“Rejeite, porém, as fábulas profanas de velhas e exercite-se na piedade”.
1 Timóteo 4:7
Além de terem sido adaptados para os cinemas e terem feito sucesso nas telas nos últimos anos, os livros As Crônicas de Nárnia, O Senhor dos Anéis e Alice no País das Maravilhas possuem outra semelhança menos conhecida: todos são livros de ficção com pretensões cristãs. Mas será que podem ser chamados de literatura cristã?
Dos três livros citados, o pano de fundo religioso de As Crônicas de Nárnia, conjunto de livros de ficção escritos por C. S. Lewis talvez seja o mais conhecido. Nessa obra C. S. Lewis, “o mais relutante dos convertidos” (como ele define a si mesmo em um de seus livros mais autobiográficos) inventa um mundo fantástico com o objetivo de recriar padrões da mitologia cristã. Além das Crônicas, os programas de rádio de Lewis durante a primeira Guerra Mundial e a posterior compilação desses textos no livro Cristianismo Puro e Simples, fizeram do autor um dos mais influentes escritores cristãos de ficção e de não ficção de seu tempo.
A trilogia O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien, mais sutil em suas referências cristãs, também carrega uma legião de fãs, muitos dos quais nunca souberam dos objetivos de seu autor. Tolkien e C. S. Lewis eram amigos próximos e chegaram a discutir bastante sobre o grau de sutileza ou de clareza que a proposta cristã deveria ter em seus textos (link para as cartas de Tolkien e para um texto sobre o tema). Tolkien
acreditava que se o leitor de Lewis percebesse que o leão das Crônicas remetia a Deus, por exemplo, no mesmo instante a magia da ficção se quebraria e o leitor perderia o interesse. Por isso, O Senhor dos Anéis é uma obra menos alegórica, pois, mais do que criar relações diretas entre a fantasia e a mitologia cristã, Tolkien pretende reconstruir a estrutura desta última para quiçá facilitar a apreensão desta por futuros fiéis. As duas sagas tornaram-se best-sellers mundiais.
Imagino que antes mesmo de falarmos de Alice no País das Maravilhas, talvez alguns leitores já estejam surpresos com a notícia de que O Senhor dos Anéis é considerado por alguns como um livro cristão. Cabe aqui, portanto, a seguinte pergunta: é possível definir esses livros como cristãos? Existe algo que se possa chamar de literatura cristã?
Segundo o poeta W. H. Auden, se ignorarmos a intenção do autor, não há nada que sustente a existência dessa categoria literária. Cristão e homossexual nos anos 1930, Auden talvez tenha sido um dos crentes que mais sofreu com a batalha interior por integridade e coerência. Uma vez, em um ensaio para a revista americana The New Yorker, o crítico literário Adam Gopnik, afirmou que a temática de Auden pode ser resumida em uma frase: “a reconciliação da ideia cristã de que a salvação depende do amor universal indiscriminado”. Talvez o fato deva-se a essa constante busca por coerência, ou talvez apenas a uma sensibilidade interpretativa diferenciada, de qualquer forma, Auden foi ironicamente quem melhor soube explicar as pretensões cristãs de Lewis Carroll. Ironicamente, pois o poeta detestava escrever ensaios. Em seu livro A mão do artista, o escritor nos diz, sem meios termos, que faz crítica somente pelo dinheiro e lamenta não poder viver só de poesia. Ainda assim, escreveu observações fascinantes sobre literatura, duas das quais são fundamentais para entender a relação de Lewis Carroll com aquilo que se chama de literatura cristã.
A primeira, diz respeito a arte e cristianismo: “Não pode haver uma arte cristã, da mesma forma que não pode haver uma ciência cristã ou uma dieta cristã. Apenas pode haver um espírito cristão, segundo o qual um artista ou cientista age ou não.” A definição de literatura cristã, neste ponto, torna-se problemática. Para o poeta, esta não existe, haveria apenas uma motivação cristã que levaria o autor a escrever um livro ou poema. Assim, só a intenção ou a inspiração do autor poderiam ser definidas como cristãs, a arte não.
Não é difícil confirmar a tese de Auden. Basta aplicar sua definição aos clássicos As Crônicas de Nárnia e Senhor dos Anéis e observar que sem o conhecimento prévio das intenções de seus autores não encontramos nenhuma referência direta a Cristo. Desta forma, somente um estudo sobre a vida dos escritores poderia definir que essas obras são cristãs.
Neste ponto - e voltamos então ao intuito deste artigo – levanto a seguinte questão: por esse mesmo critério, não deveríamos considerar também o autor Lewis Carroll como um dos mais importantes escritores de ficção da tradição cristã?
O livro Alice no País das Maravilhas, escrito por Lewis Carrol para sua sobrinha Alice, comemorou 150 anos em 2012 e já é consagrado como um clássico da literatura infanto-juvenil. Coberta de fantasia e de jogos lógicos, a ficção é conhecida por seu estilo fantasioso e considerada por muitos como uma obra-prima da literatura nonsense, característica que inspirou diversos artistas, como o pintor surrealista
Salvador Dalí, que chegou a fazer diversos desenhos para ilustrá-la (como esta ao lado). Neste século e meio de leitura, porém, pouco se falou das pretensões cristãs do autor por trás deste estilo.
Lewis Carroll era um homem bastante religioso, chegou a estudar teologia e foi até pastor. Seu primeiro sermão, registrado por um dos fiéis em um diário de orações, é bastante revelador sobre o propósito moral de seus textos. Após chamar a atenção dos ouvintes para a pergunta de Jesus ao cego Bartimeu - “o que você quer que eu lhe faça?” -, Carroll propõe o seguinte questionamento: “Seríamos felizes no céu se fôssemos para lá com todos os nossos desejos malévolos? Se os desejos dos contos de fadas são sempre atendidos – beleza, riqueza, status – teria o cego sido feliz em um belo palácio, com lautas refeições, se continuasse cego?”. E finaliza dizendo que “duas coisas são necessárias para que sejamos purificados: a Sua Vontade e a nossa vontade. Ele está sempre pronto: podemos contar com Ele, mas também precisamos fazer a nossa parte…”
Carroll não tinha a ambição de escrever um best-seller ou de se tornar um grande escritor. Ainda assim, o conteúdo de seu livro não tem nada de despretensioso. Se, por um lado, o leitor de Alice (adulto ou criança) dificilmente encontrará uma “moral da história” ao final da leitura, como encontraria de forma mais evidente em uma fábula ou conto de fadas, por outro, deveria se questionar: será que isso não foi bem calculado pelo autor? A observação dos comentários e sermões de Carroll parecem indicar que essa aparente falta de uma “moral da história” em Alice no País das Maravilhas é exatamente o reflexo das pretensões evangelísticas do autor, um escritor cristão que buscava aproximar sua sobrinha (e todas as crianças) da moral do Evangelho como ele a entendia. Nesse sentido, é possível afirmar que a ruptura com a moral vigente em Alice, que resultou na exploração primorosa de seu estilo nonsense, se deve exatamente à busca do autor por uma moral cristã verdadeira, que ele acreditava estar sendo corrompida pelas histórias de nobreza, riqueza e beleza em sua época. Alice no País das Maravilhas é, portanto, um texto de inspiração cristã, porém de vanguarda, que rompeu com ideologia dominante de seu tempo precisamente porque buscou uma moral cristã.
Se a afirmação soa como estranha, o fato deve-se em grande parte de um preconceito que aceitamos, muitas vezes, sem perceber. Quando ouvimos que uma história possui uma moral, fazemos logo duas suposições. Primeira: trata-se da moral cristã. Segunda: deve ser um texto conservador. Nosso primeiro impulso, como brasileiros, é muitas vezes associar qualquer ideia de moral à um conceito vago de moral cristã. E nosso segundo erro costuma ser associar toda moral cristã a um pensamento político conservador. Desta forma, em um pré julgamento apressado consideramos que se algo é cristão, será conservador. Pois bem, os textos de Lewis Carroll são exemplos de como essa análise simplista pode ser equívoca.
Já a segunda observação de Auden é específica sobre a obra de Lewis Carroll e em uma só frase explica o alcance universal das histórias de Alice, que atrai tanto cristãos quanto não-cristãos: “No País das Maravilhas, Alice tem de se adaptar a uma vida sem leis; no País do Espelho, a uma vida governada por leis com as quais não está familiarizada.” As leis, aqui, são tanto as normas estabelecidas pelos humanos ou pela rainha de Copas quanto as leis físicas, que permitem que Alice encolha e passe por uma portinha de alguns centímetros, quase se afogando nas lágrimas que derramou quando era grande. Não é essa a nossa busca, tanto pela ciência quanto pela espiritualidade: entender as leis que regem nosso universo?
Será que as pretensões evangelizadoras dos autores foram alcançadas? Quando era ateu utilizava a frase de Dostoiévski de que “há no coração do homem um vazio do tamanho de Deus” para criticar cristãos, à la Marx e Feuerbach, e dizer que o homem projetava esse vazio para fora de si, construindo a imagem de Deus à semelhança de suas carências e ideais. Hoje acredito que esse vazio foi projetado para que o homem pudesse buscar a reconciliação com um Deus que quer se comunicar. Se as pretensões dos autores foram atingidas, literalmente para os crentes e ironicamente para os ateus, podemos afirmar que “só Deus sabe”. Mas, enquanto essa medida nos escapa, ficamos com a certeza de que o vazio, todos o carregamos. A pretensão da literatura é preenchê-lo, ainda que momentaneamente. Os métodos criam classificações e separações, literatura cristã e não-cristã, crentes e ateus, mas o vazio é o mesmo, a busca é uma só.
3 palpites:
Caio, esse últiimo parágrafo me deixou arrepiado, hahaha...
Muito bacana a sua análise. Confesso que, apesar de nunca ter lido Carrol, nunca tinha visto nenhum comentário a respeito deste posível caráter religioso. Interessante pensar, não para cair num simplismo comum aos circulos de leitores que polarizam a discussão entre o que é cristão e o que não é, mas principalmente de se permitir a referência a uma determinada moral, fundamentada numa idéia religiosa que, independente do tempo e das distorções que a mesma sofreu ao longo da história, continua a falar à humanidade, e nos trazer ensinamentos fundamentais.
Muito libertadora também a reflexão, tanto para nossa apreciação das obras, buscando nelas um sentido que escapa às classificações, quanto para a produção artística, que sempre surge como uma possibilidade de romper.
Caio, fiquei pensando num quadro-imagem do René Magritte que leva o "Ceci n'est pas une pipe", apontando para o lance da representação ser uma coisa específica, cujos sentidos e desdobramentos são vários, mas sem ser "a coisa em si", sei lá, como se não suprisse aquilo que representa, e ao mesmo tempo, cria outras possibilidades de olhar, de mundo, aberturas. Enfim, imaginando que representação literária, textual, artística, não é, seja lá o que quer se representar, não é, é uma representação tao somente, o teu texto me levou a um comentário que acho que é só pra tentar te elogiar.
Primeiro porque a frase do Auden sobre a intenção é bem curiosa. Se restringimos o universo da arte para a literatura cristã, o lance da intenção, pra mim, fica menos incômodo, pois leio intenção como "pra quê e pra quem" de muitas pessoas, como se a arte pudesse ser útil, e acho que isso é muito complicado. Especialmente porque, com tudo isso, o lance da representação deixa de ser referente a qualquer coisa que seja, em gama de possibilidades, mas aponta para algo que pode vir a ser - como se se pudesse controlar os sentidos e mesmo o futuro - ou o que se espera que seja, mesmo metafisicamente, no caso do cristianismo, da conversão, da comunicação desse sentido religioso. E como você mesmo aponta, no caso do Tolkein e do Carroll, não fossem suas biografias, as obras não dizem isso, da intenção, objetivo, destino, etc. Isso é fantástico. Porque, caso do Carroll ainda mais, tudo isso foi dito posteriormente, acho que ele não se disse "útil ou de vanguarda", e isso adquiriu a plasticidade de quem muito depois procurou sentidos em algo aparentemente nonsense.
Costumo ler "moralismo" como "deve/tem que ser", no sentido totalizante da coisa mesmo, e isso vai para conservador, progressista, direita, esquerda, enfim, todos nós somos seres de alguma moral, mas só alguns (ou muitos) são moralistas no sentido de que "todos devem/tem que ser" do jeito que acreditam ou esperam que sejam, se comportem e se relacionem, e aí aparecem encrencas, autoritarismos e totalitarismos. A tua pergunta, nesse sentido, é resumidora da ópera: entender as leis que regem o nosso universo. Nisto já existem intenções, sentidos, desdobramentos, efeitos, comunicação, criações, pois os universos são muitos, bem como suas leis.
Então, grosseiramente, na minha cabeça, os artistas deixam o universo do "moralismo", e quem assume isso são (nós) os críticos em suas análises.
Pois é, esse finalzinho do último parágrafo é demais mesmo, as duas últimas frases estão, digamos, lapidares!
Abraço
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