VÍDEO: MURILO CAMPANHA CONTA ITATINGA

O psicanalista Murilo Campanha fala sobre Itatinga, um dos maiores bairros de prostituição da América Latina, onde ele tem seu consultório.

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Uma crônica de Hugo Ciavatta.

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segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Os jornais de meu pai

. . Por Unknown, com 0 comentários




Desde que o mundo é o meu mundo, meu pai lê jornais velhos. Do dia anterior, da semana passada, de fevereiro, não importa, ele já foi até mesmo flagrado lendo jornal velho de dois anos. Não é por distração, como quem abre uma caixinha de bombom abandonada no canto da sala imaginando encontrar o paraíso e descobre itens de corte e costura, não, é uma resolução de vida inexplicada, injustificada. Também não é por interesse científico, como um pesquisador, um historiador do cotidiano. Às vezes, penso que esquecido que é do dia a dia, ele lê jornais velhos pra memorizar o que acontece no mundo. Noutras vezes, acho apenas que há quem penteie os cabelos pra direita, há quem prefira a esquerda para as madeixas, uns, pra trás: meu pai lê jornais velhos, só isso.


Com os olhos ainda ligeiramente roxos depois de atropelado, veinho meu pai tem se dedicado efusivamente aos jornais velhos nas últimas semanas. Entre um caderno de notícias Mundo da semana passada, outro sobre Economia, de ontem, ele assiste a Crimes que Desafiam a Justiça, ou coisa que o valha, na tevê a cabo. Deixa a tevê sempre com dois ou três tipos de impressos diferentes, de dias sortidos, e leva-os numa sacola, sentando-se numa cadeira, na calçada, pra tomar sol. Na tevê, não o peguei mais vendo Datena, porque se o faço, ele sabe que dou bronca. Sou bravinho, além de contra o Datena e o Marcelo Resende. Dos impressos, Reinaldo de Azevedo é um que ele sequer pode mencionar, suo frio só de escrever o nome dessa criatura.



Tenho insistido faz anos pra que ele volte a estudar. Ele nega, diz que não tem mais cabeça, que não adianta, não gosta de ler os livros que eu leio, essas ficções, aponta pra estante. Tem um ar de Fahrenheit 451 a fala, eu me arrepio, mas fico quieto. Para não deixá-lo sossegado – afinal, devo fazer jus ao piolhento –, contragolpeei com precisão à última negativa dele: dei minha dissertação exigindo comentários. Véinho meu pai fez cara de me deixa em paz, suspirou mas pegou o texto. Quem não tem sossego agora sou eu, tomar café da manhã e almoçar virou exame de qualificação, banca de defesa. Pergunta daqui, pergunta de lá, ele tá lendo mesmo.



Tá rápido no proceder até. Senhora minha mãe, inclusive, andou revendo a teoria sobre os jornais velhos de véinho meu pai. Para ela, ler jornais velhos é como meu pai acontece, em futuro lento, num presente estendido, ou num passado demorado. Senhora minha mãe ainda não encontrou um conceito que possa resumir tais características de véinho meu pai. Sugeri a noção de eterno retorno, de Nietzsche, ela desconstruiu, disse que não tem nada de eterno, nada de retorno. As coisas acontecem, meu pai, serelepe, passa por elas como se nada tivesse acontecido e, ploft, uma semana depois, a coisa já acabada, ele se dá conta do acontecido como presente, e só então o vive decididamente. Vive quase que duas vezes, ou, melhor dizendo, numa única e demorada vez.



Explico, exemplifico. Um dia ele chegou da oficina empurrando a bicicleta no começo da noite. Ué, furou o pneu, bem, perguntou senhora minha mãe. Não, me senti mal subindo a avenida, parei um pouco, daí resolvi vir caminhando, respondeu o véinho. Mas tá tudo bem, o que é que foi. Ah, não foi nada. Não foi nada naquele dia, porque seis dias depois lá estava ele na mesa de cirurgia, estava infartado. Foi assim, também, com o atropelamento, uma semana depois descobriu que estava com a perna quebrada. A vantagem dessa teoria, senhora minha mãe afirma, é dar perdido na morte, ganhar tempo.



Outro exemplo, mais prosaico, foi hoje pela manhã. Mas isso só na próxima semana, seguramente, é que véinho meu pai estará contando por aí. Enquanto tomava sol na calçada, de ceroulas, lendo jornais velhos, com a perna fraturada apoiada, um popular com a camisa da seleção brasileira de futebol cruzou a rua de bicicleta e lhe gritou:



- Vai pra Cuba, velho barbudo!



Tão longe do marxismo, do leninismo, do trotskismo, de Fidel Castro, ou da Guerra Fria, tão perto da seção de quadrinhos e astrologia, véinho meu pai virou-se pra dentro de casa dizendo:



- Ô bem, cê ouviu, cê viu isso, bem?! Não entendi.



Senhora minha mãe vinha no corredor, e antes que a distância afastasse a compreensão do ciclista, também gritou, em resposta:



- Vai se fuder, filha da puta!



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