sábado, 15 de dezembro de 2012

Memórias de Tempos Que Nunca Vieram - parte primeira

. . Por Fábio Accardo, com 1 commentário




(parte primeira)

“Hegel observa em uma de suas obras 
que todos os fatos e personagens de grande importância
na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes.
E esquece-se de acrescentar: a primeira como tragédia,
a segunda como farsa”.
[Karl Marx. 18 Brumário de Luís Bonaparte.]


Era tempo de mudanças e todos pressentiam isso. Talvez porque as notícias não paravam de circular. Ou boatos, não sei. Mas pressentíamos. A vida escura estava prestes a clarear. Não que eu tivesse muitas reclamações a fazer. Na verdade não as tinha. Fui um dos poucos que conseguiu sobreviver por muito tempo por ali. E talvez esse seja o motivo de eu não reclamar mais. Porém, solidarizava com os mais jovens. Corajosos, dispostos à tudo. Bastava um passo fora e começavam as guerras. Eram tempos difíceis aqueles.

A vida era cinza. Tudo era cinza para nós. Acima de nós era cinza, e ainda por cima caiam coisas daquele lugar. Ficávamos sempre alerta. Muitos morriam esmagados. Nunca tive muita certeza, mas diziam que lá para cima é que a vida fervilhava. O tempo não parava. As pessoas não paravam. O mundo não parava naquele lugar. Lembro que apenas informações marginais chegavam a nós, e não sabíamos de onde vinham. Mas eram tão impossíveis as histórias de lá que até pareciam verdade. Eram? Pareciam? Imagino que sim.

Diziam que os homens eram fabricados em laboratório e produzidos por máquinas. Todos iguais. Iguaizinhos. Eu não podia acreditar. E o que era pior, ninguém mantinha relações com ninguém. No máximo formais e somente no limite de cada casta. Imagine você: ser criado em laboratório, condicionado por máquinas, limitado à sua casta e sem relações pessoais. Que merda de vida! Não que a nossa aqui embaixo fosse muito melhor, mas ainda a preferia. Não tínhamos quem nos mandasse nada. A lei do mais forte prevalecia, mas sozinho não se ia a lugar algum. Tribos, guerrilhas suburbanas, tudo em meio ao caos dos miseráveis.

Lá tudo era asseado. Limpo. Não se conhecia sujeira e notícias nossa, da nossa gente, não chegavam por lá. Quem apenas nos conhecia eram os praticantes da lei. Eram eles que nos atiravam sem perguntar, reprimiam por reprimir. Faziam isso por não terem mais o que fazer por lá. Seus serviços não eram mais necessários. Ficavam ociosos. Nos reprimiam para continuarmos com medo. Vivíamos desse modo: sob o domínio do medo. Mas lembro que eles tinham alguma outra função. Ah! Sim! Queimavam livros. Houve épocas onde chovia fogo por aqui, juntamente com nosso perene garoa diária. Eram livros que caiam do alto e por passarem pela chuva alguns chegavam quase inteiros. Tudo que nos era relegado conseguíamos dessa forma: do céu. E os livros foram sempre bem vindos. Faziam-nos sonhar, questionar, pensar. Mundos impossíveis, nova realidade, mudança. E só podíamos isso, pois éramos, de certa forma, livres para pensar.

O condicionamento humano a que eram submetidos todos de lá, tornava-os reclusos a suas tarefas diárias e nada mais. O condicionamento levava as pessoas a serem felizes no que eram delimitados a fazer, sem a menor possibilidade de pensar sobre isso. Questionar. Bem, isso era impossível, pois não tinham conhecimento sobre outra forma de vida. Suas formas de interação social – na verdade midiática – só serviam para reforçar sua consciência de casta. Ainda existiam os tais comprimidos amarelos, serviam para os momentos mais sombrios da mente e os deixavam mais normais.

Por menos que eu conhecesse tudo isso, não me animava a ideias desse controle das pessoas. Contudo, já estava passando da idade e me acostumava com tal fato. Mas éramos poucos nessa situação. Os jovens, leitores assíduos dos livros reles queimados, começaram a se questionar sobre toda a situação: a vida que levávamos, a condição de vida dos de cima, e essa divisão entre eles e nós, os de cima e os de baixo. Acharam que nada estava certo. Alguma coisa devia mudar.


(continua)

1 palpites:

onde vivem essas maravilhosas criaturas??


peixe

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