VÍDEO: MURILO CAMPANHA CONTA ITATINGA

O psicanalista Murilo Campanha fala sobre Itatinga, um dos maiores bairros de prostituição da América Latina, onde ele tem seu consultório.

O nadador

Uma crônica de Hugo Ciavatta.

Ainda que as bolachas falassem

Crônica de Fábio Accardo sobre infância e imaginação

Ousemos tocar estrelas

Uma reflexão de Thiago Aoki.

Entre o amarelo e o vermelho

Uma crônica de Hugo Ciavatta

O homem cordial vinhedense

A classe média vai ao barbeiro. Uma crônica de Caio Moretto.

sábado, 21 de dezembro de 2013

Vídeo - Murilo Campanha conta Itatinga em Campinas

. . Por Mistura Indigesta, com 1 commentário

O Mistura Indigesta lança hoje seu primeiro vídeo. É uma conversa com o psicanalista Murilo Campanha, que atende em um consultório no bairro do Itatinga, em Campinas, uma das maiores zonas de prostituição da América Latina.




segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

O nadador

. . Por Unknown, com 0 comentários




Mania de ficar olhando, como quem procura não sabe o que, como quem vê, mas não põe reparo: um falso atento, sou desses. Por isso gosto de natação, apesar do desconforto de uma touca, de óculos ridículos, de somente vestir uma sunga, os protetores auriculares denunciam, ali a gente não está nem aí pro mundo, somos nós e a água, nossos olhos contam os azulejos, voltam-se pro teto, contam os azulejos, prum lado, pro outro. Porque, quando meus joelhos suportam correr, minha atenção se cansa primeiro, antes mesmo dos meus pés. Daí desisto do movimento da rua, do trânsito. Pelo mesmo motivo, não tenho paciência para academia, pros inúmeros espelhos, para o barulho dos ferros e para a trilha sonora de supermercado. Na piscina, mesmo assim, não estamos esquecidos.


Há o tiozão simpático de padaria, há também a velhinha too much de beira de piscina. Se é difícil dividir pasta de dente, agora imagine uma raia. Já mudei de horários, fico atento - dessa vez, de verdade -, pra ver quem está descansando quando eu também quero descansar, já aumentei trajetos, me esbafori, já fiz muito só pra não manter papinho de beirada de piscina. Suspiro todas as vezes que se aproxima o verão, todo o mundo do mundo do Brasil resolve nadar quando ficaram pra trás os dias mais frios. Tolero três, quatro numa única raia, velhinho mais lento, garoto triângulo fortão querendo alcançar o Cielo que tem dentro de si. Só não me conta sua vida na beira da piscina, por favor, me deixa na minha meditação aquática.


Fui fraco da última vez, porém, e me arrependi de não ter puxado assunto. Mal acabara de me aquecer, começava o plano mirabolante de resistência, estimado em centenas de metros por poucos minutos, mas um infante se debruçou na raia ao lado, voltando-se pra mim. Nas duas primeiras vezes que o vi, pensei, ok, ele está descansando. Na terceira e na quarta, decidi não interromper meu plano só pra pedir pro salva vidas retirar o moleque dali. Não nego, sou encrenqueiro – sou desses, também –, o menino me incomodava, parecia me observar. Eu observo, mas não gosto de ser observado. Hugo, deixe de ser egocentrado, não é com você, eu repeti algumas vezes. Então alternei a respiração e me demorei dois segundos a mais em duas batidas de canto. Não havia outra pessoa do meu lado na piscina, eu estava mesmo sozinho naquela raia. Ele, irritantemente, continuava me observando.


E ainda que a vida seja cada vez mais precoce, o menino era pequeno demais para ser um agente da conspiração. Tive certeza que ele me namorava, mas não fugi, não me intimidei, porque percebi o motivo. Ele não estava sozinho, ao seu lado estava de pé um rapaz. Próximo deles, ouvi o sujeito se dirigindo ao menino, enquanto eu reduzia o ritmo, parando um segundo a mais novamente na batida: “é como se o cotovelo apontasse pro teto, pro céu”. Não entendi e, outra vez, na volta, me demorei ao lado deles: “viu, os pés não param de bater”. Só podiam se referir a mim, percebi, os meus cotovelos apontavam pra cima ao sair da água, repetindo o movimento enquanto meus pés também não paravam de bater. O rapaz estava ensinando o menino a nadar dando a mim como exemplo. Imaginei serem pai e filho e, a partir desse instante, minhas braçadas eram acenos de candidatas num concurso de miss. 

Quando eu era criança, meus pais me mandaram pra natação por causa de problemas respiratórios. Passei uns par de anos praticando sem esse esquema de competição e treinamento intenso. Acho que aprendi direito, vai. Mesmo assim, alguns anos atrás, voltei a fazer aulas pra me obrigar a ser mais disciplinado e descobri várias coisas novas. Não sou expert, mas também não nado cachorrinho. De pequeno, só lembro do professor me enchendo pra virar a perna esquerda quando ia o estilo peito, ou me dizendo pra não mexer o quadril enquanto batia as pernas no nado livre. Mancada, né, ele reprimiu o meu rebolado.


Mas aproveitei a condição de nadador exemplar neste dia e esbanjei. Abri mão do meu plano inicial e me exibi mesmo. Fazia um medley só meu, ia em nado livre, voltava de peito e deixava o borboleta por último. Porque mané não toma jeito, não adianta. Amaldiçoo, sempre que tenho oportunidade, quem inventou o nado borboleta. Pai amado, no meu caso, atento ao remelexo e à curvatura do corpo, esse estilo deveria se chamar ‘galinha d’Angola’. O garoto viu tudo naquele momento, menos borboleta. 

Reflito sobre os nomes dos estilos de natação, e isso merece sério texto, mas saí contente da água. Acabado, mesmo tendo nadado menos, no entanto esperançoso de que a prática tenha ganhado um novo adepto, quer dizer, desde que ele também não fique de conversinha na beira da piscina.




domingo, 8 de dezembro de 2013

Coluna do Leitor - cunversa vai cunversa vem

. . Por Mistura Indigesta, com 0 comentários


- Então cê tá me dizendo que não existe ciência? 

- Não...

- Tu disse que tudo é ficção...

- Não, não disse isso... eu disse que tudo que é letra impressa em papel é literatura. Existe um fetiche em relação às letrinhas impressas em papel. Daí que muita literatura vira verdade, ao invés de ser um parecer individual e momentâneo de alguém sobre algo...

- Olhaí... cê tá afirmando sim que não existe ciência.

- Se eu salgar muito o feijão ele fica salgado. Se eu não guardar na geladeira ele apodrece mais rápido. Se eu assentar os tijolos de forma errada a casa cai. Se eu não aguar e adubar minha abóbora talvez ela não vingue. Isso eu posso chamar de ciência... Agora, Ciência Social, cientista social... isso não existe... brisar sobre a vida do outro ou dos outros é arte, é música, poesia, literatura, esporte...

- E é uma coisa que as pessoas fazem desde há uma cacetada de tempo atrás... antes dos institutos científicos nascerem... e não só na ciência social... Dá forma como você coloca parece que a última invenção científica dos laboratórios, dos centros de excelência, da tecnologia "de ponta" são belezinha, e o que é texto, das "ciências sociais" é que é brisa, especulação...

- Pódiscrê... O cientista ganha status... pode ficar cagando reflexões como verdades... como Ciência...

- Falando nisso, tu salgou memo essa porra de feijão, hein!? Qué mata sua mãe?! Sou hipertensa, doido!

- Foi mal... mas a abóbora tá massa...




João da Silva e Tessy Priscila escreveram esse diálogo.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Entre o amarelo e o vermelho

. . Por Unknown, com 0 comentários




O semáforo estava na luz amarela, eu vi que não daria pra atravessá-lo, ele ficou vermelho em seguida. Reduzi e, freando, antes de parar o carro, pelo espelho retrovisor do centro, ainda deu tempo de ver que quem vinha atrás de mim não reduzira, então retirei o pé do freio e, na fração seguinte, pow, percebi meu corpo distante do banco ao mesmo tempo que enlaçado pelo cinto de segurança. Minha cabeça fez um sim largo e instantâneo do encosto ao esterno. Eu estava certo. O carro de trás estava errado, o semáforo estava fechado, ele o atravessaria se eu não estivesse na sua frente. Como eu estava ali, ele me acertou, e porque ele me acertou, estava errado outra vez. O acidente – isso que é casualidade e simplesmente acontece – foi causado por ele. 


No playground da monótona existência, eu já ia pedir pra repetir o número do espetáculo e jogar os braços pra trás, queria sentir outra vez toda aquela emoção. Mas mudei de vida – torno pública a minha conversão – agora procuro evitar rompantes. Quer dizer, o mundo segue certinho, quem anda errado sou eu. Em todo caso, foi curioso perceber que o aparelho de som do carro não parou de tocar depois do impacto, mesmo tendo saltado do painel. Coloquei-o no lugar enquanto acompanhava a letra da conhecida música que se iniciava, o ritmo, porém, era outro, por isso preferi desliga-lo, para não me atrapalhar. Encostei o carro no movimento que a batida o fez percorrer  falando assim eu pareço um ninja, todo ligeiro –, e fiquei torcendo pra não ser um playboy, ou um psicopata o responsável pelo volante no carro de trás, afinal, bastava ele estar errado, maluco já era demais. 


Pelo mesmo espelho retrovisor, vi que eram três pessoas dentro daquele colorido e grande carro esporte, eu estava sozinho. Pelo menos, também, o vidro de trás do meu carro, que me permitiu vê-los, não tinha sinal algum de dano. Eu continuava certo. Desci tentando não olhar muito e abandonar a sensação de que meu porta malas estava colado ao meu banco. Não estava, meu carro modelo sedan mantinha até mesmo o tamanho de seu porta malas original. A frente do colorido e grande carro esporte, no entanto, estava muito danificada, como o meu para choque. Meu porta malas não, um pouco menos. O motorista, que estava errado, desceu: 

- Ô amiguinho!
- (...)
- Ô amiguinho, tá tudo bem aí, aconteceu alguma coisa com você?

- Não, cara, não aconteceu nada comigo, tá tudo bem. Tá tudo bem aí também, aconteceu alguma coisa com vocês? – descia a passageira dele, se dirigindo ao meu carro.
- Nossa, não bastasse fazer um estrago assim na frente, tinha que bater num carro desses que sequer amassou direito a traseira – imaginei que tipo de acidente eles esperavam causar sem danos a si próprios e, mais, que tipo de veículo estavam acostumados a acertar pelo mundo afora.
- A senhora tá com algum problema no braço? Quer que te leve no hospital, no pronto socorro?  ela revirava o braço fazendo uma expressão muito semelhante às primeiras palavras dela ao sair do carro.
- Não, não, amiguinho – me interrompeu o motorista enquanto eu insistia, me dirigindo também à moça no banco traseiro, que não descera – Não, a gente já vai indo. Aqui ó, meu cartão, me procura no salão ali, cinco quadras à frente, a gente acerta tudo direitinho depois, fica tranquilo, não aconteceu nada – só faltou ele dizer que estava tudo certo. 


No cartão dele havia o mesmo nome da concessionária que bordava seu uniforme. Em vez da delegacia, de um boletim de ocorrência, o cartão da concessionária os substituiu. Errei. No dia seguinte, fui ao endereço tão próximo do acidente. O motorista era mesmo funcionário e, quando do sucedido, ele havia acabado de vender um exemplar idêntico do colorido e grande carro esporte que guiava à mãe e filha que eram suas passageiras. Voltavam do pátio da revendedora, na saída da cidade. Ele conversava com a mulher, explicava-lhe o painel, falava à filha dela no banco de trás, a mãe tirara o cinto de segurança, pois estavam há poucos metros do destino. Ele virou-se para trás, não viu o sinal, quando percebeu, não teve o que fazer. Foi uma sucessão de erros, na verdade. Com a batida, a mulher foi jogada para baixo do painel e deslocara a clavícula. O carro não estava registrado no seguro da concessionária, então o acidente ficou por conta dele, funcionário, que preferia não ter um boletim de ocorrência em seu nome num veículo da empresa. 


Peguei outro cartão, o do funileiro que ele indicou, levei o meu carro lá. Depois de cinco dias, voltei e vi que o para choque havia sido reformado, pintado. O porta malas, aquele que não havia amassado tanto, conforme a passageira, pois é, estava do jeito que eu deixei lá. Perguntei o que havia acontecido, ouvi que o orçamento não havia sido totalmente liberado e me foi mostrada a frente do colorido e grande carro esporte como justificativa. Só consegui pensar nas palavras da mulher ao descer daquele carro. Eu não tinha um boletim de ocorrência e não poderia deixar mais nenhum dia o carro na funilaria. Peguei as chaves e ouvi a recomendação: vê se presta atenção agora, quando for parar no semáforo. Definitivamente, eu estava no lugar errado.




sábado, 23 de novembro de 2013

Ainda que as bolachas falassem

. . Por Fábio Accardo, com 0 comentários

Ontem Joaquim me disse:

"As bolachas não falam!"

Eu não estava convencido. Indaguei a ele o porquê. Como se fosse claro me respondeu, de pronto:

"Porque ela não tem boca!"

Ainda em dúvida perguntei a ele se tudo que tem boca fala. Contratacou-me dizendo que os passarinhos também não falam. Não deixei nem mais um minuto para a resposta e disse que os passarinhos falavam, mas em outra língua (até me arrisquei fazendo alguns assobios tentando imitar uma conversa de passarinho). Os olhos de Joaquim se perderam. Por alguns instantes. Depois continuamos a brincar. Papo encerrado. Dentro em pouco chegou sua mãe para levar Joaquim embora - viagem longa para casa durante uma tarde ensolarada e quente. Ao se despedir a única coisa que me disse fora:

"mas as bolachas não tem boca!"

De certa maneira uma nova brecha de sonhos e imaginações se abriu ali. Ainda hemos que fazer a bolacha falar. Uma coisa temos em comum acordo - os passáros falam!

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Ousemos tocar as Estrelas

. . Por Thiago Aoki, com 1 commentário

"A mente intuitiva é uma bênção sagrada e a mente racional é um servo fiel. 
Criámos uma sociedade que honra o servo e que esqueceu a bênção"
(Albert Einstein)

Caros amigos,

A maior opressão que vivemos hoje é a prevalência da razão sobre os sonhos. Ô mundinho ruim pra se sonhar. Percebo isso cada vez que escuto expressões como “meu sonho é passar no mestrado”, “sonho com aquela promoção no meu emprego todo dia” ou “estamos realizando o sonho da casa própria”.

Vejam, tudo isso é muito, mas muito, muitíssimo importante na vida como a concebemos. Porém, meus amigos, sonho não tem matéria, sonho deveria ser o inatingível, a exceção, o fabuloso, o sublime... Não apenas mais um parafuso de uma peça da engrenagem dessa grande máquina.

Fico pensando há quanto tempo deixamos de ousar em nossos sonhos, de querer tocar as estrelas... Provavelmente lá pela segunda ou terceira série, quando nos disseram – como se isso fosse a mais pura verdade! – que ela seria apenas uma “grande e luminosa esfera de plasma, mantida íntegra pela gravidade”. E caso duvidemos, lá estão, na retaguarda, wikipedias, earths, maps, tradutors, e outros tutores para nos explicar. Isso mesmo, em algum momento, as estrelas - companheiras dos poetas, guias dos marinheiros que se arriscavam pelo mar, confidentes de todos aqueles que algum dia sentiram-se sozinhos – transformaram-se em uma “grande e luminosa esfera de plasma, mantida íntegra pela gravidade”.  Para mim qualquer teoria social ou filosófica deveria começar respondendo o porquê que em algum momento as estrelas se transformaram em uma mera “grande e luminosa esfera de plasma, mantida íntegra pela gravidade”.  

Mas fato é que estão matando nossas dúvidas, e isso é gravíssimo, pois um mundo sem dúvidas é um mundo chato, onde para tudo já se tem uma verdade, um jeito certo, uma história certa a ser contada, um caminho de mão única.

Por exemplo, não basta comer, é preciso lavar as mãos comsabonete líquido e álcool gel antes da refeição, cumprir uma Dieta de 2000kcal diárias, com 30 mastigações por vez antes de engolir. Ah, importante: dentadas espaçadase tranquilas com intervalos de 20 segundos. E água apenas após as refeições.

Até para limpar a bunda já inventaram a forma correta! Não, não é brincadeira, nem um exagero do desabafo deste que vos escreve. Aconteceu: racionalizaram o cocô. Se você duvida, veja o vídeo abaixo, vindo de nossa maior emissora televisiva.



Assustador, não é? Aliás, falando em vídeo, hoje mesmo pesquisei o termo “dieta” no youtube e encontrei 729.000 vídeos sobre o assunto. Quando pesquisei por “poesia”, foram localizados 403.000. Quase metade! Isso não é inconcebível para vocês? 

Mas o que mais me intriga é como uma sociedade com tanto jeito certo e medida certa pra tudo consegue ser tão doentia e paranoica? Como consegue ter a indústria farmacêutica como um dos setores mais rentáveis da economia e descobrir tantas novas bactérias e vírus?  Como tantas síndromes e tanta tarja preta?

Talvez simplesmente porque uma sociedade sem sonhos, ou com tantas limitações para rabiscá-lo, é uma sociedade doente. E não se enganem, legar ao trabalho e consumo a responsabilidade de alimentar nossa subjetividade só fará de nós seres mais patológicos.

Melhor deixar esse caminho para a arte, para as estrelas e para as demais brechas dessa engrenagem toda.

Ousemos tocar as Estrelas!

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Aquilo

. . Por Fernando Mekaru, com 4 comentários

Acho que estou com uma doença.

Ela se manifesta naquela pequena eternidade dos minutos em que é necessário ficar sozinho em meio à multidão, esperando por algo prosaico, mas relativamente importante, acontecer - filas de banco/supermercado/etc., o tempo de trajeto do metrô, o pedido chegar à mesa do restaurante, a espera no ponto de ônibus... São nesses momentos de calmaria/tédio cotidiano que aquilo aparece, colocado no mundo por algum objeto ou reflexão meio vazios de significado, mas que são a proverbial gota d'água num copo prestes a transbordar, ou que fecham o circuito necessário para a igualmente proverbial oficina do diabo começar a funcionar.

É difícil explicar o que vem a ser aquilo; o importante é que aquilo existe, e normalmente transforma uma platitude qualquer em um longo inferno de reflexões acerca da vida, cuja existência é injustificada no momento em que ele surge. Segue um exemplo recém colhido de uma ida ao supermercado para comprar queijo, escova de dentes, meio quilo de patinho moído, duas tangerinas e saquinhos para chá¹, ao chegar na fila do caixa:

"Pô, que louco, né. Agora tem mais um balcão só pra queijo aqui; se for contar, deve ter coisa na casa de quarenta ou mais queijos diferentes nesse balcão. Apesar disso, continuo escolhendo o mesmo queijo de sempre. Por que será que faço isso? Não é porque é o mais gostoso, pois não conheço o suficiente de queijo pra afirmar isso; nem é por causa do preço, pois tem alguns mais baratos que ele... Não é porque ele me contenta mais, senão nem questionaria o fato de existir tanto queijo no mundo e eu insistir no mesmo de sempre; por que diabos essa preferência ao certo ao invés de arriscar naquilo que pode ser duvidoso? Não sei se é legal isso... E se eu fizer isso com outras coisas da minha vida? Deuses, e se eu só tiver essa vida porque, lá no fundo, fui ensinado a não arriscar com o novo e não aprendi a enxergar e experimentar novas e melhores possibilidades para tudo? Por que escolho aquilo que escolho, e não escolho aquilo que não escolho? Aliás, será que realmente escolho algo nessa vida, ou todas as opções que aparecem a mim já estão com a resposta predeterminada, e é por isso que não tenho vontade de experimentar outros queijos?"

Parei com essa diatribe mental quando me dei conta que tinha saído de casa para comprar o que faltava para o almoço e períodos arredores, e estava voltando para ela com questionamentos sobre a natureza do livre arbítrio vindos da gôndola de queijo dum supermercado. Isso não podia ser coisa normal, que todos da fila estavam fazendo simultaneamente a mim.

[Mentira, parei porque a menina do caixa perguntou se eu queria CPF na nota e se eu era Cliente Mais.]

Aquilo me acontece já faz tempo, e às vezes tenho a impressão que posso me ferrar grandão se der muito ouvido a ele. Como, por exemplo, quando eu estava esperando o ônibus pra voltar da faculdade à noite, após ter perdido o ônibus da minha linha por uma questão de segundos:

"Puxa vida, agora vou ter que esperar mais meia hora pra voltar pra casa... Pior que vão passar umas quatro linhas diferentes, e nenhuma vai pra onde preciso. Aliás, nem sei se preciso delas ou não... Eu devia ver para onde elas vão algum dia antes de falar isso. Ou então subir, na louca, e ver até onde chego com elas. Pode ser perto de casa, pode não ser. De repente, é legal para conhecer um pouco mais a cidade e os arredores... Seria bom pra dar uma chacoalhada no dia-a-dia. Sempre reclamo que as coisas não mudam muito na minha vida, mas às vezes só um ato pequeno de imprudência e um pouco de ousadia podem dar uma estremecida em tudo que temos nela. É, é isso. Eu preciso fazer mais dessas pequenas coisas que, a princípio, não parecem mudar nada, mas mudam toda sua rotina de um jeito ou de outro. É tão fácil, não é mesmo?! Às vezes a mudança está a um sinal de parar prum ônibus que você nunca pegou, e ainda assim temos medo de fazer esses pequenos gestos. Por que será? O nosso descontento é com a falta de mudança na vida, ou com o fato de termos nos contentado fácil demais com aquilo que ela costuma nos dar e não sentir a necessidade de mudar? Acho que só tem um jeito de descobrir..."

Para o alívio da minha família e amigos, mesmo motivado por um curioso existencialismo de ponto de ônibus, decidi não aventurar-me na calada da noite com o próximo ônibus que viesse: li o destino final do ônibus que estava a passar, e algo na minha mente prudentemente apontou que não era o momento apropriado para ir até Americana às dez e meia da noite para descobrir o que ela tinha a mudar na minha vida.

No começo, aquilo me incomodava muito: tinha medo de estar ficando levemente louco, ou de, pior!, estar nessas obsessões pseudointelectuais causadas por estudos de mais e distrações de menos. Porém, comecei a achar aquilo curioso e, depois, interessante: acabei percebendo que, durante o dia-a-dia, praticamente não se oferecem momentos para refletirmos de maneira mais profunda e calma sobre aquilo que estamos fazendo e o que nos cerca, e essa ausência de reflexão pode se tornar uma grande fonte de angústias e dúvidas caso não tenhamos alguns momentos para destilá-las e transformá-las em alguns apontamentos e observações sobre o que estamos fazendo com as nossas vidas.

Ainda que aquilo me passasse um terrível mal-estar de estar pensando demais em momentos inoportunos e me fizesse voltar cheio de angústias de tarefas que, a princípio, não deveriam causar nenhum tipo de desarranjo psíquico, acabei percebendo que era um alívio ter aqueles minutos de reflexão sem rumo: eram eles que me faziam perceber que todo o resto do tempo eu estava ocupando minha cabeça com outras coisas, com outras pessoas e com outros processos, e que toda essa ocupação estava me deixando cego para algumas perguntas importantes que eu devia fazer de vez em quando para mim mesmo, só para me ver um pouco mais e saber como estou, para além das responsabilidades, deveres e afins que se esperam de mim.

Em um mundo que parece ter uma obsessão patológica em não te deixar sozinho ou sem uma avalanche de estímulos em nenhum momento, esse existencialismo de ponto de ônibus é o minuto de silêncio necessário para se ter um dos momentos mais temerosos e raros desses estranhos tempos modernos: aquele em que você fica sozinho, frente a frente aos seus pensamentos, e eles refletem tudo aquilo que você não tem tempo de ver em si próprio durante o resto do dia.
-------------
¹ - Quando fui escrever o texto e fui relembrando os acontecidos, peguei a lista de compras para reproduzir aqui e dei risada ao ver os itens: é o tipo de lista esquisita que só gente que não se organiza muito para ir ao mercado faz. Mas aí fiquei feliz, porque ela me levou a uma associação bizarra: uma lista de compras é meio que como a vida se desenrola - às vezes, as necessidades que se colocam em ambas são imprevistas e muito estranhas se colocadas em conjunto, mas independente da bizarrice ou desconexão que apresentam, precisam ser sanadas para podermos ir em frente e se preocupar com outras coisas.

...

Oh não, aquilo aconteceu enquanto escrevia esse texto.

sábado, 2 de novembro de 2013

O homem cordial vinhedense (ou A classe média vai ao barbeiro)

. . Por Caio Moretto, com 1 commentário

Não há em Vinhedo quem não conheça o Chico (o barbeiro, não o Buarque). Há quem diga, inclusive, valendo-se de uma velha falácia, que se você não sabe quem é o Chico, você não é um verdadeiro vinhedense.

Não sei se por aprendizado profissional ou por seleção natural do ramo, Chico aprendeu a ouvir mais do que falar. Rapidamente, então, tornou-se um grande amigo de todos os vinhedenses com ego mais inflado.

Amigo, portanto, de todos os cidadãos do principado, o mestre barbeiro ouve diariamente, com muita paciência, seus fregueses entrarem e saírem de seu birô com as mesmas desculpas: “vou só no banco, você guarda meu lugar, Chicão?”, “vou só até ali, porque se eu não for, como o mundo depende de mim, talvez ele exploda, mas você segura meu lugar, Chiquinho!”

Chico, sábio, só alerta: “a ordem é de chegada, se outro entrar eu vou atender”.

O cidadão cordial vinhedense se irrita: é incapaz de admitir que a regra, que o processo, que essa  "formalidade inútil", seja mais importante que a (suposta) amizade que ele tem com o barbeiro.

Sérgio Buarque de Hollanda, pai do Chico (o Buarque, não o barbeiro - afinal nossa história tem traços  biográficos não autorizados), define assim uma das principais características do brasileiro: colocar os laços afetivos acima dos racionais, o que ele chamou de “homem cordial”.

Tenho minhas dúvidas se essa é uma característica do brasileiro ou da classe média, mas em ambos os casos o vinhedense é o cordial de dar inveja. Se você tem um problema, ele fala direto com o prefeito. Se você tem um prazo, liga no celular do secretário. Se você tem um compromisso, fala direto com o Chico.

Mas o Chico não se abala: “a ordem é de chegada...”.

Quando eu sofro alguma injustiça ou violência do Estado em Vinhedo, eu lembro do Chico. Porque meu problema tem duas dimensões: aquela que o homem cordial vinhedense entende, que me afeta diretamente e que ele quer solucionar ignorando o processo; mas outra que lhe escapa, que é o problema em si, sua causa, sua repetição.

Solucionar apenas o meu problema não acaba com a minha aflição, porque eu sei que o problema continua aí e que nem todo mundo é amigo do primo do brother do camarada do barbeiro do prefeito.

E eu não me engano: ser conservador não é ir sempre no mesmo barbeiro. Ser conservador é ser esse homem cordial, que quer solucionar o problema da família dele e não o problema em si, o problema de seu grupo e não a causa. Ser conservador não é querer que o pobre morra, é deixar o pobre morrer, porque é querer uma regra para manter todos na linha e uma exceção para garantir seu privilégio. É não se importa que a fila do SUS seja longa e pedir penas mais duras para quem desrespeita as leis, mas no barbeiro a história é outra história, barbeiro é besteirinha: "Pô, Chico!"

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Por que o senhor atirou em mim?

. . Por Caio Moretto, com 2 comentários

A filosofia às vezes me coloca umas perguntas que me deixam fora do ar. De tempos em tempos, por exemplo, releio O mito de sísifo, de Albert Camus, e fico paralisado com a pergunta: “será que a vida vale a pena ser vivida?”. Passo dias apenas perambulando pela minha própria rotina como um observador tentando entender o absurdo que é viver uma vida finita.

Mas esse ano as questões que realmente me tiraram o chão não tiveram nada de filosóficas ou existenciais.

Um pedreiro chamado Amarildo sumiu depois de uma abordagem da polícia. E eu perdi o sono pensando: onde está Amarildo?

Nove pessoas foram assassinadas pela polícia na Maré sem nenhum tipo de enfrentamento ou julgamento. E eu perdi o sono pensando: e se fosse no Leblon?

Um funcionário da Unifesp resolveu não aceitar um insulto de um grupo de policiais. Assassinado na mesma noite por homens encapuzados (não me venha com black blocks), eles me tiraram o sono com a pergunta: quem matou Ricardo?

Hoje morreu um menino chamado Douglas, da idade dos meus alunos, assassinado por um policial. E não há nada que me tire desse estado de merda. Por que se Deus me tirar isso, ele me tira o que resta da minha humanidade. Hoje eu certamente não dormirei de novo, porque um pedaço de mim morreu ali quando o moleque perguntou: por que o senhor atirou em mim?

"Por que o senhor atirou em mim?"

Amanhã eu vou dar minhas aulas normalmente. Vou olhar meus alunos e pensar: podia ter sido eu, podia ter sido um de vocês. Se a rotina, os prazos e as cobranças permitirem, vamos ler a morte do leiteiro de Drummond e ver a Clarice falando como morreu a cada bala levada pelo "bandido" mineirinho. Vamos ficar deprimidos e depois rir de outra coisa qualquer, porque são lados da mesma tentativa de humanização.

Mas no final do dia vai continuar doendo, porque somos todos Douglas. Porque o dia que não doer, nossa resposta a Camus talvez seja definitiva.

Pois é, me engano, talvez sejam essas as perguntas mais existenciais.

"Por que o senhor atirou em mim?"

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

A menina mais chata do mundo

. . Por Unknown, com 2 comentários




Quando eu tinha quatro anos, minha mãe me veio com uma conversa de que eu ganharia uma irmãzinha. Conversa fiada, claro. Ganho nenhum, eu não havia pedido uma irmã, ou irmão, não era presente: eu não havia pedido concorrência. Era sim um grandiosíssimo absurdo, onde já se viu: quem tem como filho a mim, eu, eu mesmo, euzinho, vai lá querer outra criatura?! Não, claro que não, não tinha o menor cabimento. 






Quase vinte e dois anos depois, de maneira igualmente absurda, eu estava assistindo à TV, na sala, e papai virou-se pra mim comentando essa foto acima, mas uma das mãos ele levou ao rosto. Quem conhece papai sabe, ele é referência internacional em dramaticidade. Ele é mimado que só, é chorão, chorão, chorão, muito chorão, papai fala chorando, pede pra passarem o feijão na mesa do almoço e não se sabe se o estão impedindo de comer. Eu mesmo nunca sei se passo o feijão seguido de um lencinho, tamanho drama cotidiano. Papai levava uma das mãos ao rosto se referindo à foto, e disse, "ai, toda vez que olho pra esta foto, me vem até uma coisa, me emociono tanto". Três metros dali, no corredor-salinha-cafofo, o ser que habitava a foto, vinte anos maior, fez um "óinnnn" demorado. Ela já se tornou, mesmo, a menina mais chata do mundo. Eu, que sou muito sensível, oh, continuei trocando de canal na TV, indignado, não tinha desenho animado algum que prestasse.



Na foto, ela parece ter quatro anos, no máximo. Mas eu me lembro que, depois de mamãe me comunicar o "ganho" de uma irmãzinha, eu fiz o que deveria, negociei rapidamente. Lucila, amiga da família, acertou comigo, assim que nascesse Helena, eu lhe daria. Em troca, eu receberia uma incrível mamadeira de leite quente com mel, mais um pão de queijo autêntico. Perfeito, o trato foi selado.



Daí me ferrei, evidentemente, como era de se esperar. Nasceu aquela coisa que a gente carregava em cima de um carrinho. Eu fazia questão de destacar para todo mundo, ela tinha bochechas enormes. Toda vez que eu via Lucila, com quem eu tinha firmado acordo de troca, Santo Deus, que medo eu passava, corria, fugia, escondia o carrinho e aquele serzinho bochechudo. Nunca dei satisfação de cancelamento do trato. Quem sabe ainda hoje Lucila não aceita a pessoa? O problema é que ela ficou grande, e chata, muito chata, enjoada, intrometida, mimada, tornou-se a menina mais chata do mundo. Acho que Lucila não vai querer.

Um dia, poxa vida, eu me lembro bem, ela poderia ter perguntado pro meu pai, ou pra minha mãe, que era mais óbvio, mas não, a chata preferiu perguntar justamente pra mim. Ah, não perdoei. Ela queria saber de onde é que ela tinha vindo. Que pergunta existencial, filosófica. Não vacilei: você foi achada no bueiro, meu pai te encontrou numa boca de lobo. Foi o que eu disse. Pra quê? Minha vó, que Deus a tenha, pessoa mais boa que esse mundo já viu, me deu um sermão de horas, horas. Também, a pessoa de bochechas grandes resolveu chorar e chorar e chorar, só por causa de uma respostinha boba daquelas. Não disse que era chata? Desde pequenina.

Repare na foto, a pequena prendia o cabelo de forma ridícula. O capô do carro estava aberto, era um Chevett 78-79, verde - mas poderia ainda ser aquela Brasília vermelha, 77. Mamãe, de raiva, porque papai não vendia o Chevett por nada, anos depois deu fim no carro, ela o capotou. Juro, tenho pra mim que foi de propósito. A sombra ao fundo é um mistério, não é barrigudinha feito papai, não é fortinha feito mamãe, e é muito alta pra ser eu mesmo àquela época. Muita coisa mudou desde então, a árvore já é outra, a casa de frente também se modificou bastante, o corredor tem outras cores e da bicicleta ninguém sabe o destino. Tinha rodinhas a bicicleta, é verdade, e até hoje eu desconfio se a menina mais chata do mundo sabe mesmo andar sozinha, sem rodinhas. Sabe nada! Quem capturou o instante, atrás da lente, também é um mistério, há uma disputa, todo mundo quer dizer que foi quem tirou a foto. Eu não sei, pode ter sido eu mesmo. De todo modo, pelas redondezas eu estava e, na certa, inclusive, pronto pra chutar as rodinhas por pura atividade circense.

Pra mim, papai diz que se emociona, ninguém acredita nessa foto, porque a criatura foi flagrada em trânsito. Não, digo, não é porque ela estava andando de bicicleta, tsc. É a mais absoluta raridade, no caso, repare, porque ela não está chorando: é um momento único na vida da pessoa. Se não está chorando, porém, repare mais uma vez, por favor, eu insisto, ela está às voltas de um berreiro: ou vinha de choro, ou choraria instantes depois. É o hábito, tal como papai, a menina mais chata do mundo só chora.





quinta-feira, 19 de setembro de 2013

A pombinha e a velha

. . Por Unknown, com 0 comentários


Uma pombinha entrou no vão, na entrada de casa, e não conseguia sair. Presa, batia no teto pintado de branco, sendo que, diante dela, dos dois lados, havia passagens enormes por onde passamos. Não entendo essas construções, na verdade, enormes, apenas para permitir que a água da chuva ou a luz do sol não cheguem à porta da cozinha. A pombinha poderia voar tranquilamente, tal como entrou ali, porém, em vez disso, voava de um lado para o outro, parava sobre a haste do varal, e, às vezes, esbarrava no teto e no espaço entre a laje e as passagens sem portas. Isso foi quinta-feira da semana passada.

Ainda bem que foi na quinta-feira, porque sexta foi dia 13, 13 de setembro. Ainda bem que estamos em setembro, porque fosse agosto haveria uma catástrofe qualquer. Estamos em 2013, imaginem: sexta-feira 13 do mês de agosto em um ano cuja terminação é 13, cruzes. Três anos atrás, numa sexta-feira 13 do mês de agosto, eu, que me chamo Hugo Ciavatta, com treze letras contando o espaçamento como caracter – pode conferir, conte letra por letra, caracter por caracter, são 13 –, inclusive, eu passei num processo seletivo, num concurso público. Não poderia ser diferente, minha colocação na lista de aprovados foi a décima terceira. Ah, foi sorte, claro.

Sexta-feira, 13 de setembro de 2013, também foi aniversário de Dona Iolanda, tia de minha mãe. Dona Iolanda é uma das irmãs mais novas de vovó, já falecida. Assoprou 79 primaveras a Iolanda, e, exatamente dois meses antes, no dia 13 de julho  era um sábado, antes que alguém pense bobagens –, ela caiu na garagem de sua casa. Em um folheto de ofertas de supermercado, no piso da garagem, ela escorregou, deu com o corpo no chão e quebrou partes da bacia e do fêmur. Naquele sábado de julho, ainda, eu levava minhas coisas para a casa de meus pais novamente, depois de oito anos longe, há sessenta quilômetros dali. Enquanto eu fazia minha mudança, Dona Iolanda encontrava o folheto no chão da garagem dela. Foi azar, coitada.

Dos quase oitenta anos, Iolanda viveu cinquenta deles em Franca, onde trabalhou durante vinte e seis anos para o laboratório de um médico. Ela ficava na recepção, colhia material dos pacientes, e mais, fazia análises clínicas. Nunca frequentou curso em qualquer área de saúde, mas ela me contou que era curiosa e doida. Trabalhou aqueles anos sem carteira assinada e só soube disso depois que um paciente começou a acompanhá-la. Terminado o expediente, Quico a levava até o portão da casa dela. Ele se chamava João, embora o conhecessem, misteriosamente, como Quico, ficara viúvo e fazia a corte para Iolanda, trinta anos mais nova que ele. Casaram-se, Quico a levou para São Paulo.

Quico e Iolanda ficaram pouco tempo na capital, apenas alguns anos, porque ele decidiu deixar a vida que levava na cidade em troca de Pontal, pra lá de Sertãozinho. Na rodoviária da pequena cidade, eles abriram uma banca de jornal para fiar os dias. No entanto, os dias foram poucos para Quico, ele logo faleceu. Assim, foram igualmente poucos anos juntos, e isso tudo faz quase trinta anos. Iolanda não se lembra direito: eu pergunto, interessado, curioso, ela se confunde, conta sempre, mesmo que eu já tenha decorado, duas coisas, que a cama dele no hospital era enorme – Quico tinha um metro e noventa de altura, e ela, divertidamente, não chega a um e sessenta –, e que ele sempre segurava a mão dela sobre a mesa.

Depois do hospital, da cirurgia no quadril, devido ao folheto na garagem, Iolanda está em nossa casa, em Ribeirão Preto. Somos vizinhos de quarto, ela e eu. Conheço todos os seus horários, todos os seus ais, seus gostos televisivos, sua fisioterapia, suas impressões de temperatura. Não consigo tirar muitas histórias dela, contudo: eu pergunto de Franca, ela me pergunta se conheço a casa dela em Pontal, e eu conhecia, claro, desde pequeno; eu pergunto dos pais dela, da dezena de irmãos, dela e da única irmã que ainda está viva, ela pergunta se eu conheci Quico; digo que não, que quando ele faleceu eu não havia nascido, pergunto por que o apelido se o nome dele era João, ela não sabe; pergunto como era Quico, ela diz que muito alto, repete, com um metro e noventa de altura; refaço a pergunta sobre Quico, como ele era, Iolanda fala, outra vez, que ele sempre segurava a mão dela sobre a mesa; faço mais uma vez a pergunta sobre como era Quico e, às vezes, ela quer gelatina, às vezes, que a vire na cama, às vezes, que feche a janela.

A mesma janela por onde, no final da tarde daquela quinta-feira, Iolanda assistiu à pombinha, que percebeu como fora parar ali. Bateu no teto uma última vez a bichinha, voou mais baixo e foi embora.







quinta-feira, 15 de agosto de 2013

A funcionária da biblioteca

. . Por Unknown, com 1 commentário


Tudo começou na saída do restaurante do clube. Quando já estava lá fora, na fila do cafézinho, me dei conta de que o prato estava nas minhas mãos, em vez de abandonado cinquenta metros atrás. Depois foi pegando a comida, já passado o feijão e a salada, percebi que precisava de um prato se eu quisesse mesmo carne e arroz. Ao redor, as pessoas riam. Bullying. Três vezes sentei diante do prato e me perguntava o que estava faltando, mas não encontrava uma resposta até que talheres se mostravam ausentes. Foi, foi e então, num belo - talvez nem tanto - dia, estranhamente, eu tinha dois garfos nas mãos para comer. Demorou, porém, entendi que não é bom comer pão de queijo antes das refeições, me deixa atrapalhado.

Não sabia se era progresso, repassando os acontecimentos na minha cabeça, se um avanço em relação a tantos anos de dedicação e correspondente alheamento, ou o fim, outra vez o fim. A primeira vez foi quando cheguei na biblioteca de tantos anos para mim e a funcionária, que atende por Aline, me recebeu visivelmente consternada, dizendo que tinham acabado as chaves dos armários para guardar a bolsa. Isso faz tempo. Não tive dúvidas, foi pura impulsividade, lhe perguntei abruptamente se ela não havia guardado uma chave só para mim. Ela ficou ruborizada. Triunfei. A estagiária ao lado dela, talvez por inveja - quero acreditar -, enquanto estendia a mão com uma chave restante, me olhou ¬¬. Não me abati, me mantive firme quanto às minhas intenções. Mesmo ruborizada, Aline me dizia não entender como poderiam ter acabado as chaves, que ainda era cedo demais, e que somente algum evento nos andares do prédio poderia ter provocado aquilo. Não contente com a primeira infâmia, que lástima, prossegui dizendo que depois de tanto tempo eu merecia uma chave cativa, como que em honra à minha presença diária. Foi demais, Aline me olhou como se contempla um pé de alface. Que fracasso, eu, que já escolhia as palavras para me declarar, então só queria um pão de queijo pra me consolar.

A biblioteca do clube era meu lugar preferido. No mundo mágico do clube, a biblioteca era a minha segunda casa. Juro, não estou me gabando: me tornei um mané por isso. Em todos esses anos, me lembro de uma funcionária lendária, a Luscínia, todo mundo morria de medo dela, sério, e eu também. Ela tomava muitos remédios, antidepressivos, não sei, e durante a noite, quando era o turno dela lá, era comum encontrá-la andando vagarosamente pelos corredores, arrastando as sandálias, empurrando os carrinhos abarrotados de livros. Luscínia usava calças largas que depois até viraram moda, calças que parecem aquelas de palhaço: hippie chique. Ela dizia um "oi" demorado, como quem se esforça muito pra levantar a língua, tinha uma voz tremida, era muito alta, quase do tamanho das estantes. As calças largas faziam dela uma imagem por demais caricata, enorme, fina, comprida e com a cintura e as pernas aparentemente largas. Havia um descompasso em Luscínia. Quantas vezes ela não me parava pra conversar, eu ali engolindo seco, respirando fundo pra não fazer xixi nas calças e ela no maior papo?! Quantas vezes eu não esperei a chuva passar debaixo da entrada coberta, ali na frente da biblioteca, enquanto Luscínia fumava um cigarro ofensivo de tão ruim?! Ela, olha só, inclusive emprestou um livro pra mim uma vez, mesmo eu estando suspenso depois de um atraso. Luscínia fez isso no nome dela, na carteirinha de funcionária. Mas ela virou lenda, desapareceu quando fiquei desempregado e parei de frequentar o clube. Dizem que ela, depois de afastada, se aposentou. Não sei mesmo.

Aline sempre ficou na recepção durante o dia e, nossa, como essa criatura me odiou. Nunca olhou na minha cara a tratante, nunca respondeu a nenhum dos meus milhares de "bom dia" e "boa tarde". Aline é uma nanica, não deve ter um metro e meio de altura, ridícula. Ela nunca usou crachá, então só descobri que o nome dela era Aline depois de muito tempo, daí fui ousado, passei a nomear o bom dia, era "oi, Aline, bom dia", e nada. Eu era rejeitado, oh, desprezado, oh, ignorado, oh, esquecido, oh, mas tudo isso me fez insistir. Eu brincava, às vezes, para outras pessoas me referia a ela como a funcionária que levava um dragão sobre os ombros, desfilando ódio e labaredas ao redor. Passei 47 anos, 8 meses e 19 dias tentando arrancar, na força bruta, um sorriso da Aline. Claro, nunca obtive sucesso. Ela, obviamente, me perseguia, o ódio dela era tamanho que, uma vez, eu já estava indo embora do clube, eu já tinha recebido aviso prévio na firma e emprestava um último livro na biblioteca antes de perder o vínculo: Aline me pediu, além da carteirinha, o R.G.!! Eu gargalhava, repetia, "não é possível, você só pode tá me zuando, cara, você me vê aqui há anos, toda semana, e vem me pedir o R.G. pra te provar que eu sou eu mesmo?! Ah, não é possível!!" Gente, como fiquei indignado aquele dia. Aline sempre me odiou. Acho que, naquele instante, se ela tivesse uma faca, ou uma tesoura que fosse nas mãos, ela tinha dado cabo à minha vida.

Duro é que sou muito bom, sou um dos melhores quando o assunto é tática e estratégia: pra provocar ciúmes na Aline, comecei a puxar conversa com outra funcionária, Sílvia, que também faz o turno durante o dia. Sílvia ficou minha amiga e sempre retornava assunto, trocava figurinha sobre amenidades, coisas sobre o tempo, se vai chover, sobre o fim de semana, sobre qualquer coisa que costure uns segundos de nosso dia. Ah, isso deve ter despertado a fúria, a voracidade, o ciúme, a inveja incontrolável na Aline. Porque eu quase me estatelei no chão quando, me vendo cruzar os corredores da biblioteca, Aline virou-se pra mim e disse "oi, Hugo, tudo bem?". Fiquei assustadíssimo aquele dia, durante a noite, inclusive, nem mesmo cochilar eu consegui, eu ficava reproduzindo a imagem da Aline se dirigindo a mim "Oi, Hugo, tudo bem?" - ela sabia o meu nome!

Ah, uma vez tive um pequeno sucesso. Versado também na arte de reclamar, passei a entrada da biblioteca praguejando contra a espécie de ser que deixara aquele ar condicionado efusivamente ligado. Lá fora já fazia muito frio, oras, para que raios o ar condicionado deveria estar ligado?! Aline estava sozinha no balcão: era a minha chance! Tentando ser eu mesmo sem ser eu mesmo, mesmo, fui de papinho: "Ui, tá frio aqui, né?!"; "Ai, não sei o que acontece, ligamos e desligamos o dia todo porque esfria demais, não conseguimos regular..."; "Ainda mais hoje com essa chuva pela manhã, né? Fica difícil com esse frio..."; "Difícil, o quê? Por que fica difícil?" - surpresa; "Ah, e a preguiça que dá, né?!"; "Ai, Hugo - ela sabia meu nome mesmo! - você não tem jeito de preguiçoso!" - toma essa mundo!; e eu, que não tenho dignidade, insisti: "Ah, o que é isso?! Se tem uma coisa que eu entendo bem é de preguiça, viu!". Enquanto Aline sorria, eu triunfava. Para um pão de queijo eu ia convidá-la quando, tadan, de repente, não mais que de repente, Sílvia chegou cortando o assunto, a conversa toda, o clima, me deixando sozinho, no vazio, levando Aline para uma conversa burocrática que fosse. Ah, conspiração, ah.

É tanto azar, que acho que perdi Aline de vez ontem. Foi demais pra mim, quatro policiais estavam entrando na biblioteca quando eu voltava ao armário para buscar meu giz de cera esquecido na mochila. Só percebi minha reação quando Aline jogou um copinho d'água no meu rosto, eu havia paralisado de medo. Mas não podia, eu tinha que impressioná-la, oras, quatro policiais na biblioteca, então me aproximei para saber o que se passava. Nenhum deles queria emprestar ou devolver um livro, uma pena, e um deles se dirigiu à Sílvia no balcão. Ele tinha um papel nas mãos e, enquanto se aproximava, ergueu e dispôs o papel sobre o balcão com a autoridade que ele e alguns outros mundo afora acreditam que tem, no tom cerimonioso de um coxinha típico:

- Estamos à procura d'o Café. Por gentileza, onde se encontra o Café?
- O Café, pois, onde está o Café, quero saber onde é que está meu amigo Rafael, o que fizeram com ele?! – me aproximei também do balcão enrolando meu bigode, a maneira Dalí.
- Temos esta ordem para cumprir – apontava para o papel – e precisamos d'o Café, aqui também diz que o Café está na biblioteca – transmitindo serenidade.
- É, traga o Café aqui imediatamente, rã! – exaltado, eu só queria impressionar Aline, que, do outro lado, via tudo aquilo com desdém.
- O senhor queira se conter, por favor, deixe que fazemos o nosso trabalho – insípido.


Eu, que deixei de ser bobo faz muito, fiz pose e aguardei do lado, em silêncio. Por fim, o Café tinha açúcar, era branco e não atendia por Rafael. Não me interessei mais, dei de ombros e voltei para o meu canto. Munido do meu giz de cera, ainda tentei puxar assunto com Aline sobre café sem açúcar. Ela não entendia com eu saíra do terror imobilizado para o Clint Eastwood dos trópicos tentando interagir com os policiais, o olhar dela nesse momento eu gostaria de esquecer. Acho que a perdi para sempre. Definitivamente, nem em pequenas doses, pão de queijo nunca mais.




domingo, 4 de agosto de 2013

[Tradução] Eu estou bem

. . Por Fernando Mekaru, com 0 comentários

NOTA DO TRADUTOR: O texto a seguir se propõe a uma questão difícil: como discutir uma questão como o feminismo do ponto de vista do gênero privilegiado na sociedade, sem se deixar nublar nas reflexões pelo fato de certos privilégios serem tomados como dados e, às vezes, nem se perceber este fato?

Este texto não se pretende como portador de uma verdade, ou uma resposta definitiva a esta questão - apenas como um ponto de vista que vai para além da mera intuição e do senso comum. É uma contribuição possível para solucionar uma questão cuja resposta, a princípio longe de ser encontrada, se lapida nos debates, reflexões e combates que giram em torno dela.
----------
Começou outro dia. Estava tranquilamente me queixando por ser obrigado pela sociedade a me barbear todos os dias, e que é realmente lamentável, e até mesmo que um pouco disso era culpa das mulheres, quando ela me jogou na cara:

'Pare um pouco de reclamar; você não é oprimido.'

Observei-a de toda minha altura (e vi que meço 1,73m, de sapatos; foi só um pouco mais do que altura física), e me preparei para lhe devolver meu discurso de sempre em relação a esta questão. Um discurso que aprendi dos outros. Eu ia lhe explicar que, sim, eu também sou oprimido. Que o patriarcado, veja bem, também oprime os homens, minha cara. É como o racismo: os brancos também sofrem com ele, você sabe. E nem te conto sobre a exploração capitalista. Eu sei alguma coisa da exploração capitalista: eu sou professor. Isso quer dizer que ela me é jogada na cara todo dia.

Foi então que ouvi uma voz. Uma voz que vinha de muito longe. Bem do fundo de mim. Creio que ela sempre esteve lá, como um ruído de fundo. Mas ela começo a crescer, a aumentar, a tornar-se verdadeiramente enorme. E ela dizia a mesma coisa que a moça:

"Você não é oprimido."

Ela se tornou um incômodo tão grande na minha cabeça que me senti mal - com a vergonha, com o medo, com a incompreensão. Era tão grande que não soltei meu pequeno discurso de sempre. Não, me calei e saí.

"Você não é oprimido."

Todos esses anos reclamando, sendo persuadido que partilhávamos as mesmas lutas, que estávamos todos encarando o opressor para chegar lá. Foi um choque sagrado, quando penso nisso.

Creio que isso começou quando pude formular o seguinte: "sou um homem branco, hétero, cis e de alta classe". Há uma questão que se sucede: "Mas quem me oprime, realmente?". Procurei bastante, refleti bastante, e percebi o óbvio. "Ninguém". Não sei qual é o caso para os outros homens brancos, héteros, cis e de alta classe, não conheço nada além da minha situação, mas a mim, ninguém oprime. Não. De verdade. Eu estou bem.

Ah, com certeza, o patriarcado, por exemplo, me incomoda mais do que deveria. Claro, com certeza, sou confrontado com obrigações de performance. Com certeza, não devo mostrar minhas emoções porque boys don't cry. Claro, fui muito azucrinado durante a infância e a adolescência por ser uma negação com a bola (sempre fui), porque eu era o nerd de todas as classes que frequentei (não consigo escapar disso), porque eu era tímido (ainda sou), e porque eu não listava minhas conquistas femininas (não há ninguém, além de uma pessoa, que me interessa neste mundo). Houve até mesmo um cara que tirou sarro de mim em um restaurante, porque me entusiasmei demais com uma mousse de chocolate (eu adoro chocolate). Ele disse "parece uma menininha". Naquele momento, me irritei.

Se eu procurar bastante, posso até mesmo encontrar os casos onde foram as mulheres que me incomodaram desta maneira. Quando eu era adolescente, muito mais retraído do que hoje, ignorante das modas, inapto ao universo escolar sem originalidade, sempre houve meninas para me atormentar. E, sem dúvidas, para me rejeitar. Já vi caras se queixarem de "misandria" por coisas desse tipo. [Esta é] uma palavra que encontramos com facilidade por aí. Dizer que os homens se aproveitam da dominação sobre as mulheres? Misandria. Dizer que os homens não são oprimidos? Misandria. Não querer escutar um homem reclamando que é difícil ser homem num mundo de mulheres? Misandria. Sugerir que os homens são menos oprimidos que as mulheres? Misandria. As mulheres não querem sair com um homem? Misandria.

"Você não é oprimido."

Sim, eu sofri, e às vezes sofro por causa das normas de gênero. Mas isso não muda em nada o problema: ninguém me oprime. Ainda que eu sofra, ninguém lucra com isso. Em que medida as gozações que sofri no ginásio e no colégio por parte das garotas melhoraram a condição feminina? Em nada. Em que medida a obrigação masculina de arrolar as conquistas sexuais é benéfico às mulheres? Em nada.

Todas essas situações lamentáveis que pude viver [ocorreram] porque não me conformei, pelo menos não o tempo todo, com o meu papel de dominador. Elas são os custos da dominação masculina. Mas, precisamente, o custo é o seguinte: há algo a ganhar em troca. Estes custos são, antes de tudo, um preço: se me conformo a eles, ganho todas as vantagens de ser um dominador. Ganho a admiração alheia, o acesso a certos círculos, até mesmo o simples direito a ser ouvido. E, ainda assim, para [ganhar] muitas dessas coisas, não tive de fazer nenhum esforço. Para ser considerado alguém sério, ponho um terno e uma gravata, e ninguém se interessará por minhas roupas. Claro, não tenho liberdade de ir ao trabalho de saia ou de bermuda florida. Mas em troca dessas restrições, ganho credibilidade, legitimidade, poder.

E isso não tem nada a ver com aquilo que os oprimidos vivem. Quando se é oprimido, se está precisamente na situação em que se deve pagar um preço sem obter nada em troca, ou ser pago em dinheiro de mentira. Uma mulher que aceita jogar o jogo da feminilidade e se maquia de maneira perceptível (além disso, ela adora maquiagem, é divertido)? Ela sempre terá um babaca para lhe incomodar - "Ei, se você não quer ser incomodada, você não pode chamar a atenção". Ela deixa de fazer algo que ele gosta e aceita não se maquiar? "Ei, você não é feminina, você não se cuida, você não está bem, você está feia assim".

"Você não é oprimido."

E esta é a opressão, um jogo que mesmo quando você respeita as regras, você não pode ganhar. Poderíamos dizer a mesma coisa do racismo (mesmo que um cara me chame de "branco sujo" um dia, isso não me impede de ter acesso a um emprego), da sexualidade (se tenho medo que me tratem como um "veado" por não me vestir de maneira não muito "hétero", são os homossexuais que são oprimidos, não eu), ou mesmo da classe social (a exploração da mais-valia interessa a quem, em sua opinião?).

Sim, porque não apenas ninguém me oprime, mas além disso eu me beneficio da opressão alheia. Não concordo, acho vergonhoso e sou politicamente contra, mas possuo ainda assim uma vantagem prévia sobre minhas concorrentes femininas quando se trata de arranjar um emprego... E isso não é nada além da ponta do iceberg. Não sou oprimido, mas além disso, sou o opressor.

Vi muitos homens que se colocam a questão de qual é o seu lugar no feminismo. Faço parte deles. Refletimos sobre o que fazemos nele, reclamamos que não é fácil, discutimos sobre nós, nós, nós. Tentamos mostrar que somos gentis. E ocupamos muito espaço. Acima de tudo, o espaço da discussão. Talvez devamos procurar menos sobre qual é o nosso lugar em um movimento feminista que não nos esperava, e um pouco mais sobre qual é o nosso lugar no patriarcado. E a resposta é que nós somos os opressores.

"Eu não sou oprimido."

Não, sério, eu estou bem. Então, vamos falar um pouco de você?
----------
Texto original (em francês)

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Machista em recuperação

. . Por Caio Moretto, com 6 comentários

Olá, meu nome é Caio e sou um machista em recuperação.

Inicialmente fiquei bastante chocado com a quebra de santos na manifestação da Marcha das Vadias que ocorreu durante a presença do Papa no Rio de Janeiro. Passei alguns dias tentando entender de onde vinha minha indignação e se ela era legítima. Cheguei ao discurso de que o que mais me incomodava era que isso pudesse criar a imagem de que feminismo e cristianismo são incompatíveis e que isso pudesse fechar o diálogo do feminismo com as mulheres cristãs que tanto sofrem com o machismo praticamente institucionalizado pela Igreja. Minha própria culpa, porém, não permitiu que eu sustentasse essa argumentação por mais de uma noite. Ora, quando foi que eu dei qualquer passo dentro da minha Igreja para abrir o caminho ao combate contra machismo? Pois é.

Há alguns dias eu tenho pensado, então, qual deveria ser minha atitude após constatar esse fato. Resolvi ouvir as pessoas mais cristãs que eu conheço: os dependentes em recuperação dos grupos de ajuda mútua.

Desenho de Ziraldo a uma frase de Drummond.
Diz Freud que quando João fala do Frederico, eu aprendo mais do João do que do Frederico. É uma outra forma de dizer que toda crítica é uma forma de biografia. Pois bem, os grupos de ajuda mútua sugerem que façamos exatamente o contrário. Que toda nossa crítica seja feita através de nossa própria autobiografia e, quem sabe, a gente consiga apontar menos o dedo e mudar mais nossa personalidade e nosso mundo caduco. Talvez seja uma outra forma de dizer aquela frase que atribuímos a Gandhi de que devemos ser a mudança que queremos ver no mundo, talvez seja uma forma de dizer o que o Paulo Freire dizia com “ninguém liberta ninguém, nos libertamos todos juntos em comunhão” ou que palavras valem menos que exemplos. Pode ser tudo isso. Mas da forma como eu vejo o mundo hoje, esse é também o único método que encontrei, até agora, que me permite dialogar mais e julgar menos. E não é essa a base da fé cristã?

Muitos pastores e padres se perdem em lutas vãs contra a ciência, defendendo que o pecado original veio da busca pelo conhecimento. Não! Graças às lutas pelo direito de tradução e reprodução da Bíblia, hoje posso ler com meus próprios olhos e podemos conversar sobre possíveis interpretações. Não me venha dizer que religião não se discute e anular essa conquista! Eu leio em Gêneses, logo naquela passagem que todos conhecem, que Adão e Eva foram expulsos do Paraíso pois comeram o fruto proibido da árvore do conhecimento do bem e do mal. Mas conhecimento do bem e do mal não é ciência, é moral! O pecado original, aquele sobre o qual todos estamos cansados de ouvir, aquele que muitos teólogos utilizam para explicar “a queda” e toda a desgraça humana, não veio da ambição por conhecimento, veio da pretensão de que seríamos capazes de julgar.

Não custa lembrar quantas vezes já erramos o mesmo erro.


Mais de dois milênios se passaram e continuamos cometendo o mesmo pecado original. Mais do que isso, institucionalizamos o pecado original ao transformar nossa fé em dogmas. Cimentamos o Cristo em dogmas, de forma que ele sempre estará de costas para alguém. Os pastores e padres pregam preconceitos nos cultos e perpetuam o pior da tradição cristã (que nada tem a ver com Jesus). E eu, machista e covarde, ouço quieto, achando que é melhor não ofender o pastor enquanto as mulheres são ofendidas, enquanto gays são ofendidos, enquanto ele aponta o dedo para os outros e não para si mesmo e reforça os preconceitos dizendo reforçar os valores cristãos.

Eu, hipócrita, estava chateado porque quebraram representações de santos, imaginando que isso fecharia um diálogo, sendo que eu recuso esse diálogo diariamente ao não me posicionar. Poucos depoimentos feministas foram precisos para eu perceber que não, meu silêncio diante das palavras opressoras da minha própria Igreja não é gentileza, não traz harmonia, nem edifica a paz. Simplesmente porque a paz que ignora ou cala o oprimido não é paz.

No modo como eu leio a Bíblia, Jesus veio ao mundo e nos mostrou que Deus tinha um outro plano para o humanidade, que não se concretizou com Adão e Eva. Ele nos dá um exemplo de como viver o Amor indiscriminadamente, sem jogar a primeira pedra, sem julgar – crime que leva à expulsão do paraíso, como nos mostra a história dos primeiros exilados.

Obviamente, eu não serei a voz do feminismo em minha Igreja. Não pretendo nem posso sê-lo. Não há exercício intelectual que me permita sentir um centésimo do medo e dos constrangimentos aos quais uma mulher está submetida em nossa sociedade. Não há manobra de humildade que me desvincule de minha situação de privilegiado nesse mundo sexista. Não tenho como fugir disso. Mas posso reconhecer essa situação. E posso lutar pela mudança, ao lado de quem se propuser a fazê-lo. Por isso, hoje, ao invés de apontar o santo quebrado, começo me avaliando: sou um machista e homofóbico em recuperação.

Fecho meu testemunho copiando de outro grupo cristão meu pedido de desculpas. Desculpas às mulheres, homossexuais e transexuais que procuram a Cristo em minha Igreja e encontram meu silêncio e não meu acolhimento. Não compactuarei mais com o machismo e com a homofobia em minha Igreja. Basta. Ou somos todos iguais e todos pecadores em busca de Cristo ou continuaremos sendo apenas discípulos de Adão. Desculpe-me pela conivência do meu silêncio. Desculpe-me pelo atraso. Só por hoje.


quinta-feira, 25 de julho de 2013

Passarinho da sorte

. . Por Unknown, com 2 comentários



Não acredito em Deus, não acendo vela e só rezo de vez em quando. De vez em quando, é, não acredito mas adoro assistir a um culto, uma missa que seja. É mais fácil eu aceitar um convite para ir a uma igreja do que para ir ao cinema, juro. Mentira, tudo bem, eu exagerei, mas é quase isso. Se eu não acredito em Deus, no entanto, eu morro de medo Dele. É sério, vejo essas histórias de conversão, de espírito, de castigo, de punição, nossa, vivo caçoando da imagem Dele, imagina se Ele, digamos, me pega pra Cristo – ok, péssima.

Minha família é toda crente, meus pais, minha irmã, tios, vizinhos, primos, papagaios, gatos, cachorros, cada um com a sua crença. A maioria é católico não praticante, uma expressão religiosa absurda, todo mundo sabe, afinal, quem não pratica não é. Eu não entendo, e nem quero. Destituído que sou do órgão metafísico, autista que sou, não me faz sentido ‘vida após a morte’, por exemplo, porque se é ‘morte’, é fim da ‘vida’, cazzo. Assim, eu achava que somente eu mesmo vivia com medo de morrer. Ora, conforme as classificações disponíveis, se eu sou um desses agnósticos, ou ateus, só eu temeria deixar de viver.

Não, não, outro dia eu escutava minha mãe conversando com uma tia dela. Doente, de cama, cheia de dores, a velhinha repetia: ai, eu não quero morrer, eu tenho medo de morrer; ô minha filha, me ajuda, eu não quero morrer. Entre o sorriso desesperador de quem não tem o que fazer e a capacidade de retirar leveza de onde aparentemente nada resiste, senhora minha mãe respondia: peraí, pode parar com isso, que negócio é esse?; cresci ouvindo sermões e frequentando missas com minha mãe e com você, tia, depois veio o Espiritismo: eu nunca vi espírita com medo de morrer!; você é espírita e espírita não pode ter medo de morrer! 

Se Ele existir, que me perdoe, porque eu não segurei o riso ouvindo isso.

Já minha irmã não sabe, mas tenho pra mim que ela mais teme do que confia em Deus, igual a tia da minha mãe. Estávamos numa festa julina, dessas com balão, foguetório, quentão e quadrilha, quando minha irmã me sussurrou: ai, lá vem aquele homem, morro de medo dele. Era o senhor que levava o passarinho da sorte. Todo mundo já viu a gaiola cujo pássaro sai e busca um papelzinho para aquele que comprou sua própria sorte. No pequenino papel há uma mensagem cifrada, enigmática. Faz pelo menos 22 anos é o mesmo homem, talvez não o mesmo pássaro, quem leva a sorte às pessoas nas festas juninas aqui da paróquia.

Vestido de preto, com um bigode grisalho e uma boina também escura, ninguém me tira da cabeça que o homem do passarinho da sorte é como Deus. É, ué. Todo (‘santo’) dia aquele sujeito dobra os papeizinhos com as mensagens, as sortes, as possibilidades da vida de cada um. Aquele homem tem todos os acasos em suas mãos, reordena-os e os distribui na caixinha, todo (‘santo’) dia. Dizem que para Deus nada é impossível, pois bem, então nem tudo para o homem é possível. É Deus quem dá as possibilidades, quem oferece aos homens o que é possível em suas vidas. Justamente como faz o homem do passarinho da sorte. Deus ainda tem uma vantagem: que eu saiba, Ele não tem passarinho e nem cobra pra ler a sorte de ninguém, pelo contrário, já sai distribuindo Seus desígnios, queiram os homens ou não.

Nesta semana, com a visita do Papa, eu confesso, estou adorando esse Natal fora de época. Não tem presente, mas as pessoas estão todas falando de Amor. Uns comedidos, outros mais saidinhos; uns dizem que é preciso reformar as condições de viver o Amor; outros respondem que o Amor é livre, nem vem. Enfim, está bonito, pessoal, porque enquanto existir Amor, está valendo. Agora, se o Amor não existir, hum, aí complica, é melhor correr como se fugisse da PM. Não dizem que Deus é Amor?! – não, sem silogismo com Stevie Wonder, ou trocadilhos dessa vez, por favor. Você pode não acreditar e Ele nem existir, mas é bom ir na igreja. Aliás, vejo entendidos dizendo que Bergoglio mudará os rumos dessa Igreja que habita o século XIII desde Paulo de Tarso, leio que Francisco I brinca, dizendo que Deus é brasileiro, de que é preciso ter fé, celebrar e viver o Amor Dele. 

Deus, enquanto isso...





    • + Lidos
    • Cardápio
    • Antigos