VÍDEO: MURILO CAMPANHA CONTA ITATINGA

O psicanalista Murilo Campanha fala sobre Itatinga, um dos maiores bairros de prostituição da América Latina, onde ele tem seu consultório.

O nadador

Uma crônica de Hugo Ciavatta.

Ainda que as bolachas falassem

Crônica de Fábio Accardo sobre infância e imaginação

Ousemos tocar estrelas

Uma reflexão de Thiago Aoki.

Entre o amarelo e o vermelho

Uma crônica de Hugo Ciavatta

O homem cordial vinhedense

A classe média vai ao barbeiro. Uma crônica de Caio Moretto.

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Coluna do Leitor - Por uma vida não fascista

. . Por Mistura Indigesta, com 1 commentário


Aquele lugar em que o chão é de pó, barro, ou asfalto esburacado. Onde encontro aquela casa insalubre, aquele barraco de madeira e sucata. Sem estrutura, sem saneamento. Sem escola, sem hospital.

Ou aquele lugar em que o caminho é feito de pedras. Pedras de crack, caminhos de escravos. Seu reino pela droga. A morte e vida nos rincões abandonados do centro esquecido da metrópole.

Ou ainda, aquele lugar ocupado por gente cujo sonho era, apenas, um teto. Terra de trabalhadores, de explorados, de famílias cujas raízes já cresciam profundas naquele solo batido.

Aqueles lugares onde alguns talvez jamais ousaram pisar, tamanho medo, tamanho nojo. Mas que, não por menos, não deixaram de ameaçar e destruir.

Assistimos, neste ano que se encerra, episódios dignos de arrepio. As favelas da cidade de São Paulo queimaram. Incêndios, vidas e casas destruídas na “locomotiva” do Brasil. Redutos de gente pobre em áreas de valorização imobiliária. Os barracos paulistanos se tornaram mais propensos à combustão do que em outras favelas do país. Respostas ausentes. Famílias sem destino, sem esperança do que fazer no dia seguinte, sem seu lugar precário e desassistido sob o qual se abrigar da chuva.

Os miseráveis e doentes da Cracolândia também não tiveram sorte. Anos de dedicação de assistentes sociais, ONGs e profissionais de saúde, de árduo trabalho com centenas de dependentes químicos, perdidos por conta de decisões políticas “desastrosas” (talvez “eficientes”, dependendo dos interesses em jogo). Um caso de saúde pública, criminalizado e tratado a base de bala e borracha. E um projeto: uma “nova luz”, caminho aberto ao “progresso” higienizante da gestão municipal da capital.

Que dizer das famílias de trabalhadoras e trabalhadores do Pinheirinho, em São José dos Campos? Quase uma década de ocupação. Pessoas que, simplesmente, reivindicavam e lutavam por um teto. Milhares de pessoas que, mesmo abandonadas pelo poder público, elevaram cada parede, cimentaram cada tijolo. Do outro lado, a repressão policial, pelas ordens de decisões judiciais favoráveis às solicitações de um especulador. A violência como resposta ao desejo de um lugar para viver e dormir.

A vida dos pobres, carentes e doentes não anda fácil. Decerto, nunca foi. Mas percorremos um caminho tortuoso, indigno e aterrorizante: uma trilha de violência e “progresso”. Mesmo sabendo que as populações pauperizadas tendem a ser criminalizadas e esquecidas, e que os viciados são habitualmente tomados por párias e bandidos, a mais explícita demonstração de violência e ação depredatória por parte do Estado, ou por atores cuja identificação não é possível esclarecer a priori, nunca deixa de nos surpreender. Talvez até esperamos que ocorra, mas com uma ponta de esperança de que aquilo seja absurdo demais para se materializar.

Em tempos em que tanto se fala de democracia, direitos e conquistas sociais, a execução de ações violentas em favor de interesses especulativos e de projetos de evidente proposta de “limpeza social”, assim como o aumento de incêndios sem procedência clara em favelas, apontam para uma realidade dura, excludente, desigual e mortífera. Uma realidade de contornos fascistas.

Na Itália das primeiras décadas do século XX, em defesa do fascismo, muito se falou do progresso e da violência. A guerra era uma porta aberta à purificação. Guerra era vida. A violência era o caminho para o progresso. Não assumir uma postura bélica era sinônimo de decadência e morte. O Estado, por sua vez, não negou estes princípios, fortalecendo o culto ao progresso e à violência.

Nos nossos dias, não parecemos ter superado os ideais fascistas. O Estado e a sociedade fundada no consumo desenfreado e na desigualdade de classes se vale, a sua maneira, dos mesmos instrumentos. É preciso livrar as ruas da gente suja para que o “progresso” tome lugar. Quem tem barraco tem que ceder lugar a quem tem dinheiro para pagar um casa “de verdade”. Quem tem habitação “no lugar errado” tem que sair de onde está.

As situações citadas são, apenas, alguns exemplos. O fascismo percorre o país, afetando populações ribeirinhas em Belo Monte, sem-terras assentados em Limeira, indígenas no Mato Grosso do Sul. Atingem movimentos populares na Espanha e na Grécia, e fortalecem ditaduras no mundo árabe.

Contra tudo isto, a resistência. O desejo de mudança e de justiça. A ousadia dos levantes populares contra os poderes estabelecidos. Nossa década se iniciou com o florescer das massas. Em diversos lugares do mundo, a história permanece em constante construção. Recusa-se o “fim da história”. Reivindica-se o “impossível”.

O que temos para o ano que se inicia? O que faremos diante de poderes que cada vez mais ousam legitimar sua violência? O que diremos àqueles que querem destruir o teto e a dignidade dos mais pobres? O que responderemos aos que recusam dar a mão àqueles que o Estado trata como sujeira jogada para debaixo do tapete?

Espero, sinceramente, que no novo ano acenda-se uma luz. Um alerta aos povos. E que eles tomem para si a iniciativa de construir um novo caminho. Uma trilha em que se aterre a violência dos poderosos, se destrua o domínio dos preconceitos e se dissolva as desigualdades que, constantemente, atentam à dignidade humana. Um desejo que muitos podem imaginar irreal, inalcançável, utópico. Mas, afinal, que outra alternativa temos a este fascismo persistente que corrói e perturba as nossas vidas?

Feliz ano novo. Por uma vida não fascista.

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A frase que dá título a este texto é também o título de uma coletânea de trabalhos de Michel Foucault. Admito minha livre apropriação da mesma.  


Sydnei Melo é mestrando em Ciência Política pela Unicamp. É autor do blog "A vida de Sydnei", onde foi publicada essa reflexão de Ano Novo. Cristão, sempre se posicionou sem medo sobre isso. Está sempre por aqui também, e a última vez, inclusive, foi justamente com uma reflexão de Ano Novo,  com "Dona Maria José".

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Superstição Corinthiana

. . Por Thiago Aoki, com 1 commentário


Armando Nogueira, um dos maiores cronistas esportivos de nosso país, vez ou outra evocava Neném Prancha, a quem chamava de “filósofo do futebol”. Era uma ironia. Neném foi roupeiro, massagista, olheiro e até técnico, conhecido por divertir a todos com suas frases sobre o futebol.

A ele é atribuído o aforismo “se macumba ganhasse o jogo, campeonato baiano terminaria empatado”. Soaria mal para os ouvidos de um intelectual, mas de fato, sempre penso nessa frase quando me vejo fazendo algo absurdo pelo futebol.

Em 2009, corinthiano que sou, prometi que assistiria a todos os jogos da Copa do Brasil na televisãozinha chuviscada de meu quarto. Talvez seja parte de uma formação cristã que tive, mas tenho a impressão que sacrifícios são sempre bem vistos pelo acaso. Não deu outra, Corinthians campeão.

Para 2010 era só seguir a regra e finalmente venceríamos a Libertadores da América. Estava tudo dando certo, até que fui chamado para uma entrevista de emprego em São Paulo no mesmo dia das oitavas de final, o fatídico Corinthians x Flamengo. Fui, meio que a contra gosto, mais nervoso pelo jogo do que pela entrevista, e acabei cometendo a heresia de assistir ao jogo na televisão de meu pai.  Tenho pra mim até hoje que se estivesse na minha televisãozinha, aquela falta que o Chicão bateu no último minuto teria entrado. Bom, pelo menos veio o emprego. Guardei a culpa de ter trocado o Corinthians pelo trabalho.

Em 2012, empregado, com uma televisão mais nítida, seria mais fácil cumprir minha superstição. E isso é um problema. Tevê com sinal digital, estava muito fácil, não seria suficiente para o destino nos dar a inédita Libertadores. Lasquei logo mais duas promessas: de que rasparia o cabelo e de que daria uma camiseta oficial do Corinthians pro Zulu, um conhecido andarilho que passa muitas vezes pela Praça Rui Barbosa, em Campinas. Zulu é corinthiano roxo.

No meio do caminho, a tentação. Jogo contra o Santos e sou chamado para um serviço externo. Parados no quarto do hotel em Serra Negra, um de frente pro outro, eu e uma televisão HD de 42 polegadas. A vontade de ligá-la era inenarrável, mas fui bravo e fui ouvindo apenas no radinho enquanto olhava com pensamentos profanos para o controle remoto, intocável até o fim da partida. Minha namorada, palmeirense, tentava me corromper: “Mas nem os melhores momentos?”. Nada me tira que ajudei o Emerson a acertar aquele chutaço no ângulo. Logo depois da final, lá estava eu, careca.

Ontem, véspera da final do mundial de clubes, ainda não havia dado ao Zulu sua camisa. Como o destino gosta de testar, uma tempestade caía. Com medo de descumprir a promessa e arruinar o mundial corinthiano, fui à praça, comércio já fechado, onde estaria meu colega? Sob a marquise do Itaú, um grupo de moradores de rua se espremia para não tomar chuva, e se assustaram quando cheguei. Quando disse que procurava Zulu para dar uma camiseta do Corinthians, vi sorrisos e a informação de que ele “morava” na Renner. E finalmente, lá, com mais alguns amigos, estava ele. Cumpri minha promessa, e o deixei após um abraço sincero.

O Corinthians foi campeão do mundo. Talvez pela minha televisão chuviscada, talvez pelo meu radinho, talvez pela minha careca, talvez pelo Zulu, talvez pela posição que sentei no sofá, pela emissora que escolhi. Ao ler toda essa história, Neném Prancha talvez zombaria de mim, como se o jogo fosse simplesmente resultado do embate entre os que se enfrentam. Tanto faz, afinal, o que é a vida senão a disputa entre o “era pra ser assim” e o “não faz sentido”? Vi alguns tagarelas de redes sociais dizendo que o brasileiro leva 25.000 pro Japão e não consegue colocar 1.000 pra protestar contra a corrupção na Avenida Paulista. Chatos de galocha, não entendem que o futebol em nosso país, longe de ser a alienação do povo, é a manifestação popular que representa a beleza e a tragédia da vida. E nisso, eu e Neném provavelmente concordaríamos.

sábado, 15 de dezembro de 2012

Memórias de Tempos Que Nunca Vieram - parte primeira

. . Por Fábio Accardo, com 1 commentário




(parte primeira)

“Hegel observa em uma de suas obras 
que todos os fatos e personagens de grande importância
na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes.
E esquece-se de acrescentar: a primeira como tragédia,
a segunda como farsa”.
[Karl Marx. 18 Brumário de Luís Bonaparte.]


Era tempo de mudanças e todos pressentiam isso. Talvez porque as notícias não paravam de circular. Ou boatos, não sei. Mas pressentíamos. A vida escura estava prestes a clarear. Não que eu tivesse muitas reclamações a fazer. Na verdade não as tinha. Fui um dos poucos que conseguiu sobreviver por muito tempo por ali. E talvez esse seja o motivo de eu não reclamar mais. Porém, solidarizava com os mais jovens. Corajosos, dispostos à tudo. Bastava um passo fora e começavam as guerras. Eram tempos difíceis aqueles.

A vida era cinza. Tudo era cinza para nós. Acima de nós era cinza, e ainda por cima caiam coisas daquele lugar. Ficávamos sempre alerta. Muitos morriam esmagados. Nunca tive muita certeza, mas diziam que lá para cima é que a vida fervilhava. O tempo não parava. As pessoas não paravam. O mundo não parava naquele lugar. Lembro que apenas informações marginais chegavam a nós, e não sabíamos de onde vinham. Mas eram tão impossíveis as histórias de lá que até pareciam verdade. Eram? Pareciam? Imagino que sim.

Diziam que os homens eram fabricados em laboratório e produzidos por máquinas. Todos iguais. Iguaizinhos. Eu não podia acreditar. E o que era pior, ninguém mantinha relações com ninguém. No máximo formais e somente no limite de cada casta. Imagine você: ser criado em laboratório, condicionado por máquinas, limitado à sua casta e sem relações pessoais. Que merda de vida! Não que a nossa aqui embaixo fosse muito melhor, mas ainda a preferia. Não tínhamos quem nos mandasse nada. A lei do mais forte prevalecia, mas sozinho não se ia a lugar algum. Tribos, guerrilhas suburbanas, tudo em meio ao caos dos miseráveis.

Lá tudo era asseado. Limpo. Não se conhecia sujeira e notícias nossa, da nossa gente, não chegavam por lá. Quem apenas nos conhecia eram os praticantes da lei. Eram eles que nos atiravam sem perguntar, reprimiam por reprimir. Faziam isso por não terem mais o que fazer por lá. Seus serviços não eram mais necessários. Ficavam ociosos. Nos reprimiam para continuarmos com medo. Vivíamos desse modo: sob o domínio do medo. Mas lembro que eles tinham alguma outra função. Ah! Sim! Queimavam livros. Houve épocas onde chovia fogo por aqui, juntamente com nosso perene garoa diária. Eram livros que caiam do alto e por passarem pela chuva alguns chegavam quase inteiros. Tudo que nos era relegado conseguíamos dessa forma: do céu. E os livros foram sempre bem vindos. Faziam-nos sonhar, questionar, pensar. Mundos impossíveis, nova realidade, mudança. E só podíamos isso, pois éramos, de certa forma, livres para pensar.

O condicionamento humano a que eram submetidos todos de lá, tornava-os reclusos a suas tarefas diárias e nada mais. O condicionamento levava as pessoas a serem felizes no que eram delimitados a fazer, sem a menor possibilidade de pensar sobre isso. Questionar. Bem, isso era impossível, pois não tinham conhecimento sobre outra forma de vida. Suas formas de interação social – na verdade midiática – só serviam para reforçar sua consciência de casta. Ainda existiam os tais comprimidos amarelos, serviam para os momentos mais sombrios da mente e os deixavam mais normais.

Por menos que eu conhecesse tudo isso, não me animava a ideias desse controle das pessoas. Contudo, já estava passando da idade e me acostumava com tal fato. Mas éramos poucos nessa situação. Os jovens, leitores assíduos dos livros reles queimados, começaram a se questionar sobre toda a situação: a vida que levávamos, a condição de vida dos de cima, e essa divisão entre eles e nós, os de cima e os de baixo. Acharam que nada estava certo. Alguma coisa devia mudar.


(continua)

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

a moto dos recados

. . Por Unknown, com 1 commentário




- Bem, não esquece de trazer o remédio, passa no postinho antes do almoço, senão à tarde fico sem meu remédio, tá? - disse a senhora.
- ah, tá bom, Bem, vou deixar um recado, uma anotação na moto pra lembrar – em um pedaço de papel, entre o guidão e o tanque, escreveu “buscar remédio” e pregou com um adesivo entre os outros 179 lembretes que já levava na moto.

antes de chegar para o almoço, então, o Bem passou no postinho, pegou o remédio e estava indo pra casa com a moto, um modelo barulhento e azul, antiquíssimo. numa avenida já próximo de casa, contudo, ele percebeu o trânsito lento e, assim, dirigiu-se para o acostamento. entre os veículos que ultrapassou, havia uma viatura da polícia. de todo modo, não obteve muito sucesso com o desvio, porque alguns metros depois nem a moto passava pelo engarrafamento. mas Bem não quis ficar parado e, ao dar a volta pelo quarteirão, refazendo o desvio, reencontrou a mesma viatura, tendo que a ultrapassar novamente. dessa vez, inclusive, ao realizar a manobra, precisou cruzar a frente do veículo e fez sinal com a mão, já que as lanternas com a seta não funcionavam. a sirene soou e, cauteloso, Bem não arriscou, olhou serenamente, percebeu o gesto do policial e parou a moto em seguida. a viatura também estacionou. o trânsito seguia parado lá adiante, indiferente, enquanto o policial se aproximou do Bem dizendo:


- olá. documentos, por favor, do veículo e do senhor.

- oi. ah, aqui estão, seu guarda.


(enquanto o guarda averiguava os papéis, Bem interrompeu, entre o cinismo, a sonsice e o fofismo)

- ô, seu guarda, o que foi que eu fiz?

(silêncio)


- primeiro fez uma ultrapassagem pela direita, depois deu sinal de conversão com a mão.

- ô, seu guarda, mas não é proibido fazer sinal com a mão agora, é? não pode mais agora, é?

- o senhor não tem lanterna, não?

- ah, ter eu tenho, mas não funciona... e mesmo que eu tivesse, seu guarda, eles – eles, eles, sempre eles – não me respeitam! - com algum ímpeto.

(silêncio)


- ter e não funcionar: o senhor não tem lanterna: os documentos ficam comigo: queira, por favor, me acompanhar até o distrito, sua moto está apreendida.
- ô, seu guarda, eu te acompanho, sim, não tem problema, mas aqui ó – apontava a sacolinha presa ao guidão –, preciso levar esse remédio pra minha mulher. acabei de pegar ali no postinho, sabe, isso não pode ficar fora da geladeira. e olha esse sol, rapaz. vou levar os remédios e depois vou lá no distrito, tudo bem?

(silêncio – o guarda foi até a viatura com os documentos, mas retornou rapidamente)

- vi o recado anotado aí – apontou com o dedo para o papel preso no tanque da moto com um adesivo – “buscar remédio”, é.... olha só, o senhor tá liberado hoje, estão aqui os documentos, mas conserte as lanternas e não me faça mais ultrapassagens pela direita.

dois meses e meio depois disso, o pedaço de papel com “buscar remédio” continuava preso sobre o tanque da moto. afinal, vai quê, né.



sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

o homem popopó

. . Por Unknown, com 0 comentários



lá estava ele na manhã do feriado em que eu saía de casa como quem vai à biblioteca, como quem vai esquecido da data. finalmente encontrara um conspirador no flagra, maldita bola de pelo. nanico ainda, aquele gato estava na garagem me olhando fixamente. não, não, não, nada de papinho aqui, nada das brincadeiras de Michel de Montaigne, nada de Jaques Derrida e a existência do bichano que o mirava. 

quando passei a porta, ele estava na frente do portão, do outro lado. dei um passo para a esquerda, ele também, à esquerda dele. segui à esquerda, e ele do mesmo modo. desenhamos um círculo na garagem caminhando lentamente. voltei, dei um passo à direita, ele também foi à direita dele, e outra vez desenhamos mais um círculo na garagem, passo depois de passo. bola de pelo de uma figa, intrépido conspirador, seguia como se me desafiasse para um duelo, faltava a gaita ao fundo. me lembrei de Gancho, captain Gancho. porque mentiram pra mim, não bastasse me perseguirem, conspirarem, eles mentiram pra mim!


Gancho no início não suportava minha voz, ao me ouvir se escondia debaixo da mesa, da cama, corria, desaparecia como os da sua laia bem o sabem fazer. seis anos antes de mim, seis anos antes da casa dela, ela trombou com as estrelas e, por sorte, lhe restou o olho esquerdo, um pedaço do pulmão, alguns dentes e a pata direita, da frente, para lhe fazer coxa. assim ela foi rebatizada como Gancho: a coisa é o nome, o nome dá a coisa. avesso, alérgico, com preguiça de bolas de pelo, eu não fazia por muito, mas ela miava demais, pela manhã e à noite, demais. não houve cabelos brancos que me detivessem, no fim das contas, desenvolvi um plano mirabolante, uma estratégia infalível, ela não teve escapatória. ao ouvir os miados no início da manhã, eu abria a porta do meu quarto decidido, procurava-a, encurralava-a, submetia-a à violência, à brutalidade, aos carinhos brutais. segurava-a, deitava-a onde ela estivesse e percorria as mãos pelo corpo dela. parava sobre a cabeça dela e, com os dedos levemente dobrados, ia mais rapidamente até que ela cerrasse os olhos, prendesse a respiração e até mesmo deixasse de ronronar. instantes depois eu parava e, imediatamente, ela se punha de pé me encarando – Derrida não entendeu nada –, mas em seguida ela deixava o corpo cair de lado. de novo, ela pedia. não, só no final da tarde, quando eu voltasse, eu não respondia – não sou tonto, como Montaigne.


Gancho não nasceu livre, não era pobre, não era independente, muito menos havia lido e levado a sério um tal de Rousseau. me diziam que bichanos não se importavam, que para eles tanto fazia como tanto sempre fez, eles seguiam como melhor lhes aprouvesse. mentira. numa gaiola gigante há quase dez meses, ela nunca escondeu o fastio diante do mundo, que enxergava muito bem das janelas, sejam elas dos quartos, do banheiro, da sala, da cozinha, ou da televisão, o mundo e as pessoas eram mesmo muito esquisitas, nada fazia muito sentido. a despeito dos carinhos brutais, claro.


aquela bola de pelo nanica, contudo, na manhã do feriado, era novata demais pelo tamanho. e ele ainda levava pinta de quem sabe o que quer, pobre diabo. não tive dúvidas, se ele apontava para o duelo, se era o que queria, um confronto ele teria, então. afastei os pés um do outro, deixei de caminhar em círculos, me coloquei de frente para ele, encarei-o, era chegada a hora dele. parti disparado na sua direção, mas com dois saltos o telhado para ele era o céu para mim.


era feriado, caramba, a funcionária da biblioteca estava de folga, oras. ainda dava tempo de pegar um pão de queijo na padaria.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

o homem que nunca viu um filme até o fim

. . Por Unknown, com 1 commentário




O homem sempre dorme, sempre, por isso jamais conseguiu ver um filme até o fim. Desde criança, ele dorme em qualquer lugar, basta estar parado. De pé ou sentado, não importa, ele cochila, entra em sono profundo e até sonha. Seu apelido desde pirralho, inclusive, é soneca, uma referência ao anão da Branca de Neve, obviamente.  Ele cresceu, mas nada mudou. Não foi diferente, portanto, quando decidiu ser cinéfilo. Alguns minutos diante de uma película e ele já estava entregue à sonolência, não demorava e, ploft, ele dormia. Muitas e muitas vezes foi ao cinema, mas percebeu logo, ainda jovenzinho, que gastava dinheiro à toa. Assim, oras, não tinha cabimento, ele desistiu de ser cinéfilo.


Parte de sua família padece da mesma moléstia, é verdade. Suspeita-se de que o avô materno do homem que nunca viu um filme até o fim seja o pivô de tal pertubação. Dos seis filhos do velhinho, apenas a mãe do homem que nunca viu um filme até o fim terminou acometida pela mesma desventura. 


Almoçar com a mãe aos domingos se tornou, após tantos anos, não apenas mera formalidade, ritual enfadonho e desprovido de sentido para a família do homem que nunca viu um filme até o fim. É um verdadeiro evento social, uma festa praticamente. Todos, familiares, vizinhos, amigos se revezam à mesa com o passar dos meses, aos domingos, para assistir à mulher, hoje uma jovem senhora. Ainda com o garfo e a faca nas mãos, sobre o prato, ela simplesmente viaja atrás de suas próprias pálpebras, em silêncio, por alguns minutos, para em seguida assustar-se consigo mesma e voltar a comer. Que alegria é a cena, especialmente para a juventude, os pequeninos netos.


A felicidade só não é compartilhada pelo velho, o epicentro da moléstia na família, avô do homem que jamais viu um filme até o fim. Um dos filhos diz, em resposta ao silêncio e amargor senil, que em razão de cochilar muitas vezes durante o dia, repetidamente, ao longo de tantos anos, o velho não conseguiu seu grande objetivo de vida: ele não enriqueceu. Enquanto parava dormindo, ficou para trás diante de seus contemporâneos competidores que lutaram para açambarcar moedinhas pelo mundo.


O homem que nunca viu um filme até o fim, contudo, tenta manter o bom humor, afinal, não lhe resta muito. Ele nunca teve muitos amigos, mesmo porque não consegue manter uma conversa aprofundada com ninguém. O simples silêncio, a espera para ouvir alguém já lhe adormece facilmente. Ninguém o suporta, acreditam ser falta de edução, uma verdadeira ofensa. Os tempos são modernos, ninguém também tem tempo para esperar, ver o que está acontecendo, há pressa, as moedinhas estão aí pelo mundo. A única pessoa que parou foi uma mulher, uma vez, em uma viagem ao povoado vizinho. Vejam só, ela tornou-se a esposa do homem que nunca viu um filme até o fim. Que criatura compreensiva, diziam alguns. Para outros, ela não passa de uma tonta apaixonada - perdõe a redundância, leitor apressado -, pois cada vez que o homem que nunca viu um filme até o fim cochila diante de palavras demoradas da mulher, voilà, é evidente o sorriso de amor que se desenha no rosto dela. 


O primogênito do casal, pobrezinho, tudo indica que herdou a enfermidade do pai. Não fosse a curva na estrada que faz o ônibus do povoado à cidade, onde está o colégio mais próximo, o menino não chegaria às aulas, não teria se alfabetizado. Recentemente, ele também virou motivo de comentários rasteiros entre os colegas, foi no fim do ano passado, quando visitou o sítio da família de uma amiguinha próximo à represa da região. Numa tarde quente, já feita a sesta depois do almoço, ele disse a todos que ia à represa se refrescar. O tempo, como é de costume, foi passando, o sol então já havia se posto, fazia horas e todos estavam preocupadíssimos com a ausência do menino. Mas finalmente ele apareceu sorrindo de timidez: havia dormido dentro d'água, sentado num barranco. O barulho de uma capivara no mato, suspeita ele, fizera-o despertar assustado na escuridão, perdido. Desde aquele dia, familiares e amigos se mantém próximo do menino, evitam deixá-lo só em qualquer lugar ermo. É preciso cuidado, é uma suspeita muito forte a de que ele tenha herdado a enfermidade do pai, do homem que nunca viu um filme até o fim.


Todos na família, vítimas ou não da moléstia, já sabem, mais do que qualquer outra pessoa neste mundo, um dia podem não acordar de um cochilo. É por isso que todos guardam respeito aos mais velhos, como ao avô e à mãe do homem que nunca viu um filme até o fim.


O homem que nunca viu um filme até o fim, todavia, está disposto a vencer seu problema. Há alguns anos tem juntado moedinhas entusiasmadamente. Ele quer comprar uma esteira ou uma bicicleta ergométrica, ainda não se decidiu, mas não é para se exercitar. Para isso, claro, ele tem muita preguiça. O plano do homem que nunca viu um filme até o fim é treinar para alugar um DVD, um filme de 2h é a sua meta. Ele já tentou, algumas vezes, ver um filme em casa, sozinho, sem a mulher ou os filhos. Sempre sem que ninguém o veja, já que sente muita vergonha de tal moléstia. Nunca deu certo. Mesmo embebido em café arábico, energético importado que seja, depois dos primeiros minutos, se o filme for de aventura ou de ação, um terror, sequer o clímax às vezes é capaz de despertá-lo, uma lástima. Já tentou, inclusive, assistir a um filme de pé, mas acordou com o abraço da esposa, que lhe pedia para não se importar mais com isso. Persistente, ele cultiva a expectativa de que desenvolva resistência física o suficiente para caminhar, correr ou mesmo pedalar durante as duas horas de um filme e, assim, finalmente ver uma película até o final.


Suerte, pois, ao homem que nunca viu um filme até o fim.



quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Pergunte ao Taxista

. . Por Thiago Aoki, com 0 comentários



"A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é na verdade a regra geral." 
(Walter Benjamin)


Em seu livro "Estado de Exceção", o filósofo italiano Giorgio Agamben discute as decisões tomadas durante momentos de questionamentos das instituições do Estado e que continuam vigentes, mesmo após a solução da crise. Ou seja, medidas provisórias e que se tornam definitivas, um instrumento do Estado para manter decisões aparentemente absurdas. Acredito que hoje, a (in)segurança seja o maior motivo pelo qual aceitemos situações e imposições que extrapolam qualquer código ético ou moral.

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Recentemente, fui surpreendido pelo taxista:

- Você viu só aquelas gravações que fizeram dos policiais matando o cara atrás do camburão?

- Vi! Os caras mataram o cara já algemado sem dó nem piedade e depois relataram na ocorrência que tinham achado o corpo numa vala, né? Absurdo!

- Pois é, o cara tinha duas passagens pela polícia, aí os caras matam o vagabundo, e um desgraçado filma tudo e entrega pra globo? Se eu sou da polícia junto todo mundo pra achar o idiota que entregou essa porcaria pra mídia e dou um sumiço no cara!

Fiquei abismado e continuei conversando, tentando convencê-lo de que um assassinato sumário não é, digamos, tão legal... Mas por que raios me indigno? Não é normal que, com a banalização da violência que vivemos, nós sintamos um certo alívio em ver um suposto bandido morto? O olhar do taxista era de desespero, era ele quem teria que circular de madrugada pela cidade, à mercê da própria sorte.

E talvez dentro desse olhar esteja a razão pela qual um personagem autoritário como o Capitão Nascimento, que pela intenção do diretor seria uma espécie de vilão humanizado do vale-tudo da segurança, tornou-se um heroi nacional, assim como o BOPE, e seu quase fascismo interno e externo, que praticamente ganhou um selo de excelência após o filme. Pela mesma lógica, seria possível também que, se tivéssemos hoje algumas pesquisas, por exemplo sobre diminuição da maioridade penal, volta do exército nas ruas, pena de morte, etc., provavelmente teríamos um grande apelo da população por opções políticas mais conservadoras.

Tenso. Nada mais assustador do que pensarmos no quanto estamos dispostos a abdicar quando o medo e desconfiança se apresentam diante de nós. Estamos em guerra, logo precisamos de medidas imediatas, superficiais e impactantes. Bingo!

Pensando bem, a volta da ditadura não seria tão ruim assim, porque no tempo dos militares... Ah, o tempo dos militares! Quase uma Belle Époque brasileira para aqueles que hoje temem perder a vida por causa de um relógio. Naquele tempo, não havia direitos humanos pra presidiário nem auxílio-bandido! Tudo bem, eu quero votar, escolher meu presidente, mas o resto podia deixar como estava. Que tal refundar o Arena?!

Parece piada, mas não é.

Ainda conversando com o taxista, um pouco atormentado por suas convicções, um pouco comovido pelo medo de um trabalhador da madrugada (quem sou eu para julgar seu posicionamento?), não saía de minha cabeça uma crônica de Clarice Lispector, que ela mesma disse ser muito especial, sobre o bandido Mineirinho, morto com treze - isso mesmo, treze! - tiros pela polícia, em 1978:

"(...)Mas há alguma coisa que, se me fez ouvir o primeiro tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina - porquê eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro"

Veja como seu lamento soa anacrônico. E se não acha, pergunte ao taxista.

domingo, 11 de novembro de 2012

a moçoila e o pentelho

. . Por Unknown, com 0 comentários



o mundo todo é uma grande farsa, trágica ou engraçada, ou tragicamente engraçada, ou engraçadamente trágica. não, eu sei que não é, tudo bem. era só uma frase de efeito inicial pra puxar assunto, mas é mais ou menos por aí. é matemática a coisa, como um gráfico, dá pra ir avaliando a variação entre o divertido e o aterrorizante, e no meio disso aparece o papinho, a conversa de elevador, o chaveco de padaria.

porque anos atrás, o homem ainda era moço, não tinha se desenvolvido enquanto moçoila. ele tinha lá seus 17, por aí, branco, branquelo, branco mais branco que de tão branco que era, era vermelho. ele teve um namorico, coisa de portão e de praça – faz tempo mesmo, sério –, com uma moça negra. a menina era negra negra, preta, não era mulatinha, mulata, morena, era negra. nossa, foi um bafafá, um diz que diz, um zum zum zum. aquela coisa, né, o moço branquelo tinha que ficar ouvindo os amigos (sic), na rua, no trabalho, na oficina, na vizinhança, pra tudo que era lado: “ô, rapaz, você, branquinho desse jeito, metidinho a napolitano, namorando uma negrinha … imagina só aquele bando de urubu no teu pé depois, quando vocês tiverem filhos”. to falando que o mundo é imbecil, assustador, escroto. mas pode ser engraçado, não nego. não neste caso.

quis o destino, deus, o acaso, ou coisa que o valha, que o namorico não vingasse. c'est la vie. o casal não deu certo, mas não foi por causa dos comentários. só não deu certo. o tempo passou, parari parará, o cara branquelo e vermelho conheceu outra, casou-se e teve um filho: um safado(!) esse branquelo vermelho.

lá estava ele no supermercado um dia com seu pequeno de uns três anos. enquanto a esposa preferia comprar as coisas sozinha entre as prateleiras, o homem branquelo e vermelho circulava com o pivete, ia pelo shopping, pelos corredores, dava um jeito de passar o tempo. de repente, o infante sumiu, desapareceu, fugiu! que apuro, que desespero passou o homem branquelo vermelho. depois de quase uma hora buscando pelo nanico, tadan, lá estava ele de mãos dadas com outra criança. naquele momento, então, o homem branquelo e vermelho não soube o que pensar, não sabia se era engraçado ou simplesmente trágico, ele viu na criança ele mesmo anos atrás, era o pai no filho a cena diante de seus próprios olhos. a menina era um pouco maior que o filho dele, ela era negra, de cabelos compridos, trançados. ao homem branquelo vermelho, ela não pareceu assustada, ou desconfortável, ao mesmo tempo, ela não estava completamente à vontade. a menina estava também com os pais, daí o homem branquelo vermelho se aproximou, meio sem jeito, meio que se desculpando, “ô, meu filho, eu estava te procurando”. os pais dela sorriram, pelo menos, enquanto o filho virou-se para o homem branquelo vermelho:

- ô, pai, essa aqui é a menina mais bonita do mundo.
- ah, oi … vamos, Hugo, mamãe está nos esperando já, vamos...
- não, pai, eu não vou, não. eu vou ficar aqui com ela. tchau.
- Hugo …





domingo, 28 de outubro de 2012

Coluna do Leitor - Curta Coca-Cola

. . Por Mistura Indigesta, com 5 comentários





Ganhei um tênis Coca-Cola. Parece All Star. Não é. É Coca-Cola. Não é uma estampa da Coca-Cola. Não é um All Star Coca-Cola, nem um Nike, é um tênis Coca-Cola. A Coca-Cola resolveu [desde quando?] fabricar os tênis que desde sempre ela estampava. Está disputando o mercado de tênis. E, claro, como dizem os economistas e outros tipos de marqueteiros do capital, “fortalecendo a sua marca”. Que é o que interessa. Eu sabia que ela fazia bebidas [3.500 bebidas em mais de 200 países]. Eu sabia que ela fazia estampas [para qualquer coisa]. Não sabia que fabricava tênis.


[Bom, não é ela quem fabrica. Quem fabrica são os mesmos escravinhos chineses de sempre. Eles produzem tudo. Tudo é Made in China. Com cara de United States, claro. Antes, uma vendedora de tênis escravizava os chinezinhos, pegava o tênis que eles faziam e chamava de dela. Depois a mesma vendedora fazia algum tipo de acordo misterioso com a Coca-Cola para botar a estampa no tênis. Daí a Coca-Cola resolveu tirar essa vendedora de tênis chineses da jogada e se tornar a sua própria vendedora de tênis chineses. Tênis com cara de United States, claro. Não que isso seja estranho. Era de se esperar. Há muito, inclusive. Mas hoje em dia tá meio demodê essa coisa de mega-empresa vender coisas. Tá mais in vender só o sonho que a marca promete. Anyway, quem disse que o demodê não vende? Como diria aquele outro: “Fazemos qualquer negócio!”. That’s Business, stupid!]


Bom, como eu ia dizendo, ganhei um tênis Coca-Cola. Minha esposa comprou pra ela. Machucou o pé dela. Daí ela o deixou encostado. O pé dela é um pouco menor que o meu. Mas eu precisava de um tênis socialmente aceitável para trabalhar. Experimentei. Não. O tênis não serviu. Já é de um tipo desconfortável. E ficou apertado. Mas o pé do pião aqui já vestiu coisas piores. Estávamos duros. Eu, minha esposa e o tênis. Então resolvi amaciar o tênis. Eu e minha esposa não temos jeito. Ele me fez bolhas. Doeu. Laceou. Já não dói mais. Nem faz mais bolhas. Acomodou-se ao meu pé. Ou meu pé acomodou-se a ele. Não sei.


Meu pessoalzinho tira sarro. Aqueles que têm bom-humor acham tudo isso uma grande piada e um tanto perigosa. Mas os que não o têm, eles ficam me cobrando. Acham que um anticapitalista como eu não deveria usar um tênis do império do mal. Não me dou ao trabalho de responder*. Não acredito em empresa “do bem”. Como diria o da cruz, "Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro" (Mt 6, 24). Eu concordo com ele, pois não posso me dar ao luxo de não usar um tênis “do mal”. Foi-se o tempo em que eu era livre para andar descalço. Esta, eles venceram.


Eu sou um tipo chato. Fico pensando nesse tipo de coisa. Dá certo mau-humor. É um reclamório um tanto cansativo. Às vezes, tento resolver piadeando. Ajuda mas não resolve. Toca-se o barco. Me lembrei de um texto, é de um ídolo do editor. O editor colocou o linque aqui. É uma crônica meio babaca, mas chega a ser divertida. E é rápida. Direta. Como as boas. E eu aproveito para puxar o saco do escritor e também deste tal site indigesto, tento arrancar um qualquer para pagar o leite das meninas: não é disso que estamos falando? A crônica é de uma coisa que pode vir a ser outra coisa e que, no fim, não é coisa alguma?



um tênis da marca de refrigerante;
que parece aquele outro tênis mas não é;
que eu tenho que comprar pra fazer propaganda dele;
que é produzido pelos escravinhos chineses de praxe;
que aperta;
que machuca;
que laceia e se acomoda ao meu pé;
que acomoda meu pé a ele;
que é aceitado no meu trabalho;
e que supostamente diz pra quem me vê quem eu sou.



Bom, se eu fosse descrever o tal do capitalismo, seria mais ou menos por aí. Não gosto dele. Fazer o quê? Eu sigo andando. Com meu tênis Coca-Cola. O capitalismo agoniza. Talvez morra. Talvez não. Em todo o caso, é melhor eu ter os pés no chão. Se pá ele morre antes de mim. E eu vou continuar andando com meus pés. Machucados. Comendo, bebendo, cantando. Jogando bola e engolindo sapo. Como sempre. Ao rés–do-chão. O horizonte é primaveril e muito menos pessimista do que esse testículo mal-humorado.



pés do Peixe em sua posição típica, voltados pra cima
(por Maíra Sampaio)


Smac




* L.E. (linque do editor)




Thiago Fernandes Franco é o "Peixe", cativo na Coluna do Leitor, mal humorado às vezes, muitas vezes, ou quase sempre, mas chato, sim, sempre. Está sempre sorrindo também. 

sábado, 20 de outubro de 2012

Reencontro com Madiba

. . Por Unknown, com 0 comentários

"Sonhar é acordar-se para dentro.
(Mário Quintana)



Vi Nelson Mandela novamente, mas dessa vez foi muito rápido, mal pude desfrutar a presença dele e de sua esposa, foi apenas de passagem. O sol já havia cruzado metade de um céu aberto, a luz intensa cansava a vista, deixava o corpo devagar e as sombras mal cresciam para o outro lado de qualquer objeto anunciando a tarde. Meus olhos, há dias, eram como que puxados à minha frente, sufocados em qualquer lugar. Eu ia ao encontro de Bruno, amigo que viveu em Paris e com quem passei alguns dias em Buenos Aires, tempos atrás.

Pela rua, antes de chegar numa esquina, percebi que dois homens carregavam pelos braços e pelas pernas um outro sujeito, alguns metros adiante. Imaginei um acidente, um mal súbito, nada demais, mas não, o sujeito carregado morria. Largado entre a rua e o canteiro, aquele homem tinha os olhos revirados, mãos, braços, pernas e pés contorcidos, girando a cabeça ao redor da boca entre-aberta. Os outros dois homens gritavam “tá morrendo, tá morrendo”, pediam ajuda, que ligassem para uma ambulância, o sujeito precisava ser socorrido, oras. Não me perguntei se era possível driblar o inadiável, não pensei nada, não reagi, não me mexi. Já havia visto mortos, jamais alguém morrendo. “Morreu, morreu”, foi o que guardei do grito quando o corpo do sujeito parou de pulsar e o pescoço decaiu. Sobre o corpo, então, a perna de um velho se estendeu, e assim que os joelhos senis bateram o chão, as mãos enrugadas e juntas golpearam veloz e insistentemente o peito do moribundo. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, e os olhos do sujeito se abriram de novo. Fui embora.

Encontrei Bruno em seguida, ele biografou o músico Johnny Carter, saxofonista, virtuoso homem do jazz que inventava um novo tempo em suas apresentações, como quem, ao mesmo tempo, desdenhava do tempo daqueles que lhe assistiam. Bruno se lembrava de algumas palavras de Johnny:

Nunca he pensado en nada, solamente de golpe me doy cuenta de lo que he pensado, pero eso no tiene gracia, verdad? Qué gracia va a tener darse cuenta de que uno ha pensado algo? Para el caso es lo mismo que si pensaras tú o cualquier outro. No soy yo, yo. Simplemente saco provecho de lo que pienso, pero simpre después, y eso es lo que no aguanto. Ah, es difícil, es tan difícil... (…) Es fácil de explicar, sabes, pero es fácil porque en realidad no es la verdadera explicación. La verdadera explicación sencillamente no se puede explicar. (…) No era pensar, me parece que ya te he dicho muchas veces que yo no pienso nunca; estoy como parado em una esquina viendo pasar lo que pienso, pero no pienso lo que veo.

Bruno me confessava, com isso, a profunda e ressentida inveja que tinha de Johnny. Johnny zombava de toda a fraqueza transbordante de Bruno. Johnny sorria, simplesmente, debochava de qualquer um. Mais, Johnny debocha de si mesmo, nada lhe importava, a não ser sua própria alegria, uma felicidade estúpida como a de quem está prestes a desaparecer, irresponsável. Porém, Bruno ponderava:

Envidio todo menos su dolor, cosa que nadie dejará de comprender, pero aun en su dolor tiene que haber atisbos de algo que me es negado. Envidio a Johnny y al mismo tiempo me da rabia que se esté destruyendo por el mal empleo de sus dones, por la estúpida acumulación de insensatez que requiere su presión de vida. (...) Y todo eso lo sostengo desde mi cobardía personal, y quizá en el fondo quisiera que Johnny acabara de una vez, como una estrella que se rompe en mil pedazos y deja idiotas a los astrónomos durante una semana, y después uno se va a dormir y mañana es otro día.

Era isso, eu dizia a Bruno, era justamente esse o sentimento que gostaria de desfrutar, essa intensidade, tal como Johnny nos apresentava, mas sem o medo que eu sentia. Porque eu tremia, minha palavras vacilavam ao imaginar que poderia apenas cruzar rapidamente com Madiba, como quem dá um bom dia, um oi, tudo bem pelo caminho e segue indiferente. Bruno rebatia, sorria, ele dizia que eu não passava de um idealista, iludindo a mim mesmo, preso a delírios adolescentes. Eu, que vira Madiba algumas vezes antes de o conhecer de fato naquele almoço, insistia com Bruno, lhe dizia que não. Eu confessava, havia sentido Madiba, percebido seu abraço, aquela presença, inclusive o perfume que vinha de Madiba. Nada era igual, nada pode ser igual, eu repetia a Bruno, que sorria largamente.

Eu rejeitava o pensamento de que não mais pudesse ver Madiba, ou de que não mais pudesse estar em sua presença como quem contempla um Miró ou o rabisco entre azulejos na parede da cozinha, como quem esquece o que procurava e se deixa escolher sabores de suco instantâneo na prateleira do supermercado. Dizia isso a Bruno naquela tarde, contando a cena que me ocorrera pouco antes, a caminho de seu encontro. Talvez não houvesse outra oportunidade de estar com Madiba, eu dizia a um Bruno impassível. Me angustiava imaginar que não conseguisse sequer admirar aquele sorriso de Madiba e sua gentileza diante das coisas, de uma vida compartilhada com a senhora sua esposa, entre gestos e olhares que revelavam personagens dele, de palavras firmes, procedimentos duros e cândidos como somente os idiotas podem ser. Madiba era um idiota, eu também sou um idiota, eu dizia, e por fim Bruno reagiu sorrindo um sorriso de deboche que eu não conhecia nele. Bruno delirava, e eu já não o suportava depois daqueles minutos de uma tarde quente. Voltamos a Johnny, nas palavras de seu biógrafo:

Pero no voy a eso, lo que quería explicarme a mí mismo es que la distancia que va de Johnny a nosotros no tiene explicación, no se funda en diferencias explicables. Y me parece que él es el primero en pagar las consecuencias de eso, que lo afecta tanto como a nosotros. (...) a reconocer que quizá lo que pasa es que Johnny es un hombre entre los ángeles, una realidad entre las irrealidades que somos todos nosotros. Y a lo mejor es por eso que Johnny me toca la cara con los dedos y me hace sentir tan infeliz, tan transparente, tan poca cosa con mi buena salud, mi casa, mi mujer, mi prestigio. Mi prestigio, sobre todo. Sobre todo mi prestigio.

Eu sequer havia ouvido falar do músico, tampouco conhecia as canções, o jazz de Johnny Carter, no entanto, diante das palavras daquele meu velho amigo, de um Bruno fora de si, eu não sabia o que dizer, desejava defender Johnny de tamanha crueldade:

Nadie puede ser más vulgar, más común, más atado a las circunstancias de una pobre vida; accesible por todos lados, aparentemente. No es ninguna excepción, aparentemente. Cualquiera puede ser como Johnny, siempre que acepte ser un pobre diablo enfermo y vicioso y sin voluntad y lleno de poesía y de talento. Aparentemente. Yo que me he pasado la vida admirando a los genios, a los Picasso, a los Einstein, a toda la santa lista que cualquiera puede fabricar en un minuto (y Gandhi, y Chaplin, y Stravinsky), estoy dispuesto como cualquiera a admitir que esos fenómenos andan pos las nubes, y que con ellos no hay que extrañarse de nada. Son diferentes, no hay vuelta que darle. En cambio la diferencia de Johnny es secreta, irritante por lo misteriosa, porque no tiene ninguna explicación. Johnny no es un genio, no ha descubierto nada, hace jazz como varios miles de negros y de blancos, y aunque lo hace mejor que todos ellos, hay que reconocer que eso depende un poco de los gustos del público, de las modas, del tiempo, en suma.

Me desesperei diante dessas palavras de um Bruno desprezível, soberbo como o são as minhocas, não pude suportar. Nunca havia visto um homem morrer, já havia visto homens mortos, naquela tarde quente, quando meus olhos me espremiam, matei Bruno.




*Bruno é narrador e personagem de El perseguidor, de Júlio Cortázar.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Palhaços

. . Por Thiago Aoki, com 2 comentários


"Enxuga os olhos e me dá um abraço
Não te esqueças, que és um palhaço
Faça a platéia gargalhar
Um palhaço não deve chorar"
(Nelson Cavaquinho - Palhaço)


São muitas as lendas sobre a origem das simbologias do palhaço. A história que eu mais gosto, e pouco importa sua veracidade, remete ao final da Idade Média, quando um soldado chegou cedo demais ao seu posto e, para se aliviar do frio, bebeu muito vinho. De tanto beber, acabou pegando as roupas de um outro soldado, mais alto e mais gordo. Desengonçado, e com as roupas maiores que o corpo, ele tropeçou seguidamente diante de todos, arrancando gargalhadas. Quando o soldado esperava a bronca pelas trapalhadas, o capitão não conteve o riso e o convocou para que no outro dia fizesse a cena novamente, mas desta vez com o nariz pintado de vermelho para parecer bêbado.

Gosto porque, desde ali, o palhaço já era um subversivo que assumia a linha tênue rabiscada entre o riso e o poder. Continha também o germe da malandragem que o acompanha até hoje, afinal, ser palhaço foi, neste caso, uma questão de sobrevivência profissional. Aos poucos, o personagem tomou os contornos dos Bufões, ou bobos das cortes, que zombavam a própria hierarquia estabelecida pelo sistema medieval.

A figura até hoje permeia nosso imaginário. Tanto que, há algum tempo, o longa “O Palhaço”, com direção e atuação de Selton Mello, foi o filme brasileiro escolhido para disputar a indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Nele, o ator interpreta Benjamin, um palhaço em crise. O personagem contém em si toda a essência transgressora da origem de sua figura, mas se vê perdido com a crise de seu circo de lona e começa a questionar suas próprias convicções. Um palhaço tradicional que aos poucos parece perder o encanto com seu próprio trabalho.




Situação semelhante à de Careta, palhaço brilhantemente interpretado por Dagoberto Feliz no espetáculo “Palhaços”, escrito em 1974 pelo dramaturgo brasileiro Timochenko Wehbi e em cartaz desde 2005. No palco, observamos o encontro entre o palhaço e um admirador que o procura após o espetáculo - um homem comum, vendedor, em notável atuação de Danilo Grangheia. Com diálogos que transitam entre o cômico e o ácido, Careta destroi paulatinamente o personagem de nariz vermelho, tão idealizado por todos, rasgando com a visão ingênua de seu fã, e transformando a conversa amistosa em um jogo angustiante.


Tanto Benjamin como Careta, ao se questionarem sobre suas profissões e vocações, expõem o eu banal do ator por trás da maquiagem. A crise que está latente não é o celebre caso da paixão de um palhaço pela trapezista que, por sua vez, foge do circo com o domador de leões. O que se vê é a dor de quem tem a obrigação de sorrir e fazer sorrir. O cansaço de ter que brincar com o prefeito na primeira fila. O esgotamento de argumentos para convencer essa ou aquela empresa de que vale a pena colocar seu dinheiro no circo que chega. A insatisfação em ser visto como o que se atua, não como o que se é. Uma situação que transita entre a descrença individual e a derrocada de um projeto coletivo.

Ambos proporcionam ao espectador uma visão do personagem que contrasta com certa nostalgia romântica que sentimos quando nos deparamos com um palhaço, do qual não esperamos nada mais que a alegria. Mas podemos ir além. O que há de universal nos dois casos é o questionamento sobre a humanidade perdida no dia-a-dia, da maquiagem que passamos na ânsia de cumprir um papel, que muitas vezes não é o nosso, ou que não gostaríamos que fosse nosso. A necessidade de nos levantarmos da cama e produzirmos ao mundo o que ele espera de nós.

Além do nome parecido, a sensação que temos quando saímos do espetáculo ou do filme também é semelhante. Saímos rindo, é verdade, mas um pouco incomodados, nos perguntando quem de fato é o palhaço, o soldado de nariz vermelho que alegra o capitão.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

[Tradução] O Pavilhão Alemão e a Fama

. . Por Fernando Mekaru, com 1 commentário

Você quer ser famoso?

Em 1928, o arquiteto Mies van der Rohe recebeu uma comissão para desenhar um pavilhão que representasse a República de Weimar na Exposição Internacional de Barcelona de 1929. O edifício acabou por ser reconhecido, com justiça, como a mais eloquente definição daquilo que, mais tarde, seria agrupado dentro do Modernismo, [definindo-o como] algo na linha de 'Não apenas fazer muito mais com muito menos, mas tornar-se tão bom nisso a ponto de se poder trilhar um caminho para fora da desorientação e da perversidade que corroem a vida moderna, que fora dessas situações é repleta de conveniência e recompensa sem precedentes'.


O pavilhão foi desenhado para não ter portas e ser feito, em sua maior parte, de vidro. Este edifício era otimista, de quase todas as maneiras que um prédio poderia ser, quanto ao século que gostaria de prever. As evidências de opressão classista que grandes casas possuem, como escadas para funcionários ou cozinhas no porão, inexistiam. Paredes vazias, nas quais evidências de riqueza poderiam ser penduradas, foram substituídas por janelas. A realidade é o objeto com o qual as paredes transparentes forçam um confronto com a sua atenção. O pavilhão até mesmo se despe de conceitos como 'frente' e 'fundos': sem um lado no qual é possível projetar como deseja-se ser visto, a duplicidade [de posturas] é mais complicada do que simplesmente ser honesto. Este prédio espera que, sem nada para esconder-se, as próprias ideias de sigilo e malícia tornarão-se incômodas demais para existir.

Mas mesmo no próprio templo do encanto, havia um local no pavilhão que mostrava uma sombra terrível do século XX: após o salão principal havia um espelho d'água, e no meio do espelho jazia uma estátua de uma mulher nua. A escolha de colocá-la em um local intransponível para todos aqueles que olham para ela é uma definição elegante, assim como todo o resto do prédio, mas aquilo que é definido é hediondo. O fato de que a estátua fora retirada de um ponto central e colocada em uma posição que permite apenas um ponto de vista é um exemplo de algo que nossa era fez em escala industrial: a redução de volumes a imagens. Uma estátua, por definição, preenche um volume, mas limitar nossa perspectiva achata-a, restando somente uma imagem.

O ato de reduzir a liberdade de enxergar sob a perspectiva que melhor se adeque a você a uma única opção é tão antiga quanto o mito [platoniano] da caverna, onde estátuas eram reduzidas às suas sombras. Mas o pavilhão prevê que este processo virá a dominar tudo que a estátua representa: arte, distração, beleza e, eventualmente, as próprias pessoas. Todos nós compraremos, favoreceremos, amaremos e apreciaremos de uma distância intransponível. Seremos segregados de tudo que admiramos e de tudo aquilo que queremos, pois somente imagens nos são apresentadas, e sua natureza plana não permite sua apreensão completa.

Acima de todos os outros exemplos deste processo está a fama. Se somos iludidos pela publicidade a comprar uma ilusão, desejar ser famoso é desejar tornar-se a ilusão. É um desejo que confunde isolamento com raridade, solidão com excepcionalidade, e distância com elevação. É a conquista coroada de uma campanha de cem anos de duração cujo objetivo é corrigir qualquer aspecto de estar vivo que exija uma expressão complexa e irredutível de humanidade.

Então, não. 
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Tradução livre deste texto que parte da análise arquitetônica para chegar a uma discussão sobre as armadilhas existenciais da fama.

domingo, 30 de setembro de 2012

Coluna do Leitor - Em defesa de Lana

. . Por Mistura Indigesta, com 0 comentários



Money is the reason we exist, everybody knows it, it’s a fact, kiss kiss”. A princípio, uma afirmação assim peremptória sobre a natureza humana deveria causar asco, sobretudo àqueles que, como nós, recebem este conteúdo cultural no contexto da ‘cruzada civilizatória’ empreendida por uma nação que aspira a ascensão a outro patamar de desenvolvimento econômico. Isto é, a frase extraída da música National Anthem, de Lana Del Rey, deveria causar reações polarizadas e excludentes: ou reclamaria uma adesão irrefletida por quem, sem muitos problemas de consciência, consome produtos ideológicos vindos sobretudo dos EUA, ou motivaria rejeição imediata. Confesso que tenderia a me encaixar neste segundo grupo, ainda mais quando o assunto são cantoras pop que a todo momento nos são enfiadas goela abaixo. Mas há algo em Lana Del Rey que desestabiliza esta polarização e – pasmem – cria uma identificação das intenções da cantora conosco, habitantes do famigerado terceiro mundo.

Quem é familiarizado com a crítica de arte produzida durante o século XX sabe que, paulatinamente, o vocabulário que opunha verdadeiro e falso, essência e aparência foi abandonado. Aqui não é o lugar para se refletir sobre este movimento crítico; talvez reste somente a hipótese de que o movimento que caracteriza a indústria cultural seja precisamente a vitória da aparência sobre a essência, ou a vitória do falso sobre o verdadeiro. Isto não significa uma reivindicação ingênua de uma ‘essência perdida’ da arte, à qual deveríamos voltar. Significa somente que, assim como quase tudo, também a arte se transformou em produto, e, sendo assim, toma parte no jogo de fetichização caro à produção de mercadorias. Em que constituiria, neste sentido, a essência da arte? Em uma pílula, seria o fascínio diante do desajuste entre o pensamento e a realidade. O pensamento artístico seria, portanto, essencialmente angustiado por encarar, a todo momento, esta inadequação fundamental. Diante deste quadro, o que seria a arte falsa? Seria a arte fetichizada, isto é, transformada em objeto completamente manipulável. Uma arte que não é mais expressão de angústia diante do desconhecido, que não traz em si nenhum rastro de opacidade. Ao contrário, trata-se de uma expressão artística que é absolutamente luminosa, segura de si, e expressaria esta segurança no aparato técnico que lhe dá suporte. Podemos ver isto claramente no âmbito da música, sobretudo esta feita em escala industrial, em que tudo é contornável, ao ponto de nos perguntarmos (como bem me disse Felippe Pompeo no último fim de semana) se aquilo foi realmente executado por um ser humano que, obviamente, é passível de erro. Trocando em miúdos, vivemos a era do autotune porque vivemos a era do fetiche.

Em um primeiro olhar, a música de Lana Del Rey se encaixaria sem nenhuma reserva a este panorama. A audição de seu álbum Born to die propicia um belo exemplo de perfeição técnica: tudo está no lugar, tudo foi devidamente pensado e executado de modo a produzir algo absolutamente apreensível pelo ouvido que cresceu em meio à escola da indústria fonográfica. Até aí, nada a separaria de outras cantoras como Lady Gaga e Beyoncé. Há, no entanto, uma impressão que carrego desde a primeira vez que a ouvi: a de que existiria um núcleo ‘crítico’ em sua música, algo que a afastaria da condição de mero objeto de consumo. É óbvio que Lana Del Rey é uma autêntica cria da indústria cultural, acerca disto não há dúvidas. O que se coloca em questão é como ela faz uso desta posição ao centro do coração pulsante da mercadoria.

Voltemos à frase que abre este texto. Dizer que o dinheiro é a razão pela qual existimos é, em um primeiro plano, algo que, de tão desconcertante, a afasta de lições de boa conduta e moral – um pouco próximo da auto-ajuda – que encontramos em Lady Gaga (Born this way, por exemplo) ou Beyoncé (cuja produção é recheada do novo “poder” feminino). A frase de Lana parece almejar o desconforto: ao contrário de suas colegas, sua mensagem não é “você também é especial e poderoso”, mas “você é insignificante, mera mercadoria”. Este segundo sentido é potencializado pela drástica tensão contida em sua música: em todo o álbum, não somente nesta canção, é possível encontrar frases de teor desconcertante – seja quanto à consciência de que ela mesma é uma mercadoria da indústria, seja no que toca a construção da feminilidade em consonância com a construção da posição de objeto de fetiche – entremeadas a afirmações plenas de consequências: “winning and dining, drinking and driving, excessive buying, overdose and dying, on our drugs and our love and our dreams and our rage, blurring the lines between the real and the fake”. Tenho dificuldades em achar um exemplo melhor de uma produção tão potente quanto esta, tão consciente de si, feita nos últimos anos de indústria musical.

Se tudo isto é uma estratégia de marketing, é difícil dizer. Arriscaria inclusive afirmar que a questão pouco importa. Como afirma a própria Lana, sua música traz consigo a capacidade de borrar os limites entre o falso e o verdadeiro, precisamente por se colocar no exato ponto em que a arte se transforma em mercadoria (aqui até mesmo sua controversa participação no programa Saturday Night Live se reveste de interessante caráter inquietante). Neste ponto, questões como esta acabam perdendo a função. O que resta de crítico em sua música diz respeito a este olhar desconcertante que nos é lançado da linha de montagem da indústria cultural: algo como um olhar petrificante e resignado, de uma moça que sabe que está prestes a se transformar em produto de fetiche, seja sexual, seja musical. Este olhar que nos tira de nossa posição confortável de meros consumidores, seja de mulheres, seja de arte. Trata-se de um olhar que diz: “você pode me consumir, mas tenha consciência de que consome um objeto falso, e que o único instante de verdade nisto será precisamente esta rápida fagulha de consciência”. Curiosamente, como aventado no começo deste texto, há uma proximidade entre esta posição – criada à revelia por Lana no cerne da indústria – e a nossa. Nós, enquanto coadjuvantes do mundo ‘civilizado’, enquanto meros aspirantes, falamos deste mesmo lugar: daquilo que está na esteira da fábrica, prestes a ser processado. Há com isto um distanciamento – mínimo, é verdade – essencial quanto à ideologia: algo que a música de Lana cria à força, como se abrisse espaço em meio à areia movediça que é o consumismo norte-americano. Sua lição para nós, produtores de arte em países marginais, é enigmática; mas por isto mesmo muito poderosa.

Felipe Bier Nogueira insiste em ser torcedor do Palmeiras, mas tem habilidade entre Oito Mãose pode ser encontrado também em Nowhere Land.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Nem isso

. . Por Unknown, com 1 commentário

Em 2008, lembro que a Ciência garantia a segurança de todos frente ao que deveria ser o maior experimento realizado na Terra. O LHC (Large Hadron Collider), cujo custo estimado era de cerca de US$ 8-10 bilhões, entrava em funcionamento naquele ano. O objetivo principal dele era investigar uma das questões fundamentais da ciência: a origem da massa. Que belo pretexto para tantos bilhões!
Conforme a física moderna, a matéria seria formada por pequenos corpúsculos indivisíveis, as partículas elementares. O colisor nada mais seria do que uma máquina gigante, construída nos subterrâneos próximos a Genebra, que aceleraria essas partículas atômicas provocando choques de umas contra as outras, só que com velocidades semelhantes à da luz. Nas colisões, então, a energia de movimento das partículas seria transformada, segundo Einstein, com E = m c², em outras partículas. Tal fato possibilitaria o estudo da composição da matéria por meio das diferenças de massa entre as partículas.

Mas -  tinha que haver um mas - em meio às possíveis descobertas, as colisões poderiam ainda criar mini buracos negros. Ora, buracos negros não são aqueles trens que podem ser fruto da morte e explosão de estrelas?? E esses buracos negros não concentram enormes quantidades de matéria em seus centros, núcleos estes que emitiriam sinais de radiação e que, literalmente, sugariam tudo quanto é corpo celeste ao redor, tendo uma gigantesca força gravitacional?? Não existiriam buracos negros, inclusive, cujo diâmetro seria equivalente à distância do Sol a Saturno??
Desse modo - ah, que primor de raciocínio lógico -, o LHC, ao produzir buraquinhos negros em seu interior, com energias incríveis, destruiria o mundo??? Madre mía de mi alma!! Partículas se chocam, os físicos entendem a matéria, criam-se mini buracos negros, tudo ao mesmo tempo, e o mundo se acaba: Genebra engole o planeta!! O genebrino mais famoso do mundo não ficaria muito contente, imagino, coitadinho do Rousseau.

Não. A energia liberada pelas colisões seria equivalente ao voo de um bando de mosquitos. “O Segredo” do LHC, portanto, estaria em concentrar energia em uma escala submicroscópica. Ora, ora, ao espantar pernilongos, ninguém cria buracos negros por aí. E os mini buracos negros teriam existência muito efêmera, em questão de instantes eles desapareceriam, pois suas massas são infinitamente pequenas para atrair qualquer outro objeto. Não custa lembrar, são escalas. Adicione ao seu vocabulário de graus, metas, focos, estimativas e investimentos: escalas!

Ainda em 2008, todavia, no Hawaii, dois malucos entraram na Justiça - sei lá em que instância, talvez divina -, para impedir o funcionamento do novo brinquedinho da Física, do mesmo LHC. Não há dúvidas quanto a isso, é um belo pretexto para entrar na justiça: o mundo iria acabar!

Nos nossos trópicos, no início do século passado, afe, isso tudo já tinha virado samba. Assis Valente, um baiano que no Rio de Janeiro teve uma vida bastante atribulada, compôs uma música até hoje muito conhecida. A canção ele fez por causa do anúncio da passagem do cometa Halley, em 1938, quando surgiram boatos de uma colisão com a Terra e o consequente apocalipse. Carmem Miranda gravou:

Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar
Por causa disso minha gente lá de casa começou a rezar...
E até disseram que o Sol ia nascer antes da madrugada
Por causa disso nessa noite lá no morro não se fez batucada”.

Enquanto uns constroem um trem com não sei quantos bilhões para dizer como se constitui a massa dos corpos, da matéria, não contentes em perceber que os corpos simplesmente existem, vejam só, outros entram na justiça para evitar o fim do mundo. Porém, muito mais inteligente é fazer samba com isso!

Mas - tinha que haver outro mas - em julho último, quatro anos se passaram, nem a Justiça hawaiana ou divina pode deter, o LHC continuou seus trabalhos e, num dia como outro qualquer, ou não, ta-dan, o mega aparelho encontrou a partícula que originou as demais partículas. Sim, o Bosón de Higgs, previsto pelo físico Peter Higgs na década de 1960, e ainda apelidada de “partícula Deus” por outro físico, Leon Lederman, enfim, existe. Quer dizer, há uma chance muito, muito pequena agora dessa partícula, que teria se formado em seguida ao Big Bang, não existir, conforme os cálculos feitos a partir dos experimentos no LHC. Quem sabe o Bóson de Higgs não tenha levado a alcunha  em referência ao Deus de René Descartes, para quem o mundo não teria por que não houvesse uma Razão, “Deus”, quem sabe. 

Bom, talvez coubesse uma conclusão indignada, como quem vocifera contra a Ciência inútil, culpa a política elitista e o sistema – ah, o sistema – diante de tantos desesperos e misérias humanas. Uu, fico com Manoel de Barros, para quem a arte e a poesia são igualmente inúteis. Há gente que acredita em Deus, há gente que acredita, digo, calcula a partícula, o Bóson de Higgs, ou os dois. Há gente que não acredita em Deus, que não se importa com a matéria atômica. Há gente que acredita e faz tanta coisa. Não vem ao caso, que preguiça, mas algumas coisas são mais importantes que outras, não nego.
No fim das contas, são todos bons pretextos pra seguir por aí. Fato é que com a “descoberta” do LHC o mundo não acabou, pelo menos por enquanto, uma pena para alguns, um alívio para muitos. Pior, não houve samba, ninguém cantou, ninguém dançou, que triste, que chato. Um pretexto, é uma questão de pretexto apenas, mas nem isso foi suficiente.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Alice no País das Maravilhas: literatura cristã

. . Por Caio Moretto, com 3 comentários

Rejeite, porém, as fábulas profanas de velhas e exercite-se na piedade”.
1 Timóteo 4:7

Além de terem sido adaptados para os cinemas e terem feito sucesso nas telas nos últimos anos, os livros As Crônicas de Nárnia, O Senhor dos Anéis e Alice no País das Maravilhas possuem outra semelhança menos conhecida: todos são livros de ficção com pretensões cristãs. Mas será que podem ser chamados de literatura cristã?

narniaDos três livros citados, o pano de fundo religioso de As Crônicas de Nárnia, conjunto de livros de ficção escritos por C. S. Lewis talvez seja o mais conhecido. Nessa obra C. S. Lewis, “o mais relutante dos convertidos” (como ele define a si mesmo em um de seus livros mais autobiográficos) inventa um mundo fantástico com o objetivo de recriar padrões da mitologia cristã. Além das Crônicas, os programas de rádio de Lewis durante a primeira Guerra Mundial e a posterior compilação desses textos no livro Cristianismo Puro e Simples, fizeram do autor um dos mais influentes escritores cristãos de ficção e de não ficção de seu tempo.

A trilogia O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien, mais sutil em suas referências cristãs, também carrega uma legião de fãs, muitos dos quais nunca souberam dos objetivos de seu autor. Tolkien e C. S. Lewis eram amigos próximos e chegaram a discutir bastante sobre o grau de sutileza ou de clareza que a proposta cristã deveria ter em seus textos (link para as cartas de Tolkien e para um texto sobre o tema). Tolkien
senhordoaneislivros
acreditava que se o leitor de Lewis percebesse que o leão das Crônicas remetia a Deus, por exemplo, no mesmo instante a magia da ficção se quebraria e o leitor perderia o interesse. Por isso, O Senhor dos Anéis é uma obra menos alegórica, pois, mais do que criar relações diretas entre a fantasia e a mitologia cristã, Tolkien pretende reconstruir a estrutura desta última para quiçá facilitar a apreensão desta por futuros fiéis. As duas sagas tornaram-se best-sellers mundiais.
Imagino que antes mesmo de falarmos de Alice no País das Maravilhas, talvez alguns leitores já estejam surpresos com a notícia de que O Senhor dos Anéis é considerado por alguns como um livro cristão. Cabe aqui, portanto, a seguinte pergunta: é possível definir esses livros como cristãos? Existe algo que se possa chamar de literatura cristã?

220px-AudenVanVechten1939Segundo o poeta W. H. Auden, se ignorarmos a intenção do autor, não há nada que sustente a existência dessa categoria literária. Cristão e homossexual nos anos 1930, Auden talvez tenha sido um dos crentes que mais sofreu com a batalha interior por integridade e coerência. Uma vez, em um ensaio para a revista americana The New Yorker, o crítico literário Adam Gopnik, afirmou que a temática de Auden pode ser resumida em uma frase: “a reconciliação da ideia cristã de que a salvação depende do amor universal indiscriminado”. Talvez o fato deva-se a essa constante busca por coerência, ou talvez apenas a uma sensibilidade interpretativa diferenciada, de qualquer forma, Auden foi ironicamente quem melhor soube explicar as pretensões cristãs de Lewis Carroll. Ironicamente, pois o poeta detestava escrever ensaios. Em seu livro A mão do artista, o escritor nos diz, sem meios termos, que faz crítica somente pelo dinheiro e lamenta não poder viver só de poesia. Ainda assim, escreveu observações fascinantes sobre literatura, duas das quais são fundamentais para entender a relação de Lewis Carroll com aquilo que se chama de literatura cristã.
A primeira, diz respeito a arte e cristianismo: “Não pode haver uma arte cristã, da mesma forma que não pode haver uma ciência cristã ou uma dieta cristã. Apenas pode haver um espírito cristão, segundo o qual um artista ou cientista age ou não.” A definição de literatura cristã, neste ponto, torna-se problemática. Para o poeta, esta não existe, haveria apenas uma motivação cristã que levaria o autor a escrever um livro ou poema. Assim, só a intenção ou a inspiração do autor poderiam ser definidas como cristãs, a arte não.
Não é difícil confirmar a tese de Auden. Basta aplicar sua definição aos clássicos As Crônicas de Nárnia e Senhor dos Anéis e observar que sem o conhecimento prévio das intenções de seus autores não encontramos nenhuma referência direta a Cristo. Desta forma, somente um estudo sobre a vida dos escritores poderia definir que essas obras são cristãs.
Neste ponto - e voltamos então ao intuito deste artigo – levanto a seguinte questão: por esse mesmo critério, não deveríamos considerar também o autor Lewis Carroll como um dos mais importantes escritores de ficção da tradição cristã?
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O livro Alice no País das Maravilhas, escrito por Lewis Carrol para sua sobrinha Alice, comemorou 150 anos em 2012 e já é consagrado como um clássico da literatura infanto-juvenil. Coberta de fantasia e de jogos lógicos, a ficção é conhecida por seu estilo fantasioso e considerada por muitos como uma obra-prima da literatura nonsense, característica que inspirou diversos artistas, como o pintor surrealista
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Salvador Dalí, que chegou a fazer diversos desenhos para ilustrá-la (como esta ao lado). Neste século e meio de leitura, porém, pouco se falou das pretensões cristãs do autor por trás deste estilo.

Lewis Carroll era um homem bastante religioso, chegou a estudar teologia e foi até pastor. Seu primeiro sermão, registrado por um dos fiéis em um diário de orações, é bastante revelador sobre o propósito moral de seus textos. Após chamar a atenção dos ouvintes para a pergunta de Jesus ao cego Bartimeu - “o que você quer que eu lhe faça?” -, Carroll propõe o seguinte questionamento: “Seríamos felizes no céu se fôssemos para lá com todos os nossos desejos malévolos? Se os desejos dos contos de fadas são sempre atendidos – beleza, riqueza, status – teria o cego sido feliz em um belo palácio, com lautas refeições, se continuasse cego?”. E finaliza dizendo que “duas coisas são necessárias para que sejamos purificados: a Sua Vontade e a nossa vontade. Ele está sempre pronto: podemos contar com Ele, mas também precisamos fazer a nossa parte…”

07_A_Lagarta_ilustracao_de_Sir_John_Tenniel_para_o_livro_Alice_no_Pais_das_Maravilhas_1865_07Carroll não tinha a ambição de escrever um best-seller ou de se tornar um grande escritor. Ainda assim, o conteúdo de seu livro não tem nada de despretensioso. Se, por um lado, o leitor de Alice (adulto ou criança) dificilmente encontrará uma “moral da história” ao final da leitura, como encontraria de forma mais evidente em uma fábula ou conto de fadas, por outro, deveria se questionar: será que isso não foi bem calculado pelo autor? A observação dos comentários e sermões de Carroll parecem indicar que essa aparente falta de uma “moral da história” em Alice no País das Maravilhas é exatamente o reflexo das pretensões evangelísticas do autor, um escritor cristão que buscava aproximar sua sobrinha (e todas as crianças) da moral do Evangelho como ele a entendia. Nesse sentido, é possível afirmar que a ruptura com a moral vigente em Alice, que resultou na exploração primorosa de seu estilo nonsense, se deve exatamente à busca do autor por uma moral cristã verdadeira, que ele acreditava estar sendo corrompida pelas histórias de nobreza, riqueza e beleza em sua época. Alice no País das Maravilhas é, portanto, um texto de inspiração cristã, porém de vanguarda, que rompeu com ideologia dominante de seu tempo precisamente porque buscou uma moral cristã.

lewis3Se a afirmação soa como estranha, o fato deve-se em grande parte de um preconceito que aceitamos, muitas vezes, sem perceber. Quando ouvimos que uma história possui uma moral, fazemos logo duas suposições. Primeira: trata-se da moral cristã. Segunda: deve ser um texto conservador. Nosso primeiro impulso, como brasileiros, é muitas vezes associar qualquer ideia de moral à um conceito vago de moral cristã. E nosso segundo erro costuma ser associar toda moral cristã a um pensamento político conservador. Desta forma, em um pré julgamento apressado consideramos que se algo é cristão, será conservador. Pois bem, os textos de Lewis Carroll são exemplos de como essa análise simplista pode ser equívoca.

Já a segunda observação de Auden é específica sobre a obra de Lewis Carroll e em uma só frase explica o alcance universal das histórias de Alice, que atrai tanto cristãos quanto não-cristãos: “No País das Maravilhas, Alice tem de se adaptar a uma vida sem leis; no País do Espelho, a uma vida governada por leis com as quais não está familiarizada.” As leis, aqui, são tanto as normas estabelecidas pelos humanos ou pela rainha de Copas quanto as leis físicas, que permitem que Alice encolha e passe por uma portinha de alguns centímetros, quase se afogando nas lágrimas que derramou quando era grande. Não é essa a nossa busca, tanto pela ciência quanto pela espiritualidade: entender as leis que regem nosso universo?

Será que as pretensões evangelizadoras dos autores foram alcançadas? Quando era ateu utilizava a frase de Dostoiévski de que “há no coração do homem um vazio do tamanho de Deus” para criticar cristãos, à la Marx e Feuerbach, e dizer que o homem projetava esse vazio para fora de si, construindo a imagem de Deus à semelhança de suas carências e ideais. Hoje acredito que esse vazio foi projetado para que o homem pudesse buscar a reconciliação com um Deus que quer se comunicar. Se as pretensões dos autores foram atingidas, literalmente para os crentes e ironicamente para os ateus, podemos afirmar que “só Deus sabe”. Mas, enquanto essa medida nos escapa, ficamos com a certeza de que o vazio, todos o carregamos. A pretensão da literatura é preenchê-lo, ainda que momentaneamente. Os métodos criam classificações e separações, literatura cristã e não-cristã, crentes e ateus, mas o vazio é o mesmo, a busca é uma só.

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