas de si, o passado passaria a ser visto de maneira encantada. Para Dosse, ainda, poderíamos imaginar encontrar nesse gênero a conhecida reafirmação do Eu, dos escritores, do autores desses textos, ou da busca por modelos de vida para os leitores. Dosse, porém, talvez não dissesse isso se tivesse diante dele a história e os desenhos de David Small.

(para Fábio Accardo de Freitas, que faz anos hoje)

quarta-feira, 14 de março de 2012

Como fazer perguntas?

. . Por Fábio Accardo, com 3 comentários

Desde agosto do ano passado que não escrevo um post. Tenho me perguntado por que. O mesmo tempo em que tenho feito de muitas indagações sobre a vida, muitas perguntas, muitos por ques. Acho que estou fazendo as perguntas erradas. Algumas delas não me levam a nada. Outras ao imobilismo. Talvez por isso não tenha conseguido produzir nada.

Nesse tempo, li Diálogo e Conflito. O livro é um diálogo franco entre três educadores populares: Sérgio Guimarães, Moacir Gadotti e Paulo Freire. De leitura clara e dinâmica, o livro aborda o tema do diálogo. Conta um pouco da trajetória dos três “personagens” e se propõem a responder as perguntas de pessoas que passaram pelas diversas palestras, aulas e oficinas em que estiveram presentes Gadotti e Freire. Sérgio é o entrevistador, mas também está na conversa, ou melhor, no diálogo. Num momento do livro, Paulo se diz inferiorizado, frustado, pois Gadotti disse a ele uma vez que havia guardado todas as perguntas que fizeram para ele até hoje. Paulo disse que as deixava em cima da mesa. Se sentiu envergonhado e desrespeitoso. Resolveram então fazer a conversa, e o livro, para tentar trabalhar com essas perguntas guardadas por Gadotti. O livro parte dessas perguntas, mas não se colocam a respondê-las. Dizem que "no fundo, a própria maneira de fazer a pergunta já continha uma resposta." Como assim?

Essa afirmação ficou na minha cabeça e a todo momento tenho me dado conta disso. As perguntas que todos fazemos já trazem consigo a resposta prévia. Será? Creio que, principalmente nós, homens e mulheres da academia, da Universidade, não fomos educados para fazer perguntas. Aprendemos durante 4 anos (ou mais) a questionar, criticar, a desconstruir, se colocar, a constrager. Nunca aprendemos a verdadeiramente dialogar. O ponto não está na pergunta. Não é a mensagem mas quem a faz. As pessoas parecem que não sabem, e não querem, dialogar. Os questionamentos aparentam, em sua maioria, veleidades de poder. As criticas são o argumento da punição. Você está errado, ponto. Não se desconstrói para ir a outro lugar. É simplesmente desmoronar o cabra. A mensagem, aqui a pergunta, é ferramente de poder. Não faz dialogar, só mostra o caminho do qual se parte para te oprimir.

Isso porque penso que uma pergunta só é diálogo quando constrói. Quando leva tanto o emissor quanto ao receptor, por intermédio da mensagem (aula básica de comunicação – não passei disso!), a um diálogo que supera o momento anterior. Um pouco do que Paulo dizia, da denúncia e anúncio, da educação popular. Talvez em Marx, da tese, antítese e sintese. Não sei. Sei que a pergunta não deve ser estática, não deve imobilizar, não é para criticar, para desconstruir. Se pergunta para ir além, para saber, para superar as barreiras que emissor e receptor tem.

Talvez as perguntas nos levem a verdade. A verdade que cada um busca, que estamos buscando. As nossas verdades. Logicomix, outro livro que acabei de ler, conta um pouco da história de Bertrand Russel em busca da verdade. Russel foi um grande pensador que, por meio da matemática e filosofia, queria cegar aos limites da possibilidade da razão para, a partir da lógica, chegar a verdade. O livro é uma história em quadrinhos divertida. História e ficção se reúnem para nos contar o caminho tortuoso do nosso (anti-)herói em “busca da verdade”. Um pouco de história da matemática, dos seus fundamentos. Mas também um pouco da história das perguntas. E nos perguntamos, ele então conseguiu chegar na “verdade”? O que acham?

Sei que tudo isso tem me levado a concordar com meu amigo que escreveu um texto neste mesmo blog, a um tempo atrás: no fundo, as únicas perguntas realmente importantes são aquelas que podem ser formuladas por uma criança.

Vou alá! (do português voilá!)

Ps: agora me pergunto – quanto tempo mais vou levar para escrever um novo post? (nessa pergunta já estão incluídas as informações que fazia tempo que não escrevia, que há uma necessidade e uma cobrança em escrever um post, que vou necessariamente levar um tempo, etc, etc, blá-blá-blá....talvez essa não seja a pergunta certa. Essa me leva a um imobilismo. Alguém pode me ajudar?)

domingo, 11 de março de 2012

O Milagre

. . Por Thiago Aoki, com 3 comentários

Foi há algum tempo, me lembro bem. A estrutura de nossa casa era velha e, nos meus dezessete anos, foi uma das poucas vezes em que vi algum brilho no olho de meu pai.

- Vamos reformar a casa! Coisa rápida, dois ou três meses. Aumentar o quarto seu e de sua irmã, colocar um barzinho na sala e arrumar toda a cozinha. Se tudo der certo, teremos ainda uma garagem para nosso carro parar de dormir no sereno.

Não havia como não gostar daquele ímpeto, e logo nos mudamos, provisoriamente, para um apartamentinho, apertado, mas suficiente. Foram exatas três semanas passadas, quando vi meu pai colocar whisky em seu copo e, eu já sabia, não era bom sinal. Ele estava quieto quando minha mãe chegou e perguntou o que havia acontecido.

- Fui demitido.

A frase me fez sentir um frio na barriga, raro, já devia ter sentido algo semelhante em alguma bronca, mas não com aquela intensidade, sabia que meu pai falava sério. Teríamos que nos apressar para mudar para a minúscula casa de minha avó materna até que a reforma fosse acabada.

Queria ajudar de alguma maneira e, com a mesma facilidade que adulto inventa problema, jovem inventa solução. Decidi que moraria na república de um pessoal da faculdade com quem eu jogava bola vez ou outra, tudo que um jovem poderia almejar. Meu pai hesitou, mas depois de se culpar pelo fracasso financeiro da família, não quis podar meu sorriso e aceitou que eu passasse o mês por lá.

E foi lá mesmo que tive grandes momentos, o primeiro porre, a primeira noite de sexo, mas, por incrível que pareça, nada me ensinou tanto quanto um quiproquó que tive com a vizinha da nossa república, dona Zilda.

A velha devia ter uns setenta, e era conhecida por ter grande influência na pequena cidade, sendo irmã do delegado, prima do prefeito e viúva de Ernesto Rosário, um grande magnata local. Ela era linha dura, não tolerava barulho após as oito e já tinha pedido pro seu irmão mandar a polícia umas três vezes para nossa casa por perturbação da ordem. Pra piorar, a velha morava sozinha, ou melhor, com seu poodle, Fifó, um xodó e talvez a única razão de viver da ranzinza.

Nós, por outro lado, tínhamos um grande vira-lata preto, Brutus, que latia alto pra burro, principalmente quando o maldito poodle insistia em passar bem pertinho do nosso portão, como quem diz “estou passeando enquanto você está preso”.

Um dia voltei da casa de minha vó e todos meus amigos estavam em frente à república, chamando Brutus desesperadamente. Ele havia fugido durante a dedetização da casa. “Vamos torcer para ele não atacar alguma criança que estiver passando” comentei antes de sair correndo à sua procura.

Foram dois quarteirões pra cima, em um terreno baldio, que vi uma cena aterrorizante. Era Brutus, viril, jogando o Fifó da vizinha para cima e para baixo, mordendo-o com determinação como se fosse uma bolinha de pelos. O poodle branco já estava marrom de terra e vermelho de sangue quando apartei o vira-lata. Levei o cachorrinho junto com Brutus pra república, escondendo o cadáver embaixo de minha camiseta. De longe, meus amigos comemoravam aliviados a chegada de Brutus, quando perceberam que eu estava sério e queria falar com todos no quintal dos fundos.

Com os moradores reunidos, respirei fundo e tirei o pequeno cachorrinho debaixo de minha blusa, destruído. Por um minuto ninguém teve palavras, considerei um minuto de silêncio. Iniciou-se, então, um debate. Parte da república defendia que deveríamos enterrar o bicho e fingir que nada aconteceu. Outra parte, da qual me incluo, achava errado não contar para a velha que seu único companheiro havia morrido.

Estava empatado quando Pablo, o voto de minerva, decidiu em um desses momentos raros de inspiração na vida de um homem:

-Vamos lavá-lo e jogá-lo de volta na casa da velha. Parecerá uma morte natural.

O pior foi que todos toparam. Como eu já havia cumprido o dever de achar o cachorro, resolvi tirar um cochilo enquanto os rapazes começavam o trabalho de limpeza que incluía desde detergente pra limpar a terra até talco nas mordidas para recompor o poodle.

Acordei umas duas horas depois e, quando olhei no canto da sala, lá estava Fifó, limpinho. Confesso que se eu não tivesse visto a inesquecível cena de Brutus esfolando o pequeno, poderia jurar que ele havia morrido de febre ou qualquer coisa que não sangra.

Esperamos a velha sair para igreja - devia estar desesperada, rezando pro cãozinho aparecer - e lá o jogamos, por cima do muro. O coitado caiu estatelado, a farsa estava pronta.

Ficamos esperando a noite, ansiosos para ver a reação da velha, um pouco orgulhosos de nossa decisão em não omitir a morte de seu companheiro. Ela simplesmente enterrou seu companheiro, e nada mais. Engraçado foi que passaram um, dois, três dias e nenhum sinal da antipática senhora. Fazia uma semana e nada da velha se manifestar, sequer um resmungo ou um questionamento sobre a morte misteriosa. Muito estranho, havia algo de mal resolvido no ar e aquilo começou a nos incomodar, nos sentíamos um pouco culpados e o ambiente na casa estava sempre pesado.

No décimo dia após o assassinato, enquanto almoçávamos, decidíamos se falaríamos ou não com a velha. Foi quando a campainha tocou e lá estava ela. Tremíamos a perna e tentávamos esconder com um sorriso amarelo nosso nervosismo. Como eu estava de favor na casa, criei coragem e resolvi atendê-la.

- Oi dona Zilda, tudo bem?

- Tudo sim.

Ficamos imersos em um silêncio meio constrangedor.

- Quer almoçar? – sabia que a velha não aceitaria.

- Não, não.

Mais uma pausa longa que começou a me incomodar.

- Posso ajudar em alguma coisa?

-Bom.. Não sei muito por onde começar.. É que... Fifó morreu.

Engoli seco e todos os rapazes na cozinha não conseguiram evitar olhar em nossa direção para ouvir o rumo da conversa.

- Mo...Morreu, foi? Poxa, sinto muito, muito mesmo...

- Pois é, mas não é exatamente esse o problema.

- Não, é?

-Não.

-E o que é então?

-É que algo estranho aconteceu...

-Es..Estranho? O que foi?

- Olha, Fifó morreu há onze dias, e, com muita dor, o enterrei em um terreno baldio dois quarteirões pra cima. Já estava me conformando com a perda após muito rezar na igreja, zelando por sua alma. Mas eis que chego em casa e lá está ele, limpinho, em minha garagem, como se nada tivesse acontecido!

Alguns talheres caíram, um dos rapazes engasgou, o outro derrubou um copo e eu, sem reação na frente de dona Zilda, só consegui dizer:

- Que milagre!

- Foi mesmo... A única explicação... Um milagre!

A velha abriu um sorriso satisfeito e se foi, gastaria sua tarde contando para toda a vizinhança a dádiva recebida.

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PS: Baseado em fatos reais, mas, juro, não me lembro de quem

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