Dona Maria, 5 anos de Alzheimer e 93 de vida, despertou em seu quarto frente à imagem de nossa senhora do rosário:
- Ai, minha santinha, me ajuda! Me ajuda a encontrar o Joaquim, minha santinha! Minha santinha, se eu ficar junto do Joaquim agora, eu mando rezar uma missa para a falecida dele, minha santinha!
Mariza, filha de dona Maria, correu rapidamente ao quarto pedindo calma a sua mãe, lhe dizendo que estava tudo bem. Assim passou aquele dia, com dona Maria repetindo o que dizia a nossa senhora do rosário e suspirando sobre Joaquim.
No dia seguinte, no outro, depois no outro e desde então, as manhãs tem sido como eram sempre, silenciosas. Dona Maria acorda, chama pela filha Mariza, que lhe dá os remédios da manhã, toma um banho amparada pela mesma filha e passa a maior parte do tempo diante da televisão, o dia todo em completo silêncio. Um ou outro remédio, um copo d'água, o almoço, um lanche, um pouco de café, uma sopa e os remédios da noite, que a fazem dormir, é essa a sua rotina.
O silêncio de dona Maria é cortado às vezes pelo genro. Ele adora as piadinhas de pavê e quer saber, por exemplo, se dona Maria concorda ou sem corda com o aumento da passagem de ônibus. É. Diante de tamanha espirituosidade, dona Maria algumas vezes não resiste, “ah, bonitão! nhá!”; “é, tá ruim, né, é, mas tá bom”; “tá bom, tá bom”.
Dona Maria já não se equilibra sozinha, o pouco que consegue caminhar, o faz somente com auxílio e, apesar da tevê, ela quase não ouve, quase não enxerga.
No dia seguinte, no outro, depois no outro e desde então, as manhãs tem sido como eram sempre, silenciosas. Dona Maria acorda, chama pela filha Mariza, que lhe dá os remédios da manhã, toma um banho amparada pela mesma filha e passa a maior parte do tempo diante da televisão, o dia todo em completo silêncio. Um ou outro remédio, um copo d'água, o almoço, um lanche, um pouco de café, uma sopa e os remédios da noite, que a fazem dormir, é essa a sua rotina.
O silêncio de dona Maria é cortado às vezes pelo genro. Ele adora as piadinhas de pavê e quer saber, por exemplo, se dona Maria concorda ou sem corda com o aumento da passagem de ônibus. É. Diante de tamanha espirituosidade, dona Maria algumas vezes não resiste, “ah, bonitão! nhá!”; “é, tá ruim, né, é, mas tá bom”; “tá bom, tá bom”.
Dona Maria já não se equilibra sozinha, o pouco que consegue caminhar, o faz somente com auxílio e, apesar da tevê, ela quase não ouve, quase não enxerga.
Setenta anos atrás Maria e Joaquim namoraram. O velho pai de Maria, no entanto, não quis o moço Joaquim, negro, muito simples, que trabalhava na lavoura da região. Desfeito o namoro, apareceu um rapaz de nome Nazareno, com quem Maria se casou depois. Com muita emoção, durante mais de quarenta anos, dona Maria viveu com o homem que viajou o interior a mando do comitê central, fundou um sindicato e se aposentou em outro.
Foi a minha sorte, e de alguns outros: dona Maria e seu Nêno tiveram quatro filhos, e o primogênito também é meu pai. De onde eu enxergo o mundo, não me parece possível que, entre os setenta anos passados desde Joaquim, dona Maria não tenha sido, um pouquinho que seja, feliz.
Foi a minha sorte, e de alguns outros: dona Maria e seu Nêno tiveram quatro filhos, e o primogênito também é meu pai. De onde eu enxergo o mundo, não me parece possível que, entre os setenta anos passados desde Joaquim, dona Maria não tenha sido, um pouquinho que seja, feliz.
Durante todos esses anos, a casa da família de dona Maria, na capital, permaneceu mesmo depois de sua saída, nos anos 1940. Duas das irmãs mais novas de dona Maria viveram ali até pouco tempo atrás. Joaquim ficou naquela mesma região durante essas décadas, mas ele também se casou, afinal, dona Maria se lembra da falecida. Já no final dos anos 1990, dona Maria, que ainda hoje vive no interior, foi avisada pelas irmãs que Joaquim enviuvara. É tudo que se sabe, pois nem da reação de dona Maria ao saber da morte da esposa de Joaquim se tem notícia.
Dez, quinze anos se passaram e, finalmente, quem recebeu a confissão foi a imagem de nossa senhora do rosário. Tia Mariza, com quem dona Maria vive hoje, ficou surpresa, contou que levou o dia tentando fazer dona Maria deixar o ar ofegante e a repetição sobre Joaquim.
Quem era, quem talvez ainda seja, se estiver vivo, Joaquim? Essa pergunta me consumiu alguns dias. Ninguém soube ir mais do que dona Maria contara anos atrás: um ex-namorado antes do vô Nêno, um rapaz negro que o pai dela não queria. Além disso, o pai de Joaquim também parecia não tratar bem as noras, o que teria reforçado o contragosto do velho pai de dona Maria. Enfim, o namoro acabou, dona Maria se casou com outro, alguns anos depois viajou, deixou a família para trás, porém, cerca de setenta anos após isso, lá estava ela diante de sua santinha pedindo pelo Joaquim.
Setenta anos depois, dona Maria, quem seria Joaquim?
Setenta anos depois, dona Maria, quem seria Joaquim?
Dona Maria, enquanto isso, continua sua rotina, em seu silêncio.
2 palpites:
Lindo, Hugão. Me fez relembrar a sensação que eu vivi quando escrevi aqueles posts "O outro, esse desconhecido" sobre minha avó. É curioso como essa confissão à Nossa Senhora do Rosário ao mesmo tempo que revela uma nova face de Dona Maria e parece nos aproximar dela, a torna mais interessante e desconhecida. Parece um gostoso paradoxo perceber que quanto mais buscamos conhecer o outro, mais complexo e misterioso ele tende a se tornar. É um texto que poderia ser muito triste e que ficou muito bonito, Hugão.
Bonito. Para além das páginas "revolucionárias" de Nazareno...profundo quanto da intensidade de se lembrar quando não mais há possibilidades!
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