VÍDEO: MURILO CAMPANHA CONTA ITATINGA

O psicanalista Murilo Campanha fala sobre Itatinga, um dos maiores bairros de prostituição da América Latina, onde ele tem seu consultório.

O nadador

Uma crônica de Hugo Ciavatta.

Ainda que as bolachas falassem

Crônica de Fábio Accardo sobre infância e imaginação

Ousemos tocar estrelas

Uma reflexão de Thiago Aoki.

Entre o amarelo e o vermelho

Uma crônica de Hugo Ciavatta

O homem cordial vinhedense

A classe média vai ao barbeiro. Uma crônica de Caio Moretto.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Coluna Do Leitor - Sobre o fenômeno dos empregos imprestáveis, por David Graeber

. . Por Mistura Indigesta, com 1 commentário

Texto original publicado na revista Strike!

[Tradução de Rodrigo Charafeddine Bulamah]


Em 1930, John Maynard Keynes previu que até o fim do século XX a tecnologia teria avançado suficientemente que países como a Grã-Bretanha ou os Estados Unidos conseguiriam chegar à implementação de 15 horas de trabalho por semana. Há todas as razões para se acreditar que ele estava certo. Em termos tecnológicos, somos bastante capazes disso. Mas ainda assim, isso não aconteceu. No lugar, se algo de fato aconteceu, foi que a tecnologia foi mobilizada para encontrar formas de fazer com que todos nós trabalhássemos mais. Para alcançar esse feito, foram criados empregos que são, efetivamente, inúteis. Quantidades incríveis de pessoas, na Europa e na América do Norte, em particular, passam toda sua vida profissional cumprindo funções que elas acreditam intimamente que não precisariam de fato cumprir. O dano moral e espiritual que surge a partir dessa situação é imenso. É uma ferida em nossa alma coletiva. Mas ninguém fala sobre isso.

Por que a utopia prometida por Keynes – aguardada com grande expectativa nos anos 1960 – nunca se materializou? A resposta mais comum hoje é que ele não se deu conta do aumento massivo do consumismo. Frente à escolha entre menos horas de trabalho e mais brinquedos e mais prazeres, nós optamos coletivamente pelo segundo. Isso dá uma boa fábula sobre a moral, mas basta uma reflexão rápida para mostrar que isso não é bem uma verdade. Sim, nós testemunhamos a criação de uma variedade infinita de novos empregos e novas indústrias desde a década de 1920, mas poucos têm algo a ver com a produção e distribuição de sushi, iphones ou calçados bacanas.

Então quais são, de fato, esses novos postos de trabalho? Um relatório recente comparando o emprego, nos EUA, entre 1910 e 2000, nos dá uma imagem clara (e, destaco ainda, muito parecida com aquela do Reino Unido). Ao longo do século passado, o número de trabalhadores empregados como servidores domésticos, como trabalhadores da indústria e do setor agropecuário colapsou drasticamente. Ao mesmo tempo, “trabalhadores profissionais, gerencias, eclesiásticos, de vendas e de serviços” triplicou, crescendo “de um quarto para três quartos do total de empregos”. Em outras palavras, trabalhos produtivos foram, tanto quanto previsto, extensamente automatizados (mesmo se levarmos em conta globalmente os trabalhadores industriais, incluindo a mão-de-obra massiva na Índia e na China, tais trabalhadores estão longe de formar a maioria da população do mundo, como um dia o foram).

Mas ao invés de possibilitar uma grande redução das horas de trabalho, liberando a população mundial para seguir em busca de seus próprios projetos, prazeres, visões e ideias, acompanhamos uma escalada não tanto do “setor de serviços”, mas do setor administrativo, chegando até, e incluindo, a criação de indústrias inteiramente novas como os serviços de finanças ou o telemarketing ou a expansão sem precedentes de setores como o direito corporativo, a administração acadêmica e de saúde, os recursos humanos e as relações públicas. E esses números nem levam em consideração todas aquelas pessoas cujo trabalho é o de fornecer suporte administrativo, técnico ou de segurança a essas indústrias, nem tampouco toda a organização de indústrias auxiliares (como tratadores de cães em pet shops ou os entregadores de pizzarias abertas 24h) que só existem pelo fato de que todas as outras pessoas estão passando muito do seu tempo trabalhando em todas as funções descritas acima.

Estes são o que proponho chamar de “empregos imprestáveis” (ou ainda, “empregos de merda”).

É como se alguém estivesse em algum lugar por aí inventando empregos inúteis pela simples razão de manter todos nós trabalhando. Aqui é, justamente, onde jaz o mistério. No capitalismo, isso é exatamente o que não deveria acontecer. Claro, nos ineficientes Estados socialistas, como a União Soviética, onde o emprego era considerado ao mesmo tempo um direito e uma função sagrada, o sistema inventou tantos empregos quanto fossem necessários (isso explica porque nas lojas de departamento soviéticas eram necessários três balconistas pra vender um pedaço de carne). Mas, é claro, esse é exatamente o tipo de problema que a competição de mercado deveria corrigir. Ao menos, segundo a teoria econômica, a última coisa que uma firma que busca o lucro faria é desembolsar dinheiro pra pagar trabalhadores que não precisa empregar. Ainda assim, de alguma forma, é o que acontece.

Embora as corporações possam passar por impiedosos redimensionamentos (downsizing), as demissões e reescalonamentos caem sobre a classe de pessoas que estão realmente fazendo, movimentando, consertando e mantendo as coisas; por alguma alquimia estranha que ninguém pode de fato explicar, o número de burocratas assalariados parece aumentar e cada vez mais empregados veem a si mesmos, tal como os trabalhadores soviéticos, trabalhando 40 ou mesmo 50 horas por semana no papel, mas efetivamente trabalhando 15 horas, exatamente como previu Keynes, já que passam resto do dia organizando ou frequentando seminários motivacionais, atualizando o perfil do facebook ou baixando músicas e seriados de TV.

A resposta, claramente, não é econômica: é moral e política. A classe dirigente se deu conta de que uma população feliz e produtiva com tempo livre ao seu alcance é um perigo mortal (pense no que começou a acontecer quando nos anos 1960, nos aproximávamos disso,). Por outro lado, lhes é extremamente conveniente o sentimento de que o trabalho é um valor moral em si mesmo e que qualquer um que não queria se submeter a alguma forma de disciplina intensa de trabalho durante grande parte de sua vida não mereça nada.

Certa vez, ao contemplar o aparente crescimento sem fim de responsabilidades administrativas nos departamentos acadêmicos britânicos, me veio uma possível imagem do inferno. O inferno é uma coleção de indivíduos gastando a maior parte do seu tempo trabalhando em uma função de que não gostam nem executam bem. Digamos que eles foram contratados por serem excelentes fabricantes de armários, mas então descobrem que devem passar uma boa parte do seu tempo fritando peixe. Mas nem a função necessita de fato ser realizada, pois há somente um número muito pequeno de peixes que é preciso fritar. Ainda assim, de alguma forma, eles se tornam tão obcecados, ressentidos por pensarem que alguns de seus colegas podem estar gastando mais do seu tempo fazendo armários e não dividindo de modo justo as responsabilidades de fritar peixe, que em pouco tempo há inúmeras pilhas de peixe frito sem utilidade alguma espalhadas por todo o escritório e isso é tudo o que todos realmente fazem.

Acho que esta é uma descrição bastante fiel da dinâmica moral da nossa própria economia.
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Agora, reconheço que esse argumento irá levantar objeções imediatas: “quem é você pra dizer quais trabalhos são de fato ‘necessários’? Afinal, o que é mesmo necessário? Você é professor de antropologia, qual é a “necessidade” disso?” (E, sem dúvida, muitos leitores da imprensa marrom tomariam a existência do meu trabalho como a própria definição de uma despesa social extravagante). E, em certa medida, isso é obviamente verdadeiro. Não pode haver uma forma objetiva de medir o valor social.

Eu não me atreveria a dizer a alguém que está convencido de que contribui de forma significativa para o mundo quando ela, de fato, não contribui. Mas e com relação àquelas pessoas que por si só estão convencidas de que seu trabalho é insignificante? Não faz muito tempo, eu retomei o contato com um amigo da escola que eu não via desde os 12 anos. Fiquei impressionado quando descobri que, nesse interim, ele tinha se tornado primeiro poeta e depois o cantor de uma banda de indie rock. Eu tinha escutado suas músicas na rádio sem ter ideia de que o cantor era alguém que eu efetivamente conhecia. Obviamente, ele era brilhante, inovador e seu trabalho tinha, sem dúvidas, alegrado e melhorado a vida de muita gente ao redor do mundo. Porém, depois de alguns discos sem muito sucesso, ele perdeu o contrato e, atormentado por dívidas e com uma filha recém-nascida, acabou, como ele mesmo disse, “tomando a escolha mais simples de tantos sem-rumo: a faculdade de direito”. Hoje ele é um advogado de empresa trabalhando em uma firma proeminente de Nova Iorque. Ele foi o primeiro a admitir que seu trabalho era completamente insignificante, não contribuía em nada com o mundo e, segundo sua própria avaliação, não deveria realmente existir.

Há uma série de questões que poderiam ser feitas a partir daqui. A primeira seria: o que quer dizer sobre nossa sociedade essa produção de uma demanda extremamente limitada por poetas e músicos talentosos, mas uma aparente procura infinita por especialistas em direito empresarial? (Resposta: se 1% da população controla a maior parte da riqueza disponível, o dito “mercado” reflete o que essa minoria, e ninguém a não serem eles, julga ser útil ou importante). Mas, mais ainda, isso mostra o quanto a maioria das pessoas nesses trabalhos está consciente desse fato. Na verdade, eu não tenho certeza se algum dia conheci um advogado corporativo que não achasse seu emprego uma estupidez. O mesmo vale pra quase todas as novas indústrias mencionadas acima. Há toda uma classe de profissionais assalariados que, caso você os encontre em uma festa e diga que você faz algo interessante (um antropólogo, por exemplo), evitará conversar sobre seu trabalho. Dê a eles algumas bebidas e eles se lançarão em diatribes sobre o quão inútil e estúpido o trabalho deles realmente é.

Há uma profunda violência psicológica aqui. Como alguém pode começar a falar de dignidade no trabalho quando esse alguém intimamente sente que seu trabalho não deveria existir? Como, a partir daí, não surge um sentimento de profunda raiva e ressentimento? No entanto, é no funcionamento peculiar da nossa sociedade que os dirigentes encontraram uma saída, como no caso dos fritadores de peixe, para assegurar que a raiva seja dirigida contra aqueles que de fato fazem algum trabalho significativo. Por exemplo: em nossa sociedade, parece haver uma regra geral de que, quanto mais óbvio é o benefício do trabalho de alguém a outras pessoas, menos se é bem pago por isso. Mais uma vez, uma medida objetiva é difícil de encontrar, mas um jeito fácil de entender isso é se perguntar: o que aconteceria se essa classe inteira de pessoas simplesmente desaparecesse? Diga o que você quiser sobre enfermeiras, garis ou mecânicos, é óbvio que se eles desaparecessem em uma nuvem de fumaça, os resultados seriam imediatos e catastróficos. Um mundo sem professores ou estivadores não demoraria a entrar em apuros e até mesmo um mundo sem escritores de ficção científica ou músicos de ska seria claramente um lugar pior. Não está tão claro o quanto a humanidade iria sofrer se todos investidores de capital privado, lobistas, consultores em relações públicas, seguradores, operadores de telemarketing, oficiais de justiça ou consultores legais igualmente desaparecessem. (Muitos suspeitam que melhoraria significativamente). Ainda assim, para além um conjunto pequeno de abastadas exceções, como os médicos, a regra se mantém com surpreendente firmeza.

Ainda mais perverso é o sentimento generalizado de que as coisas deveriam ser assim. Esse é um dos segredos do sucesso do populismo de direita. É possível ver isso quando, por exemplo, a imprensa marrom estimula o ressentimento contra operários do metrô por paralisarem Londres durante disputas de contrato: o simples fato de que operários do metrô possam parar Londres mostra o quão seu trabalho é realmente necessário, mas isso parece ser o que de fato incomoda a todos. Isso é ainda mais claro nos EUA, onde republicanos tiveram um notável sucesso mobilizando o ressentimento contra professores ou operários da indústria de automóveis em razão de seus salários e benefícios supostamente excessivos (e não, consideravelmente, contra administradores de escolas ou diretores industriais que, de fato, causam os problemas). É como se nos estivessem dizendo “mas vocês tem a sorte de ensinar crianças! Ou de fazer carros! Vocês conseguem ter trabalhos de verdade! E pra coroar isso vocês tem a coragem de ainda lutar por pensões de classe média e seguro de saúde?”

Se alguém tivesse planejado um regime de trabalho perfeitamente adaptado à manutenção do poder do mundo financeiro, é difícil imaginar como poderia ter feito um trabalho melhor. Trabalhadores de verdade, produtivos, são implacavelmente explorados e alvo de precarizações. Os restantes são divididos entre um estrato aterrorizado e universalmente vilipendiado de desempregados e um outro estrato maior de pessoas que basicamente são pagas para não fazer nada, em posições concebidas que se identifiquem com as perspectivas e as sensibilidades da classe dirigente (gerentes, administradores etc.) – e particularmente seus avatares financeiros – mas, ao mesmo tempo, cultivem um ressentimento constante contra qualquer um cujo trabalho possua um valor social claro e inegável. Evidentemente, o sistema nunca foi conscientemente planejado. Ele surgiu a partir de quase um século de tentativa e erro. Mas é a única explicação do porquê, apesar de nossa capacidade tecnológica, não estamos trabalhando 3 ou 4 horas por dia.

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David Graeber é ativista e professor de Antropologia na London School of Economics. Ainda pouco traduzido em língua portuguesa, é autor de livros importantes como “Toward an Anthropological Theory of Value: The False Coin of Our Own Dreams”, “Fragments of an Anarchist Anthropology” e “Debt: the First 5000 Years”.

Rodrigo Charafeddine Bulamah, de Rondonópolis para o mundo, mestre e doutorando em antropologia pela UNICAMP.

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Há outra tradução para o português no Portal Anarquista do Colectivo Libertário de Évora



sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Um herói para Samuel

. . Por Caio Moretto, com 1 commentário





Certa vez, numa calourada do curso de ciências sociais da Unicamp, chamaram o prof. Sérgio Silva para falar na aula magna. O tema era Maio de 68. Já tínhamos ouvido suas aulas sobre indústria cultural, sociedade do espetáculo etc. Mas dessa vez o professor, o ícone, o cara que estava lá quando tudo aconteceu, ia falar sobre Maio de 68! Depois de grande rebuliço (a minha versão preferida é a contada com a dramaticidade do Sumaré, que não usa essas palavras estranhas como “reboliço”, mas que faz a gente se imaginar sentado na primeira fileira), o professor liga o microfone e declara da maneira mais clara que poderia: “maio de 1968 não existiu”.

Eu nunca fui de ter heróis, porque sempre tive essa impressão de que eles nunca existiram, de que são uma grande invenção. Maio de 1968, como é no imaginário dos calouros de ciências sociais, certamente não existiu. Se existiu algo, foi talvez apenas um grupo de pessoas que saíram nas ruas para reivindicar que a a dita democracia se convertesse minimamente em direitos à população.

Maio de 1968, para muitos, foi apenas um ano de trabalho, de formatura, de dramas pessoais mais ou menos descolados da realidade social, o que se chama, muitas vezes, de dramas burgueses. O mesmo pode ser dito da ditadura civil-militar para muitos brasileiros que mal a perceberam. Em certo sentido, 68 na França não foi diferente de 2013 no Brasil, nem do que está acontecendo aqui hoje. 

Me peguei pensando nisso tudo porque não sei que histórias de heróis gostaria de contar para o Samuel. Desde que a Mari engravidou, não participamos mais de nenhuma manifestação. A partir de então, toda vez que tem protesto, fico em casa preocupado com xs amigxs e conhecidxs que estão lá, mostrando a cara. 

Às vezes me pego pensando: “Que saco, por que eles vão? Só para a gente ficar preocupado!” Mas logo me deparo com as histórias de colegas em seus dramas cotidianos: uma colega agredida na rua por sua identidade de gênero, um aluno que não poderá pagar a faculdade, uma vizinha que não levará a filha de novo ao médico ah, já estava tudo bem, não vou pagar mais duas passagens de ida e duas de volta. E volto a pensar no Samuel, nos heróis e em como os nossos dramas individuais são afetados pela realidade social.

Não sei quais serão as escolhas e os desejos do Samuel, que sonhos terá, qual será sua profissão, seu estado de saúde ou sequer como será sua capacidade física de se locomover. Também não sei até quando teremos aulas de filosofia e sociologia no Ensino Médio e, portanto, não sei qual será nossa situação financeira como família no próximo ano. Mas fico feliz que ainda tenha gente lutando para que isso não importe, para que ele possa ter todos seus direitos como cidadão e possa se realizar plenamente como ser humano independente de quanto dinheiro a gente tenha.

Já começo a pensar em como contarei ao meu filho a história dessas pessoas que lutam para que a dita democracia se converta minimamente em direitos à população, a história desses momentos épicos que não existem, mas que mudam as nossas vidas. Carxs amigxs, vocês são a inspiração da minha vida, são o mais próximo de heróis que eu jamais tive. Contarei a história de vocês com entusiasmo e com a esperança de que algum dia alguém diga de nosso tempo, idealizando nossas conquistas, que ele também não existiu.

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