Dos dois lados, muitos se empoleiram momento a momento, inúmeras vezes durante o dia enquanto esperam, esperam o instante em que, depois de poucos segundos, não menos vividos com expectativa, ansiosamente, poderão enfim seguir, ir em frente. Parece uma verdadeira guerra, as trincheiras estão a postos, marcadas pelos primeiros corpos em linha, perfilados. Atrás dos primeiros, homens e mulheres, linhas e linhas de outros corpos estão aglutinados caoticamente, quase já amontoados, eles também aguardam. São duas multidões, artilharias opostas, frente a frente, e que transpiram ávidas pelo sinal que lhes permitirá partir de encontro uma a outra. Porém, o vermelho que, de um lado, poderia anunciar o sangue de uma guerra de fato, não, somente pede para aqueles que se encontram protegidos dentro de suas armaduras parem com seus veículos potentemente motorizados. O vermelho também traz o verde que os corpos perfilados tanto desejavam, e esta mesma cor ainda os libera para seguir, simplesmente.
Se faltam armas de fogo, sobram pisões, encontrões e empurrões, quando não, beliscões e um carinho discreto entre os mais íntimos, todos que vão de uma calçada a outra. Privilegiados, os motoristas assistem àquele verdadeiro desfile frenético, quase relâmpago, que os passantes realizam nos poucos segundos de intervalo para um novo arranque dos automóveis.
Enquanto isso, a luzinha verde, que possibilita aquele intenso movimento de pedestres, vem de um homenzinho de dentro de uma caixinha. É o semáforo, ou farol, como quiser. Sem sair do lugar, o homenzinho caminha dentro da caixinha quando se pode atravessar a rua. Acima dele, correm os segundos para que também os carros possam ter permissão de seguir caminho novamente. O clímax de tudo isso surge quando faltam somente três segundos para se acabar o tempo de travessia dos andantes, então a velocidade do homenzinho verde aumenta bastante e ele aperta o passo dentro da caixinha do semáforo. Ele corre.
No desespero, será que ao invés de fugir dos carros que vão começar a passar rapidamente, vruumm, vruumm, vruumm, o homenzinho não pode acabar atropelando a si próprio?
É o que se pergunta de dentro de outra caixa um pouco maior, um pouco mais acima de todo o suceder, o Coleirinha. Ao lado dele, um velho senhor têm os olhos também naquela direção, do cruzamento, na pressa de todos em aproveitar os segundos que restam antes de um novo interrompimento da passagem. Porém, mesmo que repousando os olhos ali, o pensamento do velho parece encerrado em qualquer outro canto, talvez dentro de si, ou da sacada em que está. Possivelmente, ainda, tenta responder a si próprio o que o teria trazido até ali, sem ao menos conseguir ouvir os tantos Trica-Ferros, Pintassilgos e Curiós das gaiolas ao redor.
Cansado, sem ouvir seu próprio piar, o Pintassilgo tenta inventar uma biografia para o senhorzinho, pensando em quando o velho ainda tinha forças para estar ali embaixo, entre aqueles tantos de um lado para o outro. Sem conseguir imaginar muito o enredo, ou a trama, o desfecho da história dele já estava pronto, de uma ironia tristemente realista. O velhinho passou a vida toda admirando o canto dos pássaros e hoje é ele quem está preso, tal como os pássaros, atrás das grades da sacada de seu apartamento, em silêncio, com os olhos que não mais reparam, apenas se distraem no fluxo a que pode assistir.
Mas o sinal fecha para os pedestres, novamente, e tudo se reinicia. O som dos carros é maior que o de pessoas, e outro movimento começa na sinfonia nada harmônica da esquina.
2 palpites:
Muito bom meu querido...
Sou fascinado por crônicas urbanas também e me identifiquei com muito com os mil momentos de alguns segundos em uma esquina..
A cidade a contradição da modernidade em si, como bem disse Caetano em "Sampa".
Mas...Por que sempre o pessimismo vence quando escrevemos sobre a urbe?
Nem sempre, Thiago
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