"Sonhar é acordar-se para dentro."
(Mário Quintana)
Vi Nelson
Mandela novamente, mas dessa vez foi muito rápido, mal pude
desfrutar a presença dele e de sua esposa, foi apenas de passagem.
O sol já havia cruzado metade de um céu aberto, a luz intensa
cansava a vista, deixava o corpo devagar e as sombras mal cresciam
para o outro lado de qualquer objeto anunciando a tarde. Meus olhos, há dias, eram como que puxados à minha frente, sufocados em qualquer lugar. Eu ia ao
encontro de Bruno, amigo que viveu em Paris e com quem passei alguns dias em Buenos Aires, tempos
atrás.
Pela rua,
antes de chegar numa esquina, percebi que dois homens carregavam
pelos braços e pelas pernas um outro sujeito, alguns metros adiante. Imaginei um acidente, um mal súbito, nada demais, mas não,
o sujeito carregado morria. Largado entre a rua e o canteiro, aquele
homem tinha os olhos revirados, mãos, braços, pernas e pés contorcidos, girando
a cabeça ao redor da boca entre-aberta. Os outros dois homens
gritavam “tá morrendo, tá morrendo”, pediam ajuda, que ligassem
para uma ambulância, o sujeito precisava ser socorrido, oras. Não me
perguntei se era possível driblar o inadiável, não pensei nada,
não reagi, não me mexi. Já havia visto mortos, jamais alguém
morrendo. “Morreu, morreu”, foi o que guardei do grito quando o
corpo do sujeito parou de pulsar e o pescoço decaiu. Sobre o corpo,
então, a perna de um velho se estendeu, e assim que os
joelhos senis bateram o chão, as mãos enrugadas e juntas golpearam
veloz e insistentemente o peito do moribundo. Um, dois, três,
quatro, cinco, seis, sete, e os olhos do sujeito se abriram de
novo. Fui embora.
Encontrei Bruno em seguida, ele biografou o músico Johnny Carter, saxofonista, virtuoso homem do
jazz que inventava um novo tempo em suas apresentações, como quem,
ao mesmo tempo, desdenhava do tempo daqueles que lhe assistiam.
Bruno se lembrava de algumas palavras de Johnny:
“Nunca
he pensado en nada, solamente de golpe me doy cuenta de lo que he
pensado, pero eso no tiene gracia, verdad? Qué gracia va a tener
darse cuenta de que uno ha pensado algo? Para el caso es lo mismo que
si pensaras tú o cualquier outro. No soy yo, yo. Simplemente saco
provecho de lo que pienso, pero simpre después, y eso es lo que no
aguanto. Ah, es difícil, es tan difícil... (…) Es fácil de
explicar, sabes, pero es fácil porque en realidad no es la verdadera
explicación. La verdadera explicación sencillamente no se puede
explicar. (…) No era pensar, me parece que ya te he dicho muchas
veces que yo no pienso nunca; estoy como parado em una esquina viendo
pasar lo que pienso, pero no pienso lo que veo.”
Bruno me
confessava, com isso, a profunda e ressentida inveja que tinha de
Johnny. Johnny zombava de toda a fraqueza transbordante de Bruno. Johnny
sorria, simplesmente, debochava de qualquer um. Mais, Johnny debocha de si
mesmo, nada lhe importava, a não ser sua própria alegria, uma
felicidade estúpida como a de quem está prestes a desaparecer,
irresponsável. Porém, Bruno ponderava:
“Envidio
todo menos su dolor, cosa que nadie dejará de comprender, pero aun
en su dolor tiene que haber atisbos de algo que me es negado. Envidio
a Johnny y al mismo tiempo me da rabia que se esté destruyendo por
el mal empleo de sus dones, por la estúpida acumulación de
insensatez que requiere su presión de vida. (...) Y todo eso lo
sostengo desde mi cobardía personal, y quizá en el fondo quisiera
que Johnny acabara de una vez, como una estrella que se rompe en mil
pedazos y deja idiotas a los astrónomos durante una semana, y
después uno se va a dormir y mañana es otro día.”
Era isso,
eu dizia a Bruno, era justamente esse o sentimento que gostaria de
desfrutar, essa intensidade, tal como Johnny nos apresentava, mas sem o medo que eu sentia. Porque eu tremia, minha palavras vacilavam ao imaginar
que poderia apenas cruzar rapidamente com Madiba, como quem dá um bom dia, um oi, tudo bem pelo caminho e segue indiferente. Bruno
rebatia, sorria, ele dizia que eu não passava de
um idealista, iludindo a mim mesmo, preso a delírios
adolescentes. Eu, que vira Madiba algumas vezes antes de o conhecer de
fato naquele almoço, insistia com Bruno, lhe dizia que não. Eu
confessava, havia sentido Madiba, percebido seu abraço, aquela presença, inclusive o perfume que vinha de Madiba. Nada era igual,
nada pode ser igual, eu repetia a Bruno, que sorria largamente.
Eu rejeitava o pensamento de que não mais pudesse ver Madiba, ou de que não mais pudesse estar em sua presença como quem contempla um Miró ou o rabisco entre azulejos na parede da cozinha, como quem esquece o que procurava e se deixa escolher sabores de suco instantâneo na prateleira do supermercado. Dizia isso a Bruno naquela tarde, contando a cena que me ocorrera pouco antes, a caminho de seu encontro. Talvez não houvesse outra oportunidade de estar com Madiba, eu dizia a um Bruno impassível. Me angustiava imaginar que não conseguisse sequer admirar aquele sorriso de Madiba e sua gentileza diante das coisas, de uma vida compartilhada com a senhora sua esposa, entre gestos e olhares que revelavam personagens dele, de palavras firmes, procedimentos duros e cândidos como somente os idiotas podem ser. Madiba era um idiota, eu também sou um idiota, eu dizia, e por fim Bruno reagiu sorrindo um sorriso de deboche que eu não conhecia nele. Bruno delirava, e eu já não o suportava depois daqueles minutos
de uma tarde quente. Voltamos a Johnny, nas palavras de seu biógrafo:
“Pero
no voy a eso, lo que quería explicarme a mí mismo es que la
distancia que va de Johnny a nosotros no tiene explicación, no se
funda en diferencias explicables. Y me parece que él es el primero
en pagar las consecuencias de eso, que lo afecta tanto como a
nosotros. (...) a reconocer que quizá lo que
pasa es que Johnny es un hombre entre los ángeles, una realidad
entre las irrealidades que somos todos nosotros. Y a lo mejor es por
eso que Johnny me toca la cara con los dedos y me hace sentir tan
infeliz, tan transparente, tan poca cosa con mi buena salud, mi casa,
mi mujer, mi prestigio. Mi prestigio, sobre todo. Sobre todo mi
prestigio.”
Eu sequer
havia ouvido falar do músico, tampouco conhecia as canções, o jazz
de Johnny Carter, no entanto, diante das palavras daquele meu velho
amigo, de um Bruno fora de si, eu não sabia o que dizer, desejava
defender Johnny de tamanha crueldade:
“Nadie
puede ser más vulgar, más común, más atado a las circunstancias
de una pobre vida; accesible por todos lados, aparentemente. No es
ninguna excepción, aparentemente. Cualquiera puede ser como Johnny,
siempre que acepte ser un pobre diablo enfermo y vicioso y sin
voluntad y lleno de poesía y de talento. Aparentemente. Yo que me he
pasado la vida admirando a los genios, a los Picasso, a los Einstein,
a toda la santa lista que cualquiera puede fabricar en un minuto (y
Gandhi, y Chaplin, y Stravinsky), estoy dispuesto como cualquiera a
admitir que esos fenómenos andan pos las nubes, y que con ellos no
hay que extrañarse de nada. Son diferentes, no hay vuelta que darle.
En cambio la diferencia de Johnny es secreta, irritante por lo
misteriosa, porque no tiene ninguna explicación. Johnny no es un
genio, no ha descubierto nada, hace jazz como varios miles de negros
y de blancos, y aunque lo hace mejor que todos ellos, hay que
reconocer que eso depende un poco de los gustos del público, de las
modas, del tiempo, en suma.”
Me
desesperei diante dessas palavras de um Bruno desprezível, soberbo como o são as minhocas, não pude suportar. Nunca havia
visto um homem morrer, já havia visto homens mortos, naquela tarde quente, quando meus olhos me espremiam, matei Bruno.
*Bruno
é narrador e personagem de El perseguidor, de Júlio Cortázar.
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