terça-feira, 19 de novembro de 2013

Aquilo

. . Por Fernando Mekaru, com 4 comentários

Acho que estou com uma doença.

Ela se manifesta naquela pequena eternidade dos minutos em que é necessário ficar sozinho em meio à multidão, esperando por algo prosaico, mas relativamente importante, acontecer - filas de banco/supermercado/etc., o tempo de trajeto do metrô, o pedido chegar à mesa do restaurante, a espera no ponto de ônibus... São nesses momentos de calmaria/tédio cotidiano que aquilo aparece, colocado no mundo por algum objeto ou reflexão meio vazios de significado, mas que são a proverbial gota d'água num copo prestes a transbordar, ou que fecham o circuito necessário para a igualmente proverbial oficina do diabo começar a funcionar.

É difícil explicar o que vem a ser aquilo; o importante é que aquilo existe, e normalmente transforma uma platitude qualquer em um longo inferno de reflexões acerca da vida, cuja existência é injustificada no momento em que ele surge. Segue um exemplo recém colhido de uma ida ao supermercado para comprar queijo, escova de dentes, meio quilo de patinho moído, duas tangerinas e saquinhos para chá¹, ao chegar na fila do caixa:

"Pô, que louco, né. Agora tem mais um balcão só pra queijo aqui; se for contar, deve ter coisa na casa de quarenta ou mais queijos diferentes nesse balcão. Apesar disso, continuo escolhendo o mesmo queijo de sempre. Por que será que faço isso? Não é porque é o mais gostoso, pois não conheço o suficiente de queijo pra afirmar isso; nem é por causa do preço, pois tem alguns mais baratos que ele... Não é porque ele me contenta mais, senão nem questionaria o fato de existir tanto queijo no mundo e eu insistir no mesmo de sempre; por que diabos essa preferência ao certo ao invés de arriscar naquilo que pode ser duvidoso? Não sei se é legal isso... E se eu fizer isso com outras coisas da minha vida? Deuses, e se eu só tiver essa vida porque, lá no fundo, fui ensinado a não arriscar com o novo e não aprendi a enxergar e experimentar novas e melhores possibilidades para tudo? Por que escolho aquilo que escolho, e não escolho aquilo que não escolho? Aliás, será que realmente escolho algo nessa vida, ou todas as opções que aparecem a mim já estão com a resposta predeterminada, e é por isso que não tenho vontade de experimentar outros queijos?"

Parei com essa diatribe mental quando me dei conta que tinha saído de casa para comprar o que faltava para o almoço e períodos arredores, e estava voltando para ela com questionamentos sobre a natureza do livre arbítrio vindos da gôndola de queijo dum supermercado. Isso não podia ser coisa normal, que todos da fila estavam fazendo simultaneamente a mim.

[Mentira, parei porque a menina do caixa perguntou se eu queria CPF na nota e se eu era Cliente Mais.]

Aquilo me acontece já faz tempo, e às vezes tenho a impressão que posso me ferrar grandão se der muito ouvido a ele. Como, por exemplo, quando eu estava esperando o ônibus pra voltar da faculdade à noite, após ter perdido o ônibus da minha linha por uma questão de segundos:

"Puxa vida, agora vou ter que esperar mais meia hora pra voltar pra casa... Pior que vão passar umas quatro linhas diferentes, e nenhuma vai pra onde preciso. Aliás, nem sei se preciso delas ou não... Eu devia ver para onde elas vão algum dia antes de falar isso. Ou então subir, na louca, e ver até onde chego com elas. Pode ser perto de casa, pode não ser. De repente, é legal para conhecer um pouco mais a cidade e os arredores... Seria bom pra dar uma chacoalhada no dia-a-dia. Sempre reclamo que as coisas não mudam muito na minha vida, mas às vezes só um ato pequeno de imprudência e um pouco de ousadia podem dar uma estremecida em tudo que temos nela. É, é isso. Eu preciso fazer mais dessas pequenas coisas que, a princípio, não parecem mudar nada, mas mudam toda sua rotina de um jeito ou de outro. É tão fácil, não é mesmo?! Às vezes a mudança está a um sinal de parar prum ônibus que você nunca pegou, e ainda assim temos medo de fazer esses pequenos gestos. Por que será? O nosso descontento é com a falta de mudança na vida, ou com o fato de termos nos contentado fácil demais com aquilo que ela costuma nos dar e não sentir a necessidade de mudar? Acho que só tem um jeito de descobrir..."

Para o alívio da minha família e amigos, mesmo motivado por um curioso existencialismo de ponto de ônibus, decidi não aventurar-me na calada da noite com o próximo ônibus que viesse: li o destino final do ônibus que estava a passar, e algo na minha mente prudentemente apontou que não era o momento apropriado para ir até Americana às dez e meia da noite para descobrir o que ela tinha a mudar na minha vida.

No começo, aquilo me incomodava muito: tinha medo de estar ficando levemente louco, ou de, pior!, estar nessas obsessões pseudointelectuais causadas por estudos de mais e distrações de menos. Porém, comecei a achar aquilo curioso e, depois, interessante: acabei percebendo que, durante o dia-a-dia, praticamente não se oferecem momentos para refletirmos de maneira mais profunda e calma sobre aquilo que estamos fazendo e o que nos cerca, e essa ausência de reflexão pode se tornar uma grande fonte de angústias e dúvidas caso não tenhamos alguns momentos para destilá-las e transformá-las em alguns apontamentos e observações sobre o que estamos fazendo com as nossas vidas.

Ainda que aquilo me passasse um terrível mal-estar de estar pensando demais em momentos inoportunos e me fizesse voltar cheio de angústias de tarefas que, a princípio, não deveriam causar nenhum tipo de desarranjo psíquico, acabei percebendo que era um alívio ter aqueles minutos de reflexão sem rumo: eram eles que me faziam perceber que todo o resto do tempo eu estava ocupando minha cabeça com outras coisas, com outras pessoas e com outros processos, e que toda essa ocupação estava me deixando cego para algumas perguntas importantes que eu devia fazer de vez em quando para mim mesmo, só para me ver um pouco mais e saber como estou, para além das responsabilidades, deveres e afins que se esperam de mim.

Em um mundo que parece ter uma obsessão patológica em não te deixar sozinho ou sem uma avalanche de estímulos em nenhum momento, esse existencialismo de ponto de ônibus é o minuto de silêncio necessário para se ter um dos momentos mais temerosos e raros desses estranhos tempos modernos: aquele em que você fica sozinho, frente a frente aos seus pensamentos, e eles refletem tudo aquilo que você não tem tempo de ver em si próprio durante o resto do dia.
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¹ - Quando fui escrever o texto e fui relembrando os acontecidos, peguei a lista de compras para reproduzir aqui e dei risada ao ver os itens: é o tipo de lista esquisita que só gente que não se organiza muito para ir ao mercado faz. Mas aí fiquei feliz, porque ela me levou a uma associação bizarra: uma lista de compras é meio que como a vida se desenrola - às vezes, as necessidades que se colocam em ambas são imprevistas e muito estranhas se colocadas em conjunto, mas independente da bizarrice ou desconexão que apresentam, precisam ser sanadas para podermos ir em frente e se preocupar com outras coisas.

...

Oh não, aquilo aconteceu enquanto escrevia esse texto.

4 palpites:

mano( desculpa a intimidde hiehauheau) não te conheço pessoalmente mas vou te chamar de mano certo então mano, além dessa mudança que ocorreu durante o seu pensar sobre se o aquilo seria insalubre ou não à tua mente como conhecedor do assunto recomendo que tu troque tb o fornecedor dessa erva aí. na moral, sem maldade, esse é o tipo de badtripthought que só erva vencida pode causar. da próxima vez q tu for nessa mercearia aí dá uma perguntada se eles tem um bang que apesar dos apesares é mais certo de o prazo de validade estar nos conforme. e se não tiver c vai procon tá ligado haihauhaiahae. toda hora é hora mas todo prazo tem que ser respeitado tá ligado. Se cuida irmão, pira nesses pensamento n, pira numas piranha q o retorno é mais certo tá ligaaaaado haihaiuhaiuhauha
se cuida sague bom!

mL

sr anônimo: conheço o autor do texto e posso te garantir: o problema aqui não é consumo de erva errada, pois nem consumo dessa parada há.

sr mekaru: me pego pensando essas coisas nesses momentos que somos obrigados a parar, mas tb em momentos que me coloco parada, como para fumar cigarro. sugestão metida meio pedante: coloquei no celular esse texto do foucault para esses momentos de espera. (tá, preciso de bastante arroz feijão pra compreender a fundo o que o cara diz, mas pelo que entendo é lindo, libertador e bem-humorado)
http://www.slideshare.net/fatimalaranjeira/michel-foucault-por-uma-vida-nao-facista

aí vc mata dois coelhos com uma caixa d'água só: impede que o diabo venha e ainda tem material pra pensar liberdade de escolhas.

(não que a gente tenha que estar sempre ocupado, não defendo isso não!)

Oi, desculpa pelo primeiro comentário, achei que o resultado final seria meio cômico, mas vi que ficou vergonhoso. Uma pena que como anônimo eu não consiga apagá-lo. E uma pena não ter como provar que este anônmo é o mesmo anônimo que escreveu aquilo. Pelo menos ser convincente através de um recurso estilístico próprio (o de não saber escrever, neste caso) eu consegui haha. Na verdade gostei do texto Mekaru! Desculpe -me mais uma vez! Quero continuar lendo seus textos! Um grande abraço.

E esse pro Mekaru.
Anônima Lais



Ou Isto ou Aquilo
Cecília Meireles

Ou se tem chuva e não se tem sol
ou se tem sol e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.

É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo em dois lugares!

Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.

Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo...
e vivo escolhendo o dia inteiro!

Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranqüilo.

Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.

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