Farei aqui uma coisa pra lá de paradoxal: teorizar a cultura, talvez a categoria mais prática da humanidade.
O Conto
Certo dia, em um país da América Latina - que por ser grande era gigante e por ser pouco era adormecido - resolveu-se fazer uma gande competição, o tradicional torneio pan-americano. Finalmente, uma modalidade nada popular no país, a ginástica olímpica, foi centro dos holofotes. Isso porque existia nesse país uma tal de Daiane do Santos que encantava o mundo com suas peripécias no tablado, era irresistível. Eis que, durante a final, com o superfaturado e superlotado ginásio, as vaias somaram-se quando uma das estadunidenses, rival da brasileira, foi se apresentar. Os microfones tentaram, com pouco sucesso, pedir para que os anfitriões não cometessem tal vandalismo e os jornais, no dia seguinte, noticiaram a falta de educação da fervorosa plateia. Por fim foi a vez de personalidades e políticos, de moralidades peculiares, repudiarem tal atitude. O convento estava armado quando a organização resolveu descupar-se publicamente pelo comportamento incível da população. Cada tiete que estava presente naquele dia sentiu-se um pouco envergonhado consigo mesmo e pela heresia que cometeu contra a imagem da sólida, íntegra e púdica nação. Em entrevista à maior emissora do país, Geraldino, um dos presentes, disse que está profundamente arrependido e que, dali em diante, apenas futebol...
---
Logo...
Os últimos dias têm sido de intensa reflexão e trabalho, o que tem justificado minha ausência nesta Mistura Indigesta. Precisava de algum jeito compartilhar para os assíduos leitores as discussões riquíssimas das quais tenho participado durante o programa de integração do Sesc-SP - que incluiu conversas saborosas com Antonio Cícero, Antunes Filho, José Márcio Barros, entre outros.
Seria impossível fazê-lo por completo, mas de algum modo tudo pode ser resumido no conto acima, baseado em fatos reais.
O grande desafio da cultura brasileira tem sido em "dessacralizar" a arte, retirá-la do altar em que se encontra, levando ao maior número de pessoas, porém sem peder sua essência, sem banalizá-la. Por vezes, a produção cultural nos seus diversos campos tem rumado o oposto, a elitização, a necessidade de um trabalho dito "conceitual", mas que por vezes acaba por se tornar, por que não, alheio ao coidiano, à vida e à participação do público, principalmente aquele que tem menos contato com as linguagens. Pode chamar isso de democratização, dessacralização, direitos culturais. Mas o fato é que, assim como a ginástica artística, os artistas precisam do público e o público da cultura.
O grande erro, no sentido oposto, é a imposição de disciplinas e "etiquetas degustativas" ao público que, por vezes, não está familiarizado com determinada linguagem artística. Assim, tanto os torcedores do conto não saíram incentivados a assistir novamente a apresentação como - bem dito por Rubem Alves em uma de suas palestras de meses atrás - "a literatura começa a morrer quando obrigamos um aluno a ler este ou aquele livro". É também o que costumamos fazer ao exigirmos determinados padrões de comportamento aos espectadores, ou ao assumir julgamentos morais sobre o público. Ou mesmo quando preocupamo-nos mais com a forma do que com o conteúdo. Educar (depurar) o olhar do espectador, sem disciplinar, sem impor, sem reprimir, é fundamental.
Além disso, a cultura não deve parar. Deve estar em movimento. Deve dialogar com os grupos, com a comunidade. Deve buscar o novo, o espontâneo. Deve ir e vir. Deve ter o "ser novo" como único princípio perene. Deve ser porvocativa e contestatória. Deve ser autônoma. E, acima de tudo, deve não estagnar-se em meio a tantos deveres.
Equilibrar a equação entre Inovação, Educação e Dessacralização (termo que prefiro e roubo aqui de Sérgio Vaz). Está tudo muito superficial aí em cima, mas é nisso, entre obras e administrativisses, que tem se resumido o dispêndio de neurônios da minha mísera cabeça oriental durante esses dias.
Tá bom, é gostoso...
Mas precisava desabafar!
(e dar notícias...)
O Conto
Certo dia, em um país da América Latina - que por ser grande era gigante e por ser pouco era adormecido - resolveu-se fazer uma gande competição, o tradicional torneio pan-americano. Finalmente, uma modalidade nada popular no país, a ginástica olímpica, foi centro dos holofotes. Isso porque existia nesse país uma tal de Daiane do Santos que encantava o mundo com suas peripécias no tablado, era irresistível. Eis que, durante a final, com o superfaturado e superlotado ginásio, as vaias somaram-se quando uma das estadunidenses, rival da brasileira, foi se apresentar. Os microfones tentaram, com pouco sucesso, pedir para que os anfitriões não cometessem tal vandalismo e os jornais, no dia seguinte, noticiaram a falta de educação da fervorosa plateia. Por fim foi a vez de personalidades e políticos, de moralidades peculiares, repudiarem tal atitude. O convento estava armado quando a organização resolveu descupar-se publicamente pelo comportamento incível da população. Cada tiete que estava presente naquele dia sentiu-se um pouco envergonhado consigo mesmo e pela heresia que cometeu contra a imagem da sólida, íntegra e púdica nação. Em entrevista à maior emissora do país, Geraldino, um dos presentes, disse que está profundamente arrependido e que, dali em diante, apenas futebol...
---
Logo...
Os últimos dias têm sido de intensa reflexão e trabalho, o que tem justificado minha ausência nesta Mistura Indigesta. Precisava de algum jeito compartilhar para os assíduos leitores as discussões riquíssimas das quais tenho participado durante o programa de integração do Sesc-SP - que incluiu conversas saborosas com Antonio Cícero, Antunes Filho, José Márcio Barros, entre outros.
Seria impossível fazê-lo por completo, mas de algum modo tudo pode ser resumido no conto acima, baseado em fatos reais.
O grande desafio da cultura brasileira tem sido em "dessacralizar" a arte, retirá-la do altar em que se encontra, levando ao maior número de pessoas, porém sem peder sua essência, sem banalizá-la. Por vezes, a produção cultural nos seus diversos campos tem rumado o oposto, a elitização, a necessidade de um trabalho dito "conceitual", mas que por vezes acaba por se tornar, por que não, alheio ao coidiano, à vida e à participação do público, principalmente aquele que tem menos contato com as linguagens. Pode chamar isso de democratização, dessacralização, direitos culturais. Mas o fato é que, assim como a ginástica artística, os artistas precisam do público e o público da cultura.
O grande erro, no sentido oposto, é a imposição de disciplinas e "etiquetas degustativas" ao público que, por vezes, não está familiarizado com determinada linguagem artística. Assim, tanto os torcedores do conto não saíram incentivados a assistir novamente a apresentação como - bem dito por Rubem Alves em uma de suas palestras de meses atrás - "a literatura começa a morrer quando obrigamos um aluno a ler este ou aquele livro". É também o que costumamos fazer ao exigirmos determinados padrões de comportamento aos espectadores, ou ao assumir julgamentos morais sobre o público. Ou mesmo quando preocupamo-nos mais com a forma do que com o conteúdo. Educar (depurar) o olhar do espectador, sem disciplinar, sem impor, sem reprimir, é fundamental.
Além disso, a cultura não deve parar. Deve estar em movimento. Deve dialogar com os grupos, com a comunidade. Deve buscar o novo, o espontâneo. Deve ir e vir. Deve ter o "ser novo" como único princípio perene. Deve ser porvocativa e contestatória. Deve ser autônoma. E, acima de tudo, deve não estagnar-se em meio a tantos deveres.
Equilibrar a equação entre Inovação, Educação e Dessacralização (termo que prefiro e roubo aqui de Sérgio Vaz). Está tudo muito superficial aí em cima, mas é nisso, entre obras e administrativisses, que tem se resumido o dispêndio de neurônios da minha mísera cabeça oriental durante esses dias.
Tá bom, é gostoso...
Mas precisava desabafar!
(e dar notícias...)
5 palpites:
Chininha!
Está escalado pra falar da "Opera da Amazônia", ou algo assim. Chegou informações na "redação" de que você veria o espetáculo a cargo do SESC. E tem a ver com este texto, claro.
A história da ginástica se repete muitas e muitas vezes no tênis, principalmente em jogos de grandes estrelas e em quadras de torcidas apaixonadas por um daqueles em quadra. A discussão traz novamente a questão do elitismo, da educação, e até mesmo da experiência sensitiva, da leitura de uma arte (no caso, o esporte). A conversa poderia até mesmo ser levada ao fato de as torcidas serem separadas, por exemplo, no futebol brasileiro. Por que não estarem uns ao lado dos outros, torcendo, vibrando, se divertindo, como em alguns países, sem aquelas divisões monstruosas aqui presentes, cordões de polícia etc.
Discussão semelhante também poderia ser feita a partir daquela história de visita a museus (né, Fábio?), quando se diz que pra experienciar uma visita é preciso ter conhecimento da história da arte, por exemplo, enquanto um leigo não vivenciaria a beleza, a experiência sensorial ali propiciada.
Enfim, algumas dúvidas minhas...
Abraços
Chinês,
uma pequena observação quanto à hierarquia que você criou entre forma (inferior) e conteúdo (superior). Me parece ligeiramente contraditório com o que você vem defendendo, porque se a preocupação com a forma acaba elitizando, é porque quem pratica essa arte é elitista. a quem pretende uma arte dessacralizada, a forma deveria ser, ao meu ver, uma verdadeira obsessão. uma obsessão com formas que comunicam mais e melhor...
o cuidado com a forma me parece uma obsessão necessária para a comunicação... e não deve estar subordinada ao conteúdo...
conteúdo e forma são igualmente importantes...
ou não?
Smac...
Ps: hugão, juntar torcidas de futebol adversárias no mesmo espaço é absurdo. infelizmente.
Tem toda a razão Peixe. E acho que essa é a questão. Não uma hierarquia entre ambos, mas a necessidade da própria arte se reinventar - em forma e conteúdo - para que ela mesma não tenha a pretensão de se colocar no tal altar. Coisa que não vem ocorrendo. Por vezes a arte contemporânea tem buscado que cada vez menos pessoas consigam apreendê-la, o que é pura masturbação intelectual. Claro que há exceções(como por exemplo um espetáculo de dança contemporânea na construção do IFCH), mas a regra, até onde ando vendo nesse bololô de "abstratisse", tem sido essa. É claro que aqueles que têm menos contato com linguagens artísticas tem que trabalhar o olhar para não virar arte pobre para pobre. Mesmo assim, ainda acho que a produção muitas vezes tem se pautado na necessidade de sacrilizar-se. Também concordo sobre as torcidas rs. Abraços..
Ei, também não acho que rolaria torcidas de futebol juntas por aqui, infelizmente. Só citei o exemplo pela relação que se estabelece entre esporte e público, enfim...
Mas acho que a discussão sobre forma e conteúdo com respeito à comunicação dos significados, quando pensadas pela escolha de uma delas, primando por forma ou conteúdo, me parece problemática... Se pode parecer "devaneio" intelectualista um primado estético... parece que, no limite, uma ênfase, por exemplo, na comunicação de um conteúdo de forma mais simples pode invalidar a própria noção de Educação. Quero dizer, com isso, que empobrece a noção de arte, forma, experiência estética, sublime, o nome que se queira dar (com o perdão pela utilização de tudo isso como sinônimo. Claro, é um absurdo)
Acho que o que orienta essa discussão nossa, mais sociológica, é a velha desigualdade social, a dificuldade do acesso à informação, etc. Daí a ênfase numa perspectiva por uma arte que comunique sentidos de forma mais simples. Usamos forma e conteúdo para análise, mas dizemos que estão juntas e são igualmente importantes. Falamos de "arte" e "forma" quando deveríamos pensar em "circuitos artíticos de produção de bens culturais". Mercado e Consumo, hoje, infelizmente, norteiam nossas visões de Arte e Cultura. E a hierarquia entre elas atravessa, por sua vez, hierarquias sociais...
Ah, o que estou tentando dizer é que se eu, por exemplo, chamo algo de "artisticamente pobre", é, em suma, porque valorizo o circuito social que compartilho, no limite.
Beijooo
Hugão, discordo da sua colocação. Quando eu penso em formas mais comunicativas eu não estou pensando nem em mais pobre nem em mais rico... Essa conversa sociológica que você propôs simplesmente não me passou pela cabeça... Por mais que o que você tenha colocado me pareça adequado, eu penso que as formas mais simples nem sempre são mais pobres (em qualquer sentido que você possa pensar pra esse termo).
O que eu penso é que quando se pretende fazer arte, escrever um texto, dar uma aula, ou sei lá que mais que se entenda por "comunicação", a preocupação com a inteligibilidade é necessária. Por que na minha opinião o objetivo da expressão de qualquer ideia em qualquer meio deve ter como razão que a outra pessoa receba a mensagem e consiga lidar com ela de algum modo... Na minha opinião, muito do que se tem feito em arte nesse sentido muitíssimo amplo - e eu acho que isso não é necessário, mas é um sinal dos tempos - deveria ser tratado no divã. Acho que as pessoas estão fazendo pra expulsar seus fantasmas de dentro. E somente muito poucas pessoas conseguem fazer disso uma coisa que desperte o interesse em outrem - principal mas não somente num mundo tuíter.
Esse tipo de comunicação psicanalítica já me cansou... Acho que temos que pensar em o que deve ser dito à sociedade. Não quais são meus probleminhas da minha vidinha de merda. (agora o sociólogo esta de volta, ou não?)
Isso não quer dizer que se deva abrir mão de coisas não imediatamente inteligíveis, nem dar as coisas todas de mão beijada para o seu inteerlocutor, mas o ponto que eu concordo com o Chinês é a atenção para o fato de que muitas vezes a arte (aulas, textos, etc) não passam de masturbação ou simplesmente de interlocução com um clubinho...
Quanto à arte abstrata, como já comentei num post de quadrinhos do Fabinho, elas não me dizem nada...
Talvez por analfabetismo... Ou não...
Smac
Peixe
ps: henfil tem uma colocação que me parece genial: o humor não deve ser feito com o coração, porque ele fica ruim. ele tem que ser feito com o rim. depois que a raiva já passou, seu corpo já assimilou as coisas, e daí você libera naturalmente - sem aspas, porque as palavras não são essas...
Postar um comentário