VÍDEO: MURILO CAMPANHA CONTA ITATINGA

O psicanalista Murilo Campanha fala sobre Itatinga, um dos maiores bairros de prostituição da América Latina, onde ele tem seu consultório.

O nadador

Uma crônica de Hugo Ciavatta.

Ainda que as bolachas falassem

Crônica de Fábio Accardo sobre infância e imaginação

Ousemos tocar estrelas

Uma reflexão de Thiago Aoki.

Entre o amarelo e o vermelho

Uma crônica de Hugo Ciavatta

O homem cordial vinhedense

A classe média vai ao barbeiro. Uma crônica de Caio Moretto.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Coluna do Leitor - O cocô do astronauta i otros causo

. . Por Mistura Indigesta, com 8 comentários

Um filósofo certa vez disse – e se não disse, deveria ter dito – que, no fundo, as únicas perguntas realmente importantes são aquelas que podem ser formuladas por uma criança. Esta pequena crônica é sobre a simplicidade das crianças e sua infinita capacidade de nos surpreender com ela. Prometo me esforçar – mas não muito, afinal, devemos evitar a fadiga! (*ver notas no fim do texto) – para desviar do assunto principal somente o necessário – o que quer que faça do necessário, necessariamente, o necessário.


Neste semestre, em que minha filha mais velha se encantou com os dinossauros; com o Justin Bieber [nem tudo sai como o planejado, nesta vida de meudeus!]; e com os astronautas, calhou de eu ser apresentado na condição de aluno à excepcional figura do Professor Laymert (**) em seu pouco óbvio curso sobre
amor-ódio-tecnologia-dominação-capitalismo-política-economia-guerra-greve-crise-universidade-ciências-sociais-e-tudo-o-que-mais-aparecer-pela-frente [afinal, como diria o centro-avante: pipocar, jamais!]. Não pude resistir a contar pra ela que às quartas pela manhã o papai ia pra escola pra estudar sobre os astronautas. Tento – sempre que minha torta moral cristã assim mo permite – mentir pra minha filha dizendo que é possível estudar coisas legais e de um jeito legal na escola, esperando que ela sofra as desilusões dela por ela mesma, ou, tanto melhor, que encontre professores doidos e criativos o suficiente para subverter a chatice institucionalizada em forma de (manicômio?) escola (***).
Estava menos ou mais preparado para explicar pra ela sobre a corrida armamentista e a Guerra Fria; os porquês e os comos da exploração espacial; sobre as conseqüências psicossociais do confinamento dos astronautas na estação espacial; sobre a metáfora consubstanciada na figura do herói no imaginário social do século XX; ou sobre os limites e as possibilidades de subversão do uso da tecnologia espacial no contexto pós-contemporâneo universal; e sobre mais um monte de perguntas com as quais eu me acostumei a fazer/responder [mais responder que fazer] aqui nesta dita Academia [a escola do papai]. Grande coisa. Eu não estava preparado para responder à única pergunta que ela queria que eu – pai, oráculo, especialista – respondesse:

– Papai, como os astronautas fazem xixi e cocô?


Tenho que confessar (****): a pergunta, de tão simples, não tinha nem passado pela minha cabeça. E olha que não foi por falta de aviso. Dentre as infindáveis possibilidades reflexivas que partem dos pouco ortodoxos vídeos escolhidos pelo Professor Laymert para nos provocar, esta certamente estava ali, tão óbvia que sequer pudemos conversar sobre ela. Estavam ali os astronautas – ou cosmonautas, dependendo de quem os mandou pra lá – brincando com as gotinhas de Coca-Cola; com aquelas pseudo-comidas pastosas; com os cabelos recém-cortados a pairar no ar indiferentes às leis e às forças da gravidade (*****). O que chamou a nossa atenção foram as complexas questões da filosofia aliada às condições de gravação e edição de imagens em contextos de dificuldades exageradas.
É claro que eu falei pra ela que eu não sabia como os astronautas faziam xixi e cocô, mas que ia pesquisar e depois contava (******). É mais claro ainda que eu – postergador profissional que o sou – adiei isso um monte – um pouco pra criar nela a expectativa e um muito porque esquecia e/ou tinha preguiça. O que tudo isso me fez pensar e alterou profundamente o modo como voltei para os vídeos do Faroqui exibidos pelo Professor Laymert é que, no espaço, como aqui na Terra, os grandes problemas não são os que exigem as mais complexas tecnologias e os maiores investimentos, mas os problemas mais simples, mais cotidianos, os problemas que as crianças são perfeitamente capazes de formular: O que comer? O que beber? O que vestir? Como amarrar o tênis? Como fazer xixi e cocô? Tem algo babando embaixo da cama?
Depois, eu fiz a pesquisa e até contei pra ela. Não me surpreendi que ela achou a resposta meio brochante e não entendeu direito o que era gravidade, e – muito menos – porque os astronautas têm que fazer xixi e cocô numa mangueirinha que puxa o xixi e o cocô pra dentro de uma cápsula [ela adorou essa palavra] que eles guardam para trazer de volta pro planeta Terra quando voltam. Ficou revoltada quando eu disse que, às vezes, se a volta demorar demais, eles têm que jogar essa cápsula no espaço [– Que porcalhice!] e que ela é atraída pela órbita da Terra e explode que nem estrela cadente.


– Estrela cadente de cocô (*******)??

Essa história de cocô de astronauta me fez lembrar daquele causo – pra mim, o melhor causo de astronauta de todos os tempos – de que ao constatar a impossibilidade das canetas usuais escreverem na ausência de forças de gravidade, os estadunidenses gastaram milhões de dólares para desenvolver uma que escrevesse no espaço, debaixo d’água, no meio de um furacão ou de uma erupção vulcânica. Já os russos, conta o causo, usaram lápis.
A mim, pouco me importa se o causo é verdadeiro ou não. Estou nessa [e em muitas outras] com Adoniran Barbosa, que se inventou uma pá de veiz: – Se o meu inventado for melhor que sua história, eu fico com o meu inventado e você que fique com a sua história.
Mas confesso que, ingenuamente, como se ainda fosse uma criança – quem me dera! –, fiquei pensando... Bem que eu gostaria que toda a merda feita pelos homens e pelas mulheres pudesse ser mandada pro espaço. E melhor ainda se virasse estrela cadente.
Qual foi o seu pedido, meu amor? (********)
____

Notas
* Neste texto, astericos são notas de rodapé, portanto, são fundamentais à leitura, volte sempre aqui.
** Por favor, senhor editor, não cometa o despropósito de inserir aqui um linque para (a capivara virtual?) o lattes do Professor Laymert. Se for necessário para atender às linhas editoriais da sua (Feitoria?) Editoria, escolha algum “lugar” menos deselegante.
*** Jornal do CAECO (Centro Acadêmico de Economia), IE (Instituto de Economia), UNICAMP.
**** Com efeito, não tenho. A folha está em branco e eu poderia digitar o que quisesse, mas adoro essa técnica literária de demonstrar fraqueza ante @ leitor@. De algum modo el@ gosta de ver a fragilidade do escritor e a sua submissão @(o) leitor@, que pensa que é muito mais importante que o escritor. Aliás, é mesmo. [Viu como funciona?] Se você ainda se lembrar do que trata o texto, tiro pra você o meu chapéu e o convido a voltar à leitura no ponto por mim interrompido para essa gostosa [para mim] e completamente desnecessária digressão ao final da qual fica demontrado que, por mais importante que o leitor seja, qualquer escritorzinho de meia tigela é capaz de manipulá-lo, forçando-o a segui-lo ou a abandonar o texto imediatamente. O que, definitivamente, quero que você não faça e, portanto, volto ao texto e você volta junto comigo.
***** Curioso como longe da gravidade [nota para a ironia!] a primeira reação de todo mundo parece ser o sorriso. Ou é isso o que nos fazem acreditar os editores de imagens de astronautas, não sei dizer.
****** Recurso mais ou menos (picareta?) verdadeiro que todo professor de crianças precisa aprender a utilizar muito rapidamente para sobreviver numa sala de aula em que a um clique se pode saber o nome do pai de Tutankamón ou com quantos paus se faz uma canoa. Apesar de que ainda hoje me pergunto sem saber a resposta se, neste sentido, o professor não se tornou, de fato, um artigo mais obsoleto que o giz sobre o quadro negro.
[ps: quando criança, nunca entendi porque chamavam lousa verde de quadro negro e até hoje ainda não sei, mas parei de me perguntar. Me venceram. E eu nem sequer sei quem eles são. Mas sei – se é que serve de consolo – que “eles”, nessa oração, são um sujeito muito indeterminado.]
******* Aliás, minha filha mais nova achou essa coisa de estrela cadente de cocô de astronauta muito engraçada e até hoje me pede para contar essa história pra elas e quase morre de rir, mesmo depois de eu ter contado cerca de 1039 vezes exatamente a mesma história, como, aliás, elas exigem. Jamais tente mudar uma história contada pra uma criança. Ela quer ouvir exatamente do mesmo jeito que você contou da outra vez, o que faz com que seja praticamente impossível inventar de cabeça – por que depois não dá pra lembrar di-rei-ti-nho – e constitui a principal razão de ser de livrinhos de historinha e da permanência em nosso imaginário de histórias ancestrais como a chapeuzinho vermelho e a branca de neve e os sete anões – que nem são tão boas assim, vai...
******** Se o leitor habituado a frequentar esse blogue pensar que o final foi feito pelo Hugo Tia Vatta, saiba que não foi. Mas fica a ele por mim dedicado. Na minha opinião, orna com o seu modo todo meigo de escrevinhar quando não fica com chatices antropologéticas.

Thiago Fernandes Franco é recém ingressante no doutorado em História Econômica, no IE/ UNICAMP, mas hoje é só o "papai Peixe".

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Selo Pinochet de Direitos Humanos 2011

. . Por Caio Moretto, com 5 comentários

selo_pinochet3 Trabalhei algum tempo como redator publicitário. Durante a crise de consciência que começou a me afastar deste ofício, um amigo, na tentativa de me convencer a continuar na área, acabou me dando o empurrão final que eu precisava para sair. Na época estávamos fazendo a propaganda de um selo ambiental para uma companhia de papel, que carinhosamente apelidei de Selo Pinochet de Direitos Humanos. Tentando aliviar minha consciência ele me disse: “Armas não matam pessoas, pessoas matam pessoas.”
procusto Existe uma figura da mitologia grega que se repete em algumas outras mitologias. Não sei a explicação. Trata-se do sádico Procrusto. Gentil, ele recebia os estrangeiros em sua casa. Se o hóspede fosse menor do que a cama oferecida, ele o esticava até ocupar todo o espaço. Caso fosse maior do que o leito, toda parte do corpo que ficasse para fora era amputada. Reza a lenda (e a wikipedia) que alguns habitantes de Sodoma e Gomorra utilizavam esse método de tortura com forasteiros. Novamente, não sei o que é verdade. A parte mais cruel, porém, é que Procusto tinha duas camas, de tamanhos diferentes.
Nós não somos muito diferentes. Quando convém, subordinamos o problema moral e individual ao coletivo ou ao próximo e nos acomodamos no fatalismo de suas determinações: “sou assim porque não tive educação”, “meus pais não me deixavam fazer nada/ não impuseram limites”, “é o sistema” ou ainda outra que costuma passar desapercebida “se eu não fizer este trabalho outro fará em meu lugar”. Porém, quando não convém, ignoramos toda forma de determinação e culpamos os erros individuais: “o problema não é a forma de governo, é o governante corrupto”, “não é a polícia, é o policial que abusa do poder” ou “só pessoas matam pessoas”. E assim vamos fazendo nossa sociologia desregrada, alternando culpados para não mudar nada e continuar com nossa consciência tranquila ou  para arranjar bodes expiatórios, executá-los secretamente num porão, no deserto ou no oceano e seguirmos com nossas vidas.
Não há, porém, nenhum determinismo no mundo que anule uma intenção. Marketing é maquiagem: você pode usar para esconder os defeitos ou para realçar as qualidades. Mas neutro não pode ser. Marketing toma partido por princípio. Tem sempre uma intenção. Essa é a própria ideia do marketing. As empresas que mais poluem são as que mais investem em programas (e em publicidade) de responsabilidade ambiental. Isso para não falar em responsabilidade social e escravidão moderna.
Por isso fiquei em alerta quando vi a seguinte notícia: Estigmatizada, PM paulista quer investir em Direitos Humanos. Nos dias seguintes vi uma imagem, duas notícias e um pm_spray_criancarelato chocante sobre a polícias paulista, carioca e americanas. A imagem é esta ao lado. As medidas já foram tomadas e o capitão da PM Bruno Schorcht, que disparou o spray na criança foi promovido! Nos EUA circula um vídeo semelhante, do policial John Pike esvaziando seu spray de pimenta em manifestantes sentados e pacíficos no campus da UC Davis, na Califórnia. O relato é o espancamento do antropólogo Danilo Paiva Ramos por um PM na Avenida Paulista. E as notícias foram, primeiro, a doação de US$ 4,6 milhões feitas pelo banco JP Morgan Chase à polícia de Nova York, a maior já feita à fundação em sua história. A nota foi publicada no site do banco sem grandes preocupações. Nos dias seguinte mais de 700 manifestantes do movimento Occupy Wall Street foram presos nas cercanias do banco. Por fim, li com desgosto a nomeação do tenente-coronel Salvador Modesto Madia, co-executor do massacre do Carandirú, ao comando da Rota.
Portanto, é com muita insatisfação que entrego este Selo Pinochet de Direitos Humanos à Policia Militar, seus representantes Bruno Schorcht, Salvador Modesto Madia e John Pike, aos bancos e instituições que desinteressadamente investem na militarização da polícia e do exército e à todos nós que continuamos acreditando que o preço da liberdade é a eterna e militarizada vigilância.
A minha alma tá armada e apontada para cara do sossego
Paz sem voz, não é paz, é medo
As vezes eu falo com a vida, as vezes é ela quem diz:
"Qual a paz que eu não quero conservar, prá tentar ser feliz?"

domingo, 4 de dezembro de 2011

Dia do Doutor

. . Por Unknown, com 2 comentários

(" 'É gozado', refleti, 'ver o que nós pensávamos há cinco anos'.
'Concordamos (...) que o objetivo da vida
é formar boas pessoas e produzir bons livros'. (...) 'Um bom homem
deve ser ao menos honesto, apaixonado
e desinteresseiro'." V. Woolf)


Passei boa parte da infância e da adolescência indo a um estádio de futebol. Não ia à escolinha, não treinava, mas acompanhava meu tio e meus primos ao Santa Cruz, estádio do Botafogo Futebol Clube, de Ribeirão Preto. Ali nasceu a minha paixão pelo futebol, e não que eu não torcesse nem acompanhasse antes, o São Paulo era o meu clube até então, mas ir ao estádio rotineiramente me encantou. Eram jogos da segunda, até da terceira, e, felizmente, inclusive da primeira divisão dos campeonatos estadual e nacional. Emoção, raiva, tristeza, decepção, alegria, felicidade, quantos sentimentos a gente experimenta em tão poucos minutos.
Um campeonato foi muito especial pra mim, e pra muitos botafoguenses, claro, o paulista de 2001. Nele o Botinha foi vice campeão, perdendo a final para o Corinthians. A semifinal com a Ponte Preta, contudo, foi um dos momentos mais bonitos, uma vitória apertada em casa, num dois a um cheio de gols perdidos, defesas, o estádio completamente lotado, a enorme bandeira da torcida do Bota. E naquele dia, eu que nunca havia ido com a camisa do clube ao campo, quis ir, era especial. Antes de entrar no estádio, porém, ao cruzar com torcedores adversários, entendi que futebol não era só esporte, diversão, aprendizado, envolvimento humano. Futebol é uma loucura, não tenho a menor dúvida, hoje. Tive que retirar a camisa, meu tio e eu fomos chutados e empurrados até a porta do estádio por torcedores da outra equipe enquanto policiais assistiam a tudo... Nenhuma novidade pra ninguém. Continuei indo ao estádio muitos anos depois disso, mesmo assim.
Mas muitas coisas, especialmente fora do campo, na política do futebol que muitas vezes não diz respeito somente ao esporte, foram me levando até mesmo a vontade de assistir a uma partida. Neste campeonato brasileiro que se encerrou hoje, por exemplo, mal vi os jogos, tal a repulsa pelas notícias que envolvem a Copa do Mundo de 2014 no Brasil, Ricardo Teixeira, a construção dos novos estádios, o uso do dinheiro público. A péssima declaração do ídolo Ronaldo na semana passada é só mais um exemplo. E o Corinthians nunca foi a equipe de que mais gostei, pelo contrário, como é de se imaginar. A mesma antipatia que tenho pelo Juvenal Juvêncio só se reflete na sua imagem mais jovem, pra mim, dentro do parque São Jorge, com Andres Sanches. O futebol brasileiro parece ser resolvido, administrativamente, como se fosse o sofá da cozinha aqui de casa... não consigo aceitar...
Na manhã de hoje, porém, tomei um enorme susto, porque a primeira notícia veiculada na data de meu aniversário era a morte do Doutor Sócrates. Chorei. Tenho um amigo, meio japonês, meio boliviano, meio barrigudinho, que vive dizendo que eu torno os acontecimentos ao meu redor, especialmente os infortúnios, uma espécie de mania de perseguição, ou de teoria da conspiração, como se o mundo estivesse contra mim: o coitadinho. Ele também é meio (sic) exagerado. Tenho é sorte por ter os amigos que tenho. Em poucos minutos, não conseguia deixar a lembrança das palavras de um senhor pequenino que sempre estava ao nosso lado no estádio anos atrás. No meio de um jogo, ele contava, diante da perda de um jogador nosso que saia machucado, a esperança que tinha sempre que isso acontecia, que o absurdo de uma tarde nos anos 70 se repetisse. Ainda no poliesportivo do clube, num jogo importante, valendo a classificação da equipe, logo no primeiro tempo o craque de então se machucou, fazendo com que muitos no campo se desesperassem, só poderia ser um sinal do fim trágico... Mais desesperançados ainda ficaram quando um sujeito completamente esguio, aparentando uma fragilidade gritante, e de cerca de 1,90 de altura fora chamado para substituir o jogador que saía contundido. O primeiro passe de calcanhar daquele que entrara fez com que seu nome não mais saísse da memória de todos: era Sócrates.
Impossível recontar a história que se seguiu. A vida no Botafogo, no Corinthians, a Democracia Corinthiana, a Seleção de 82, a medicina, a clareza e o posicionamento polí­tico. Só posso, só podemos, todos, afirmar, destacar a dignidade de um sujeito, de um ser humano. Pra quem o viu senão muitas, pelo menos algumas vezes, era sem dúvida um cara muito legal, simplesmente, admirável, muito acima de qualquer idolatria banal.
Me perguntei a manhã toda se não fora o destino (se é que ele existe) quem retirou de Sócrates a oportunidade de ver o quinto tí­tulo brasileiro do Corinthians. Será que Sócrates queria ver este título? Será que vivia também alheio a emoção do esporte que tanto encheu de arte ao jogar, que tanto preencheu de reflexão e crítica ao trazer o que nunca esteve longe dos gramados, a vida social e política do país? Será que de tanto o futebol se tornar... se tornar... se tornar isso, uma mercadoria, uma ilusão para muitos adolescentes e uma desgraça para tantos profissionais, permeados pela escrotice de dirigentes e administradores, até mesmo o Doutor Sócrates, um apaixonado pelo futebol, ironicamente, teria preferido não ver o tí­tulo por tudo isso? Não... não... triste casualidade, só podem ser delírios pretensiosos de minha parte, colocando-o na mesma condição que a minha, um aniversariante neurótico. Redundância dizer que se Sócrates não se calou diante de tudo isso que é o futebol recentemente, ele também não escondia de ninguém a alegria de sentir a felicidade de tanta gente, de tantos torcedores pelo paí­s... Porque pra além da arte, da política, há a vida. Ele estaria muito feliz.
E eu, que continuo um secador do Corinthians, depois de não conseguir entender tamanho acaso hoje, por causa do Doutor, me vi no meio da tarde morrendo de vontade de correr até a janela e comemorar o meu aniversário gritando: VAI CURÍNTHIA!!

(blog do Juca Kfouri)

sábado, 26 de novembro de 2011

Na esquina de uma cidade

. . Por Thiago Aoki, com 2 comentários

Na esquina de uma cidade, o encontro entre ruas distintas. Beirando a quina, pessoas trocam olhares, informações, decifram-se sem palavra alguma. Por que aquela velhinha não atravessa na faixa de pedestre? Meu Deus, onde está a mãe daquele garoto? Pra onde vai aquele japonês? Será que ela estava olhando pra mim?

Na esquina de uma cidade, as mesas pra fora do bar indicam fim do expediente do cliente, início do expediente do garçom. O primeiro gole do chope, experiência única do dia, libertação, finalmente se vive! É hora de discutir futebol, olhar as pernas das moças, falar mal do chefe, fazer amizade com o garçom na utopia de uma saideira gratuita. É hora de sentir o por-do-sol, que não queima ardido, mas é suficiente para não deixar a alma congelar.

Na esquina de uma cidade, são tantas buzinas, tanta pressa pro fim, que o melhor a fazer é incorporá-las à paisagem. Buzina de sinal abriu, buzina de vai logo, buzina de seu lerdo, buzina de oi - esta cada vez mais rara. Têm aqueles que quando dirigem, ligam o som bem alto, acho que para ausentar seus ouvidos da buzina alheia, ou, quem sabe, para reagir ao trânsito parado da única maneira possível: movimentando o corpo a dançar de dentro do carro.

Na esquina de uma cidade, a praça fica em frente ao bar e nela, em pé sobre bancos, missionários disputam atenção, cada qual com seu Deus, que dizem ser de todos. Há também aqueles deitam nos bancos e cujo único Deus é a cachaça, esses já não sabem o dia, a hora e o local. Têm dificuldade em articular sujeito-verbo-predicado e, deitados, sentem o sol acariciar a futura ressaca.

Na esquina de uma cidade, guardas observam a tudo e todos: japonês perdido, velha imprudente, garoto sem mãe, o gole de cada chope, motoristas dançantes, missionários, bêbados, buzinas. Difícil saber o que pensam, mas é fácil reparar que todos que passam olham para as suas cinturas, admirando as suas armas, ainda que sob temor.

Na esquina de uma cidade há um prédio, e dentro desse prédio, vivo sozinho num andar mais ou menos alto. Daqui, gosto de observar toda a gente a viver no por do sol, agentes de minha paisagem. E é nesse horário, todas às sextas feiras, que vejo uma loira, atrás de uma árvore da praça beijando - um longo beijo - a boca de um jovem rapaz. Tímida, olhando pros lados, vez em quando olha pro meu prédio, pro meu andar, até criar coragem para se despedir do moço.

Na esquina de uma cidade, choro um pranto resignado, mas é tarde, sempre foi tarde. Ela não sabe que tenho binóculos, nem que os coloco por entre a persiana na sexta-feira, nem como me machuca carícias tão ternas ao por do sol. Mas já é hora de abrir as persianas, guardar lágrimas e binóculos. A qualquer momento a porta há de se abrir e ela - loira, sorridente e dissimulada - entrará em nossa casa perguntando como foi meu dia, beijando-me os lábios.

Na esquina de uma cidade, minha vida é aguardar o dia em que, tomado por uma coragem que inexiste em mim, responderei com sinceridade absoluta à essa pergunta.

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Misturas Relacionadas:

Esquinas, Caixas e Luzes

terça-feira, 22 de novembro de 2011

[Tradução] Nos Divertindo Até A Morte

. . Por Fernando Mekaru, com 3 comentários

Discussões sobre o impacto midiático, sobre o comportamento e o pensamento humanos e da chamada media ecology (tradução grosseira: ambiente midiático) ocorrem com certa frequência atualmente: em geral, tratam-se de discussões e ensaios que buscam expor, de uma maneira ou outra, como os grandes instrumentos de veiculação de informações (em especial a internet) podem colocar tanto um brilhante futuro de democratização cada vez mais massiva e efetiva dos meios de informação das pessoas, ou então como a decadência dos antigos instrumentos de veiculação (em especial a mídia impressa) conjuntamente aos problemas ignorados dos novos veículos, que acabarão por gerar uma sociedade em que a quantidade de informações é mais importante que sua qualidade, o que resulta em uma sociedade onde todos tem conhecimento, mas muito pouco dele.

Independente da visão que esses debates procuram colocar, a impressão que fica é que esse tipo de discussão só surgiu após o advento da internet, que evidenciou em escala exponencial as potencialidades positivas e negativas de um veículo midiático relativamente barato e de fácil acesso: com tamanho impacto sobre a sociedade, fica difícil não surgir um sem-número de análises que procuram dizer se o impacto da internet sobre o mundo dá a ela o papel de messias ou de precursor do fim-do-mundo.

Este debate, porém, é mais antigo do que se pressupõe: o título de "veículo midiático que mudou o mundo e a maneira de se relacionar com as informações que possuímos" não é exclusividade da internet. Mais: as questões que ele coloca continuam praticamente as mesmas, apesar da passagem do tempo.

Abaixo, segue a tradução livre de um dos textos pioneiros sobre essa discussão: ele é da autoria de Neil Postman, um dos discípúlos de Marshall McLuhan - pai da máxima "o meio é a mensagem" e importante guru dos estudos de mídia e comunicação social. O texto foi escrito como um prefácio do livro Amusing Ourselves to Death (Nos divertindo até a morte), que se dedica a descrever duas possibilidades disópicas em relação ao impacto que a televisão poderia ter sobre a sociedade com base nos olhares de Aldous Huxley e George Orwell, mas o texto envelheceu muito bem e pode ser considerado como um olhar interessante sobre a sociedade atual.

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Estávamos prestando atenção em 1984. Quando ele chegou e a profecia não se concretizou, americanos pensativos se deram o direito de elogiar a si mesmos calorosamente: as raízes da democracia liberal se mantiveram firmes e, enquanto terrores aconteciam em outros lugares, os EUA ao menos não haviam sido visitados por pesadelos orwellianos.

Nos esquecemos, porém, que além da visão sombria de Orwell, havia outro ponto de vista - ligeiramente mais antigo, ligeiramente mais obscuro, mas igualmente assustador: aquela colocada por Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo.

Ao contrário do que o senso comum dita até mesmo entre os mais intelectualizados, Huxley e Orwell não descreveram a mesma coisa: Orwell alerta que seremos subjugados pela opressão imposta de maneira externa, mas na visão de Huxley o Grande Irmão não é necessário para privar as pessoas de sua autonomia, maturidade e história. Na visão de Huxley, as pessoas acabarão por amar seus opressores e adorar as tecnologias que desfazem as suas capacidades de pensar.

Orwell temia aqueles que desejavam banir livros; Huxley temia que não haveria razão para banir livros, já que não haveria ninguém desejoso de lê-los.

Orwell temia aqueles que desejavam privar as pessoas da informação, enquanto Huxley temia aqueles que nos dariam tanta informação que seráimos reduzidos à passividade e ao egoísmo por conta disso.

Orwell temia que a verdade fosse escondida de nós; Huxley temia que a verdade fosse sufocada em um mar de irrelevâncias.

Orwell temia uma cultura que é refém constante de uma única pessoa, enquanto Huxley temia uma cultura trivial, obcecada com entretenimento, hedonismo e lazer.

Como Huxley comentou na edição revisada de Admirável Mundo Novo, os movimentos pela liberdade e intelectuais que estão sempre alertas para se opor à tirania não levaram em conta o apetite quase infinito dos homens por distrações.

Em 1984, Huxley comentou, as pessoas são controladas pela administração da dor; em Admirável Mundo Novo, elas são controladas pela administração de prazer.

Em resumo, Orwell temia que aquilo que odiamos seja a causa de nossa ruína; Huxley temia que aquilo que amamos seja a causa de nossa ruína.

Este livro é sobre a possibilidade de que Huxley, e não Orwell, tenha acertado.

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quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Meu estranho vizinho

. . Por Unknown, com 2 comentários

Bom dia, vizinho

Acho que você não me conhece. Esquisitas são as nossas vidas, porque na cidade dos meus pais, por exemplo, que não é nenhum fim de mundo de pequenina, todos na rua, no quarteirão, se conhecem, senão amigos, pelo menos de cumprimentos rotineiros. Já aqui, por outro lado, neste lugar tão pequeno, nós, eu, que estou aqui há quase um ano nesta rua, nunca sequer vi você entrar ou sair de casa. Se pelo menos houvesse um elevador para nos encontrarmos, casualmente, como em geral acontece nos condomínios verticais, mas não há, são apenas nossas casas, uma de frente para a outra.
Bom, mas quem sou eu, que te escrevo agora? Sou um estudante, divido a casa aqui com uma amiga - e o namorado dela, que sempre está presente, é verdade, mas pelo menos ele faz café de vez em quando, ainda que economize pó pra isso, céus! -, saímos todos os dias para passear com a cachorrinha aqui de casa, você já deve ter reparado. Não, eu não sou aquele de barba e cabelos desgovernados. Uso óculos também, mas são maiores que o meu rosto, e se pareço desengonçado e atrapalhado, acertou. Só não sou eu também quem pára sempre com uma das mãos na altura da cintura, nas costas, e com a outra fica coçando o queixo. Tsc tsc. Conheço poucos vizinhos neste quarteirão, alguns sei apenas quem são, poucos eu cumprimento. Sabe como é, frequento a padaria aqui perto, na rua de trás, então alguns eu vejo com mais regularidade. Sua casa pra mim antes era apenas mais uma no cenário da rua, agora não, mesmo sem nunca ter posto os olhos em você, sei quem vive aí nesta casa. É.
Há uma semana, havia acabado de escurecer nesse horário de verão, e eu, que chegava em casa, vi um furgão enorme da Polícia Militar na frente da sua casa. Você já deve ter visto, era um carro daqueles da base local. “Comunitária”, se eu não estiver enganado, é a palavra que está escrita na lateral do veículo. Seis policiais estavam na calçada de sua casa. As luzes da sirene estavam ligadas, girando, e pelo menos não tinha aquele apito, só mesmo as luzes informavam a urgência. Mais do que curioso, fiquei assustado, muito, mesmo. Imaginei que fosse um assalto, um roubo, pela minha cabeça passaram ainda estupro e morte, coisas que, infelizmente, tem sido comuns mundo afora. Três mulheres, duas senhoras e uma moça estavam junto aos policiais, e todos olhavam para sua casa escura, fechada.
Não, não, não fiquei preocupado por serem tantos policiais, não acredito que eles sejam todos maus por natureza, profissão ou condição social, ou que sejam todos iguais, como autômatos treinados única e somente para bater, prender e matar, mesmo que diariamente encontremos exemplos de violência policial, abuso de autoridade, corrupção etc. São funcionários públicos, pelo menos por enquanto, cidadãos comuns, bem informados, formados e mal pagos. Só que muitos são pessimamente preparados, é verdade, porém, os problemas que envolvem a polícia são sociais, de organização e administração pública, são problemas políticos. Nem passa pela minha cabeça, também, que policiais agem da mesma forma em outros bairros da cidade, infelizmente, pois deveriam sim agir, tal como fizeram aqui, em todos os lugares. A realidade é outra, bastante cruel. Aliás, seria ingenuidade minha ainda imaginar que eles agissem aqui da mesma forma que agem quando sobem o morro de uma favela, mesmo que, paradoxalmente, no fim das contas, a minha vontade mais recôndita, naquela noite, fosse essa.
Digo isso porque sei que você deve ter reparado que desde semana passada o noticiário falou bastante da polícia, com tudo que tem acontecido no campus da USP Butantã, e agora na Rocinha carioca. Ficou tudo muito estranho na USP, a polícia já estava lá há muito tempo, José Grandino Rodas é quem não deveria estar, ser o Reitor, já que não foi eleito pela maioria no processo eleitoral discutível dali, mas o governador é quem manda. E Alckmin disse que os estudantes precisavam de aulas de democracia por protestarem... puxa, há muitos erros, equívocos nisso tudo, e eu também tenho minhas discordâncias e reticências quanto a muitas das ações dos estudantes, enfim, divago, mas para dizer o mínimo, se respeitássemos sempre o Estado de Direito (nem sempre) Democrático, continuaria tudo como está, e não está tudo bem. Aceitar as regras do jogo não significa não exigir que elas mudem ...
Mas sem saber o que estava ocorrendo na porta de minha casa, sem nunca ao menos ter te visto, vizinho, corri para minha casa, deixei as sacolinhas do supermercado e voltei imediatamente para a rua. Perguntei à moça que mais próxima estava o que acontecia ali. Mais apreensivo fiquei com o intervalo das palavras e com os olhos dela. Atrás daqueles óculos fundos, eles estavam encharcados, e a voz dela também soluçava. Meu Deus - como pode um agnóstico repetir tantas palavras religiosas? - era o terceiro dia, e ela descobrira então, finalmente percebera, morando na rua de trás, e tendo a própria casa dela como fundo da sua, vizinho, o que estava acontecendo. O gato de estimação dela, já bastante velho, tinha sido preso por você, que não o alimentava nesse período. O animal, contudo, começou a grunhir de desespero, pedindo socorro. Ouvindo o bichano, só a sua casa, vizinho, poderia ser o paradeiro dele, pois no terreno baldio ao lado o gato não estava, nem na casa da outra senhora, do outro lado, a mulher é amiga da moça e da mãe dela.
Acionada no final da tarde, a polícia militar – a PM(!), vizinho – enviara o furgão da base comunitária, e todos os soldados estavam na calçada com algumas lanternas tentando iluminar sua casa. A moça me dissera que, quando os policiais chegaram, você apagou as luzes e fechou a janela do corredor também. Você se escondeu. A mãe da moça gritava, ela te xingou bastante, vizinho, mas não se preocupe, se fosse num estádio de futebol, nada ali seria um xingamento, aquela senhora, da liga das carolas, só estava nervosa demais. Ela queria que os policiais pulassem o muro, batessem na porta, nas janelas. Todas elas queriam que os policiais fizessem você aparecer. Não queriam que você explicasse algo, convenhamos. Um dos soldados repetia que não, que não poderia entrar ali, que ele não possuía mandado ou qualquer ordem oficial para realizar algo nesse sentido. Educação e polidez incríveis se comparados aos colegas de profissão que atuam em outros bairros. Quando se ouve os relatos vindos da Rocinha então, invejáveis os soldados daquela noite na sua porta. No final, não entendi por que eu mesmo não fiz isso tudo: por que não pulei o muro e bati nas suas portas e janelas naquele momento? Voltei para minha casa.
Agora, espero, profunda e imensamente, que eu nunca cruze com você por qualquer desgraça que seja. Espero, também, que você tenha matado o gato, mas que não tenha esperado a morte dele por inanição. Não acredito, não consigo acreditar, que a sua covardia e estupidez tenham te levado à assistir a morte lenta do bicho, tampouco a devolvê-lo, soltando-o, confirmando sarcasticamente o que você fez. Não há arrependimento, também, que possa mudar o fato de você ter torturado um animal, deixando-o sem comida e preso. Você deveria ser processado, condenado e preso sem direito à fiança. Te desejo muito mal, vizinho, aliás, nem sei por que te escrevi um bom dia no início ...


Hugo

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Pode ou não pode?

. . Por Thiago Aoki, com 1 commentário

- “Chegar atrasado? Não acredito... Bom, depois conversamos...” – e desligou o telefone na minha cara.

O carro estava quebrado, chuva forte, isolado na estrada, sem poder nem abrir os vidros pra tomar um ar. Se a bateria funcionasse, poderia ouvir uma música para relaxar. Trinta minutos pra chegar o guincho, poderia estar lendo algo, trabalhando. Mas não, apenas meu mau-humor, e pensamentos sobre a impotência diante do fato: nada poderia fazer.

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O que pode e o que não pode. Desde que nascemos, é a esta indagação que respondemos. Não pode colocar o dedo na tomada. Pode abraçar o amigo. Não pode jogar bola dentro de casa. Pode comer toda a comida.

Parece simples, mas o "pode-não-pode" complexifica-se ao longo do tempo, principalmente quando pensamos em situações coletivas. Pode pegar um atestado médico falso para descansar do trabalho? Pode matar para se defender? Pode prender um político? Pode guerrear com um país vizinho? Talvez por isso as disputas de “poderes” são consideradas como um dos principais combustíveis de nossa história. A maioria das sociedades exalta, em suas trajetórias, os homens e as poucas mulheres que possuíram o direito de dizer aos demais o que "pode" e o que "não pode".

A democracia que vivemos no Brasil e na maioria do mundo, ao contrário da intenção de seu discurso, não se configura como um espaço onde a maioria da população tem a possibilidade de participar da decisão do que "pode" e do que "não pode". O que há é uma votação onde se escolhe quem serão os responsáveis por tal decisão. E, por uma série de motivos, essa responsabilidade tem sido, historicamente, legada às classes que se beneficiam dessa estrutura social. E assim, como time que tá ganhando não se mexe, com um ajuste aqui, outro ali, a coisa se mantém como está.

Ocupar uma reitoria, uma praça pública, participar de uma manifestação ou mesmo contestar as micro-relações do dia-a-dia não é promover uma baderna, mas a criação de um espaço e momento onde se para de ouvir o que "pode" o que "não pode", para pensar coletivamente o que poderia ser. Não é uma questão de moralismo, pois tão violento como romper uma suposta legalidade, é manter uma lei que amarra harmonicamente todo o ciclo vicioso de reprodução do "poder" e "não poder". E também não é questão de ter ou não dinheiro. É questão de ter ou não possibilidade de participar da construção do mundo.

Frases de outrem chegavam à minha memória. “Daqui a pouco ele amadurece”. “Isso é coisa de juventude”. “Quando ele trabalhar vai ver só”. Pensava nas todas tantas pessoas que dizem diariamente "podeis" ou "não podeis". E de como, a obediência necessária para as coisas que sempre foram assim continuarem a serem assim faz com que percamos a cada dia a capacidade de nos indignar, aceitando o básico. Crescer é isso, saber aceitar? Quão exorbitante será a diferença, terrível diferença, entre o tamanho de nossas asas e a altura de nossos sonhos?

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Foi neste momento que minha cabeça, que estava em algum lugar longe, voltou, assustada com um barulinho do meu lado. Toc Toc Toc. Olhei instintivamente, já havia parado a chuva e um passarinho de cor diferente bicava o vidro do carro com força. Às vezes, embrutecidos pela rotina, não conseguimos enxergar além do que vemos, e por muitas vezes em minha história, a cena fora envolta por certa obviedade: um passarinho, que, sem saber o que é o reflexo de um espelho, ataca o vidro do carro. Fossem esses dias, sorriria de lado, um pouco com pena da ternura de sua tolice. Mas naquele momento, entendi que no fundo somos todos como este passarinho inconformado, procurando por si mesmo em diferentes espaços, tentando decifrar a imagem no espelho, insistindo, insistindo, insistindo.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

A pequena múmia

. . Por Unknown, com 0 comentários

Quando assisti ao “A Culpa é do Fidel”, uma produção francesa, há mais de dois anos, pensei que era apenas mais um filme sobre ditaduras latino americanas, como a chilena que ali era acompanhada na França retratada pelo filme, a do início dos anos 70, e pelo olhar de uma criança. Há tantos filmes nesse sentido, como aquele brasileiro que ficou bastante conhecido, “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias”, de Cao Hamburger, muito semelhante ao “A Culpa...”, pois também traz o olhar infantil para o contexto político da época. Outro exemplo, mais próximo ainda ao “A Culpa...”, é “Machuca”, filme chileno sobre a ditadura daquele país e, da mesma forma, com uma belíssima leitura a partir da vida de duas crianças, quase adolescentes.
É, “A Culpa é do Fidel” talvez seja apenas mais um filme. Acontece que com as manifestações, os protestos no Chile a respeito da Educação Pública, com o criação da Comissão Nacional da Verdade pelo legislativo brasileiro, com a minha descoberta de um grupo de Resistência Nacionalista em São Paulo, e também com o mais recente Occupy Wall Street, enfim, essas coisas quase sempre me remetiam ao título e, por que não, ao filme: a culpa é do Fidel!! Então achei melhor revê-lo, e foi só assim que reparei que a diretora, Julie Gavras, é filha de outro cineasta, Constantin Costa-Gavras, um militante de esquerda na França, e exatamente desde os anos 70. Costa-Gavras se destacou pelo trabalho político, denunciando as atrocidades das ditaduras mundo afora. Se a protagonista de “A Culpa...”, Anna, uma criança de nove anos, acompanha a vida de militância dos pais - como não notei antes? -, o filme é, nesse sentido, autobiográfico!



Além disso, se a cineasta de fato não fez do filme, também uma adaptação do livro Tutta Colpa di Fidel, de Domitilla Calamai, uma autobiografia completamente, ou um pequeno recorte de suas memórias de infância, encantado que sou pelo filme, comecei a torná-lo, percebi o quão ele me é autobiográfico, de qualquer modo. Não, eu não cresci na França dos anos 70, meus pais não eram militantes de esquerda e tampouco fui educado em um colégio católico. Muitos, mas muitos, centenas, milhares de pessoas pelo mundo podem encontrar suas narrativas pessoais ali naquele filme. Fui apenas mais um que ficou brincando de trocar a personagem Anna por si próprio, ou por meu pai, no caso. Justamente por que foi meu pai quem viveu aqueles anos, os 60 e os 70, como filho de um ex-militante comunista.

E pior que comunista só mesmo um ex-comunista, dizem. Não é um caso – ainda bem – como o do Corvo da política brasileira, Carlos Lacerda, porém, Nazareno Ciavatta, meu avô, já havia deixado o Partido Comunista Brasileiro em meados dos anos 50 quando foi preso, logo depois do Golpe Militar de 1964. Um funcionário da Prefeitura de Ribeirão Preto, militante no máximo de um burocrático e esvaziado sindicato de servidores públicos, preso como agitador comunista... Ainda falta a Woody Allen conhecer a história brasileira daqueles anos. Porque depois as coisas mudam muito, é verdade, e o que poderia soar como piadinha infame aparece de maneira obscura, absoluta e profundamente obscura para este país que ainda hoje sabe pouco sobre sua própria memória política... Chegariam o final dos anos 60 e a década de 70, ambos para dizer que não havia nada de engraçado. “A Culpa...” é de quem? Do Fidel, claro!
Mas se aquele coroa, já com mais de cinquenta anos em 64, fora preso por ter, de fato, militado intensamente nos anos 50, não deixou ao seu primogênito qualquer inspiração política. Meu pai, tenho eu a sensação, passou ao largo de qualquer proximidade com aquilo divide o meu mundo: esquerda x direita; revolucionário x reformista; liberal x conservador. Com ele ficou a velha divisão cristã entre o bem e o mal vinda de minha avó, senão uma carola tradicional, uma católica heterodoxa, digamos, que benzia e orava com as mais diferentes combinações do interior paulista. A ausência da figura paterna, em meu pai, só em anos recentes deu lugar a uma espécie de "herói" tardio, agora com algum romantismo, mas que antes era lembrado apenas, da maneira como vejo, como um sujeito duro, polêmico, machista, capaz de violências simbólicas marcantes para qualquer criança ou adolescente. “A Culpa...” é de quem? Do Fidel, claro!
É assim que reencontro a personagem da menina Anna, comigo, quando me pego lembrando da confusão que era imaginar que meu avô fora um comunista... o que é, afinal de contas, para uma criança, para um adolescente egresso do fim da Guerra Fria, um comunista?? Como meu pai se tornara proprietário, veja bem, proprietário(!) de uma oficina mecânica sendo filho de um comunista? Pois um proprietário seria um capitalista? Um burguês, um explorador? Como assim? Ele também é um mecânico, vende sua força de trabalho, portanto, ainda é proletário: que contradição! Não, é um pequeno burguês, um profissional liberal: eis a classe média! Que horror... Maldito Fidel!!!

No Chile dos anos 70, os que foram contrários a Salvador Allende ficaram conhecidos como “momias”. Assim, irônica e carinhosamente, era Anna chamada pelo próprio pai e pelos amigos militantes da família: “la pequeña momia”. Pois mais do que ser contra ou a favor, ou ser ou não ser de uma bandeira, ela parece dizer, de cara doce e emburrada ao longo do filme, que o mundo e as pessoas são malucas e estúpidas. Que, muitas vezes, não faz diferença ser de direita ou de esquerda, ateu ou crente, afinal, como uma criança, importante é só ser curioso e desconfiado.

Julie Gavras e Nina Kervel durante as gravações de "A Culpa é do Fidel"

Hoje, pra quem apoia e incentiva coisas pra frentex, de esquerda colorida e descolada, como lembra o Thiago Aoki sempre, ainda é difícil dialogar com falas comuns sem reproduzir estereótipos, ou maniqueísmos. Mas algumas falas saem do comum, não são somente opiniões, são agressões assustadoras, e difícil passa a ser recolocar qualquer margem para um debate entre iguais. Ouvir, por exemplo, que vivemos numa “democracia burguesa ilusória”, de uma “grande mídia dominada pelo capital transnacional”, pra mim, é de um totalitarismo simbólico tão desanimador quanto imaginar a validade dos argumentos de grupos de skinheads.
Lembro sempre de um tiozinho no busão que, em meio a qualquer onda de denúncias de corrupção na política brasileira, dizia que bom mesmo era no tempo “deles”, enquanto movimentava uma das mãos sobre os ombros aludindo às estrelas presentes na farda militar. Ao início de comédia pouco usual da ditadura brasileira, acredito, ele não fazia referência, mas sim aos anos de maior repressão. Sentado no ônibus, em poucos segundos recordei as histórias de quem havia sido interrogado pelo delegado Sérgio Fleury, e do que passou a ser o DOPS... não poderia esquecer das pilhas para o meu MP3, é verdade, e antes que escapasse pelo canto dos olhos a foice e o martelo do meu DNA, saltei do ônibus sussurando: bendito Fidel...

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Coluna do leitor - Sobre a ocupação do Anhangabaú

. . Por Mistura Indigesta, com 5 comentários

Em 15 de outubro de 2011, atendendo ao chamado global de mobilização puxado por indignados de todo o mundo, me uni ao que na época era um pequeno grupo que ocupou o vale do Anhangabaú em São Paulo, mais precisamente a área em baixo do viaduto do chá. Estamos acampados a mais de 10 dias e não somos mais tão poucos. Somos muitos e muito plurais. Somos punks, índios, anons, moradores de rua, estudantes, trabalhadores, professores, permacultores e muito mais do que isso.



Nosso movimento tem sido visto com certa desconfiança, pois não nos enquadramos direito em antigos padrões da esquerda. Tal desconfiança se traduz na nossa proposital dificuldade em responder certas perguntas como: "por que nos unimos?", "por que aqui e agora?" e "aonde pretendemos chegar?". Neste texto não pretendo responder a tais perguntas, mas arriscar uma explicação de porque temos tanta dificuldade em respondê-las.

Não custa mais uma vez repetir que este texto corresponde à minha visão como alguém que vivenciou a acampada, conversou e aprendeu com diversos outros tantos acampados por mais de uma semana, mas que de maneira nenhuma pretende representar a opinião destes.

Nosso movimento é bastante plural e, apesar de termos um manifesto consensuado, nossas pautas são muito amplas e difusas para servir de explicação sobre os principais motivos de porque nos unimos. Isso é muitas vezes colocado em forma de crítica: como um movimento pode sobreviver se não tem pautas firmes comuns? Ao meu ver o motivo real que nos une nos fornece uma excelente pista para responder a essa pergunta.



Compreendo que o que nos une, não só nós em São Paulo, mas também no movimento em Wall street, em Madri e em diversos outros pelo mundo, é uma insatisfação com a estrutura da representação política. Assim, me parece que nossa dificuldade em elaborar reivindicações claras é consistente com nossa principal bandeira "democracia real/direta". Não estamos firmes em nossas reivindicações porque no fundo sabemos que não é uma questão de reivindicar (pra quem reivindicamos se esses não nos representam?), mas de construir todo um novo sistema. Dessa forma, é muito mais consistente que nossas pautas sejam construídas e reconstruídas constante e coletivamente. Isso não significa, porém, que não estamos firmes em certos princípios. Nos enxergamos claramente como um grupo anti-capitalista, apartidário, não-violento, cujas decisões são tomadas de forma dialógica por consenso e que busca a democracia real/direta.



A segunda pergunta também costuma chegar em tom de crítica: não há crise no Brasil agora, logo não há contexto e, portanto, o movimento não deverá durar. Primeiro, não é verdade que não há contexto, o movimento se insere tanto em um contexto internacional de lutas (Espanha, Grécia, Egito, Nova Iorque etc.) como em um contexto local (diversas marchas contra o aumento da tarifa de ônibus, marcha da maconha, marcha da liberdade etc.). Em relação a não estarmos em crise, compreendo que isso é mais uma benção do que uma maldição. A maioria dos movimentos de esquerda até hoje tenderam a ser reativos, ou seja, uma resposta a algum tipo de crise. O fato de nosso movimento não ser reativo, mas construtivo, o abre para uma infinidade de novas possibilidades. Um movimento construtivo não precisa ter pressa para dar respostas. Um movimento construtivo não é necessariamente pautado por um determinado contexto que uma vez mudado dita o fim do movimento. Um movimento construtivo é livre para seguir seu próprio rumo em seu próprio tempo. "Ele não tem limites, não começou aqui e agora e vai terminar ali e mais tarde. É exatamente o que não se constitui nem tem contornos e, assim, incomoda e agride o poder constituído. Ele não tem um dentro, um o que somos e o que queremos. O movimento já está fora, já nasceu como um fora. Ele é a própria membrana entre dentro e fora."

Algumas vezes somos confundidos com movimentos direitistas contra a corrupção. Evidentemente que somos contra corrupção, mas esse tema nem surge em nossos manifestos ou meios de divulgação. Quando gritamos "Não nos representam!" não é que um ou outro político não nos representa, mas que o sistema político não é capaz de nos representar. Soma-se a isso a compreensão de que a corrupção é inerente ao sistema capitalista, ela é apenas uma face do capitalismo mais frequente em países periféricos. Dessa forma, a luta contra a corrupção entra somente como efeito colateral daquilo pelo que lutamos.



De forma alguma acredito que buscamos solucionar questões pontuais do capitalismo. Muito pelo contrário. Brandamos por democracia direta/real. Nossa concepção de democracia direta, apesar de difusa, certamente não é reformista. Buscamos uma mudança profunda na forma de representação política e temos consciência de que isso é impossível dentro do sistema vigente. Neste sentido, compreendo tal movimento construtivo como muito mais radical do que qualquer movimento pautado em determinada crise pontual.

Por fim, não acredito que precisamos ter um objetivo fixo, pois este está sendo construído no próprio movimento. Esse é um excelente indício de que estamos indo na direção do que quer que compreendemos por democracia real. A partir do momento em que nos tornarmos previsíveis seremos presas fáceis frente ao sistema.

Há quem diga que somos lunáticos lutando contra tudo e contra todos. Acho mais honesto dizer que lutamos contra tudo e, se não com todos, com 99%. Estamos decretando o fim do fim da história. Estamos fabricando tinta vermelha.



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Marcio Moretto Ribeiro (@marciomoretto) é doutor em ciências da computação pela USP, pós-doutorando em lógica pela Unicamp e indigesto por parentesco. Esteve acampado durante os últimos dias no Vale do Anhangabaú (@AcampaSampa) e compartilha aqui suas primeiras considerações.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Considerações sobre o senso comum...

. . Por Thiago Aoki, com 6 comentários

Ter o pensamento social como objeto de nossa profissão, significa viver, dia-a-dia, um dilema. Quase sem querer somos levados a uma certa arrogância, pensando que fomos um dos poucos iluminados que tivemos a capacidade de sair da redoma de dominação dentro da qual o resto do mundo está trancafiado. Por eufemismo, trocarei o termo “arrogância” para “dificuldade em lidar com o senso comum”.

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Situação 1:

O acadêmico está em uma livraria lendo manuscritos inéditos de Dostoievski quando escuta por de trás da prateleira:

- Esse livro deve ser bom. “Seja um vencedor”. Um amigo leu, disse que foi ótimo para ele superar suas dificuldades e ser alguém na vida. Quero comprar, talvez me inspire pra conseguir um novo emprego, uma vida nova.

Nesse momento o acadêmico já está mordendo a camisa, suando a mão, costurando com os pés. É quando ele não aguenta vai ao outro lado e desabafa sereno:

- Meu querido, sinto muito, mas a desilusão que você vive é fruto de um problema estrutural da sociedade capitalista e mesmo suas ideias, costumes e preferências refletem a sua posição dentro dessa estratificação social. Portanto, não será com pensamento positivo e figas que você sairá dessa lástima. Melhor você tentar entender o processo de luta de classes instalado na atual conjuntura econômica...

Situação 2:

O acadêmico está tomando seu café sem açúcar na padaria que usa grãos árabes quando escuta da mesa ao lado:

- Uma coisa que não admito é pirataria. Vai saber o que você não está financiando quando compra um filme pirata: assassinatos, drogas, crimes. Deus me livre. Quem hoje em dia não tem 5 reais pra alugar um filme? Eu mesmo já passei fome, mas corri atrás, estudei, aprendi a investir na bolsa e hoje estou aqui. Pra mim, pirataria é coisa de vagabundo.

É quando se escuta o tilintar um pouco mais forte da xícara sobre o pires. Olha-se pro lado e o acadêmico, já em pé, voicifera:

- Você sabe quantos milhões giram em torno da indústria cultural? Quantas expressões artísticas são deixadas de lado, quantas padronizações são feitas em nome dessa indústria? Qual a autenticidade da arte perante sua mercantilização? Além disso, parabéns, você venceu na vida e faz uma coisa “digna”, jogar na bolsa de valores. Se você tivesse investido nas ações daquela marca de roupa espanhola que usa mão-de-obra escrava, será que saberia o que estava por trás dessa ação limpa e pudica?

Situação 3

O acadêmico está em um ônibus lotado quando se percebe um enorme trânsito. Logo alguém diz que professores estão fazendo greve e fechando a passagem na rua. Ao saber disso, um tiozinho brada:

- Por isso que digo, melhor mesmo é na época dos militares, pelo menos esses vagabundos não faziam baderna.

Um sujeito solta-se do apoio e cambaleia, quase caindo no chão do ônibus, é o acadêmico. Que se recompõe, respira fundo, conta até 10 e lá vai:

- O senhor tem mesmo noção do que acabou de dizer? Que um sistema que torturava e matava pessoas sistematicamente, proibia a expressão de manifestações políticas e repreendia nossas referências culturais é realmente melhor? Além disso, sabe qual o salário de um professor da rede pública? O caminho da emancipação humana perpassa uma educação crítica que transforme a apatia das pessoas e, para isso, os professores têm sim que ser bem remunerados. O que você chama de baderna, eu digo que é uma justa manifestação social da classe trabalhadora!

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Em resumo, a bolha acadêmica corre muitas vezes paralelamente ao mundo. É normal incomodar-se com comentários conservadores de um almoço em família e ao mesmo tempo é um saco ficar se policiando a cada situação para encaixar o que se pensa com o que é aceitável. Também não é o caso de culpar-se por preferir Gramsci a Augusto Cury, tampouco de compará-los. Mas, convenhamos, os grandes pensadores socias, foram aqueles que, sem abdicar de seus ideais, tiveram a capacidade de se distanciar da situação e dialogar com o senso comum, com plena consciência de que estavam também inseridos nessa roda viva. Nas ciências humanas, por outro lado, somos sempre estimulados a criticar o senso comum, mas esquecemo-nos de que, para isso, é necessário conhecê-lo e, para conhecê-lo, é preciso experimentá-lo. Sair pro mundo que existe e, confessemos em voz alta, independe de nós. Pior do que estar no senso comum é isolar-se dele. Não sintamos raiva ou pena de quem não possui a mesma lente que a nossa para enxergar o mundo, não façamos do embate de ideia um massacre de sete pedras sobre o gato, mas uma possibilidade real de troca. É preciso a coragem necessária para se contaminar. Abaixo os puristas.

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Misturas Relacionadas:

Entrevista com MC Leonardo

O Meta-Intelectual

domingo, 16 de outubro de 2011

É velho, é novo, é clássico, é louco, é absurdo

. . Por Unknown, com 1 commentário

- Como é que é, “Ulisses”?
- Isso, já ouviu falar, o livro?
- Claro, já li até, escrito por James Joyce, mas entendi nadinha, bulhufas daquele calhamaço...
- Sim, mas falo de outro, do Ulisses da “Odisséia”, de Homero. De qualquer modo, Joyce se refere a Homero, mas de outra forma, num contexto completamente diferente, e mesmo parodiando, por assim dizer, aquela obra clássica. Porém, falo daquele da grécia antiga mesmo.
- Humm... não conheço.

Não, não desista logo agora que mal começaram estas linhas. Ou não se fruste se não vai encontrar uma discussão sobre teoria literária e personagens que atravessaram séculos. É quase lá, já que a conversa é sobre quem já passou muito tempo por aí afora, sobre quem parece que o Tempo (Deus, ou sabe-se lá o que...) não levou (ainda), porém, está deixando viajar pelos anos. Porque se, por exemplo, no dia 15 de dezembro de 1939 estreara um dos maiores clássicos do cinema mundial, “E o vento levou”, ele então completava no mesmo dia 32 anos, podendo ser assim considerado um homem maduro. Para época, casado, pai de uma filha, formado e trabalhando em seu escritório, sua vida seria, digamos, exatamente a mesma nos próximos muitos anos. Muitos... sim.

Imaginei, inclusive, que ele fosse o personagem de Borges em “El Inmortal”. O escritor argentino que mais que adorava a mitologia clássica, portanto, bem poderia ter roubado a história dele e o transformado magnificamente no narrador da novela que encontrara filósofos para quem estender a vida dos homens era equivalente a prolongar a agonia e multiplicar o número de mortes de todos eles. O mesmo narrador também encontrara a secreta Cidade dos Imortais: “tan horrible que su mera existencia y perduración (…) contamina el pasado y el porvenir y (…) mientras perdure, nadie em el mundo podrá se valeroso o feliz.” Pois a simples menção à imortalidade é desesperadora, ainda que a morte possa ser, para muitos, razão de infortúnio sem fim. Ser um "imortal", enquanto um vivente secular que se aproxima da previsibilidade de tudo que pode acontecer, torna a vida diária uma banalidade absurda, inconcebível, e para todos os outros viventes, contudo, a morte cotidiana os faz raríssimos: “éstos conmueven por su condición de fantasmas; cada acto que ejecutan puede ser último; no hay rostro que no esté por dibujarse como el rostro de un sueño. Todo, entre los mortales, tiene el valor de lo irrecuperable y de lo azaroso. Entre los inmortales, em cambio, cada acto (y cada pensamiento) es el eco de otros que en el pasado lo antecedieron, sin principio visible, o el fiel presagio de otros que en el futuro lo repetirán hasta el vértigo. No hay cosa que no esté como perdida entre infatigables espejos.” (Borges, em El Inmortal)

Tendo nascido tão logo engatinhava o século passado, parecia que assistir a duas guerras mundiais poderia ser suficiente para qualquer um, o que o XX não negou a nenhum daqueles que o atravessaram, e foram muitos, é verdade, mas veio a Guerra Fria, um mundo divido e o Brasil e a América Latina encobrindo-se de histórias que até hoje não nos foram publicizadas... Eu já estaria satisfeito, e no lugar dele hoje bradaria aos céus, ao inferno, ao diabo que fosse o responsável pelo meu esquecimento em vida...

Qual será a experiência temporal desse homem, se para muitos de nós o que importa é a pressa, o instante, os minutos contados para cada coisa? Se parece cada vez mais impossível ter direito à contemplação e preservar horas dentro de nós, como pode ele administrar o peso de tantos anos, de tantos eventos, acontecimentos, pessoas, sentimentos, pensamentos, mudanças, perdas, conexões, velocidades, transformações?

Jorge Luis Borges insiste e perturba, porque lembrando da Odisséia de Homero, com seu personagem Ulisses, com circunstâncias e mudanças compostas ao longo de uma viagem tão larga, impossível não seria a composição de tantos reajustes ao longo de uma trajetória qualquer, afinal, todos compomos nossas Odisseias, nossas viagens. No entanto, o simples fato de todos mortais serem mais um pelo mundo, quaisquer, indiferentes, constrói, com isso, uma imagem do oposto, de um suposto homem imortal quase como uma aglutinação de todos os homens, tal o alargamento de sua composição, de sua trajetória, de sua viagem pelo tempo. Um tal homem imortal, assim, é deus, é herói, é filósofo, é demônio, é o próprio mundo e, por fim, não é, é nada. A própria imortalidade parece levar ao absurdo, conduz quase que naturalmente à ideia de morte e, ao fim, à indiferença, já que um imortal pode ser todos, ao mesmo tempo, não é nenhum deles. Ele torna-se todos devido a previsibilidade das composições de sua viagem pelo tempo, ao passo que, paralelamente, é como se morresse para todos os outros homens. Viver mais de um século, especialmente quando pensamos no XX e no XXI, parece fazer um ser imortal. Ser esquecido pela própria morte, também, o que acaba por pintar a vida como a mais cruel assassina, contínua, diária e persistente de Oscar Niemeyer.

- E daí, hoje não é dia 16 de junho? Não foi hoje que aconteceu a história de Leopold Bloom, do tal romance de Joyce, aquele monstro de páginas não acontece todo num dia só: 16 de junho?? Que ficou conhecido depois como o Bloomsday??
- E daí, e daí?? Como assim? É um absurdo, cara, imagina Oscar Niemeyer, hoje com 103, se resolvesse escrever um autobiografia a lá James Joyce e seu “Ulisses”?!?! São dois absurdos, duas loucuras que não se encontram, viver mais de um século beirando o infinito, e inventar um mundo quase infinito em um único dia!

Fácilmente aceptamos la realidad, acaso porque intuimos que nada es real. (Borges)

sábado, 1 de outubro de 2011

Coluna do Leitor - As aventuras de Gardenal, o último homem livre - Parte II

. . Por Mistura Indigesta, com 2 comentários

Papai e mamãe que me desmintam, mas poucas vezes na vida alguém tem tanto poder como quando escolhe o nome de uma criança.
Tem basicamente dois jeitos de dar nome: o primeiro é ver com que se parece o pequeno ser: coisa meiga, nome meigo; coisa bruta, nome maiúsculo: por isso é difícil conhecer uma pitibul chamada Lilica, por exemplo. Mas – cá entre nós – ainda bem! Imagine agora se essa prática fosse usada em humanos, a quantidade de “inhos” que pululariam dessa coisa chamada apelido por diminutivo! Céus, quantos “fofinhos” e coisas do tipo não apareceriam?? Cê sabe daquele tipo que teima em atribuir apelido às pessoas, naquelas do “ora, não é que parece mesmo??”, imagina então se se faz isso com o nome?? Fora que poucas coisas são mais absurdas que dizer que um recém-nascido “parece com” ou “tem mesmo uma cara de”... Ainda que não sejam todos iguais, vai, mas pra daí dizer que “já” se parecem com??
O segundo jeito também não é muito melhor, embora – é verdade – seja muito antigo. É quando você deseja que seu pimpolho atraia pelo nome determinada característica da qual você gosta. Aí então vai abrir aquele livro da saudosa Tia Cotinha, “Os Significados dos nomes”, procurando alguma luz, alguma força oculta que possa impregnar aquela frágil criancinha. Assim – o que é uma pena – você acaba chamando seu filho de qualquer nome da moda, sem se dar conta de que as características desejadas são socialmente desejadas, no fim das contas, justamente porque todo o mundo quer. Você não é o único que gostaria de ter um filho iluminado ou guerreiro.
Por exemplo, não se tem registro das qualidades futebolísticas do camarada nascido no México em plena Copa de 70, e que recebeu de seu esperançoso papai a alcunha de Felix Carlos Piazza Everaldo Gerson Clodoaldo Pelé Rivelino Jair Tostão. Não, você não entendeu errado: a equipe do técnico Zagallo, então bicampeã mundial, deu nome a um sujeito. [Pelo menos é o que reza a lenda, e se for mentira... tanto melhor!] Exato, estes onze nomes, um depois do outro, compuseram a ópera de batismo do pobre menino. Mas – convenhamos – tudo leva a crer que o pimpolho não fez jus às expectativas do progenitor. Pelo menos não que eu saiba. Ainda bem, de novo! Se com um nome conseguíssemos atribuir características desejadas aos pequerruchos, onde a gente iria enfiar toda a grana que se injeta em programas de cientistas que querem criar brédpitis e giselebinchens?? E para colocá-los num catálogo, a preço tabelado – santa maria madalena! –, pra serem escolhidos pelos papais e mamães que não querem herdeiros feios??? Imagina a baita crise que não ia ser...
Mas o Patrique – se você não lembra quem é o Patrique, não tem problema, porque ele não é importante pra nossa história, mas se você for curioso mesmo, releia a parte I das “Aventuras de Gardenal – o último homem livre” –, que não tem nada com isso, estava lá tentando escolher o nome da criatura em seu quintal. Primeiro alguém – acho que foi a Rô – sugeriu o nome Tobias, que era simples e na moda, afinal, tinha um bonitão de novela que se chamava Tobias. Aí veio a rapaziada – provavelmente o Babá – com a idéia de botar o nome "Bola de Fogo" (♫ ♫ piririm piririm piririmsou eu Bola de Fogo, e o calor tá de matar...” ♫ ♫ lembra? o da “Atoladinha”?). Foi vetado pela ala radical do feminismo, a tradicionalista, claro, a mesma ala que acha que o fanque carioca é a mercantilização do corpo da mulher (a palavra é meio complicada mesmo, mas sabe como é essa gente intelectual). Só que aí a ala feminista prafrentex disse que o fanque, na verdade, é uma arma da libertação sexual da mulher que dá o corpo pra quem ela mesma quiser e portanto é uma tentativa de afirmação da mulher enquanto sujeita na sociedade opressora e blábláblá e bláblábli numa interminável (todas são) assembléia de gente chata.
Por fim, ufa!, alguém – tanto faz quem – se deu conta de olhar praquela criaturinha ali e descobriu, com algum espanto, que, indiferente a qualquer tentativa de lhe botarem um rótulo, ele já tinha um nome. Não como um pedigrí, que vira-lata não é dado à frescura, mas, assim, como que seu. E talvez não seja fortuito o peculiar gosto por filmes de ação daquele aprendiz do Bruce Lí, o tal do Txãqui Nóris. Rola assim, como que uma identificação... um reconhecimento... sei lá, entende?
O nome dele é Gardenal. E ninguém que o conheceu jamais duvidou que este nome lhe cai como uma luva. Há quem diga que foi a escolha do nome que fez com que ele ficasse assim, como dizer, desajustado. Francamente, acho que é prepotência demais. Para mim, Gardenal – que nasceu homem livre – escolheu seu próprio nome. O nome de um desajustado. O nome de alguém que não cabe exatamente no esquema. Alguém “esquisito” e que, portanto, bagunça a cabeça alheia. Alguém que não hesita em viver o que as outras pessoas acham loucura.
Agora, quem duvidar, quem achar que foi o nome que deixou ele meio lelé: que o prove! Mas sem muito blábláblá, pois eu também não tenho muito saco pra isso, né?!
Em tempo, vi que um leitor disse, na primeira parte dessas aventuras, que Gardenal, além de homem livre, é nietzscheniano... Pois então, meu caro, isso eu já não sei dizer, não. Inclusive já mo disseram que ele seria kantiano, hobbesiano, muçulmano e até marciano, veja só! Mas como para filosofia eu não tenho inclinação, e como também não é do meu feitio cometer exagero algum em qualquer prosa que seja, só posso afirmar que o camarada que pensa que é dono do Gardenal tem um gosto, assim, como eu poderia dizer... excêntrico – talvez ele mereça um série de textículos a serem publicados aqui, mas isso, definitivamente, não vem ao caso agora... – e embora tenha mesmo esses troço de filosofia germânica lá na biblioteca dele, eu nunca vi o Gardenal tentando lê-la, não! Nem o jornal que o pobre botava pro Gardenal se aliviar em cima este quis... Ele sempre foi mais chegado mesmo é num matinho, viu... Assim, mais natural, sabe... mais simples... Coisa de gente livre.

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Thiago Fernandes Franco é o Peixe, compete na ala dos leitores mais encrencas que se tem notícia.

Hugo Ciavatta, sim, contribuiu aqui e ali neste texto.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Quebrando Paredes: Medianeras

. . Por Thiago Aoki, com 1 commentário

Ao que tudo indica, o filme argentino "Medianeras", infelizmente, será pouco visto por aqui. Acabou perdendo espaço para superproduções (como Planeta dos Macacos e Árvore da Vida) e para filmes de diretores consagrados (como Melancholia e Super-8). Pode ser que, posteriormente, aconteça como seu fantástico compatriota “O Segredo dos seus olhos”, que acabou voltando à cena após a indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Mas semana passada, na seção de cinema do shopping, não somavam 10 espectadores, contando comigo e Rita, mi novia...

É uma pena, pois Medianeras é um daqueles filmes inclassificáveis, que consegue tocar em questões existenciais e sociais, sem certa “chatisse” que tal missão possa indicar. Neste sentido, leve sem ser superficial, lembra um pouco de “Pequena Miss Sunshine” ou, para pegar um exemplo mais recente, de "Juno", por mesclar o humor às situações trágicas do dia-a-dia.

Se em "Pequena Miss Sunshine" temos uma garotinha de família problemática que ingenuamente desafia os padrões da sociedade do espetáculo e em "Juno" a gravidez precoce de uma confusa adolescente, aqui, em "Medianeras", os desencontros de dois jovens fazem fundo a uma sagaz crônica da vida em uma metrópole.

O filme narra, paralelamente, as vidas de Martin (Javier Drolas), um webdesigner afetado por diversos transtornos de comportamento, e de Mariana (Pilar López), uma arquiteta frustrada e claustrofóbica que acaba de sair de um traumático relacionamento. Os dois são vizinhos que nunca se perceberam, jovens típicos da geração Y, com histórias semelhantes, imersos na solidão e que, mesmo sem saber, estão sempre em situações de quase encontro um com o outro. Com este jogo, o sagaz diretor Gustavo Taretto nos incita, espectadores, a torcer pelo encontro de ambos sem nos darmos conta de que também somos vítimas de nossas próprias solidões e prisões. O isolamento, neste caso, aparece como uma tentadora proposta do mundo urbano, cenário do qual somos parte. É comum que, durante o filme, associemos a Buenos Aires narrada com Campinas ou São Paulo.

Em determinados momentos do roteiro, Martin e Mariana fazem o papel de narradores-personagens, recitando textos pertinentes, em forma e conteúdo, e que, em diálogo com belas imagens da arquitetura urbana, compõem poéticas crônicas para o século XXI. Já com a característica de mistura de diferentes linguagens: o texto, fotografia, quadrinhos, áudio e visual.

Nas entrelinhas do roteiro, o questionamento e estranhamento de detalhes banais do cotidiano da cidade e que parecem já internalizados em nosso cinza espírito: os fios que enfeiam o céu, os prédios que escondem o Sol, a falsa promessa da “conexão” entre as pessoas, a publicidade nas medianeiras, o fracasso da caixa de e-mail vazia. É a angústia de uma classe média que, embora média, sente-se traída pelo esgotamento das promessas de uma vida urbana plena, revivendo, em outros moldes, o desencanto romântico pré-moderno do final do século XIX. A história se repete, tragédia e farsa.

Do cinema, saímos com a sensação curiosa de refletirmos sobre as trajetórias que poderiam ter sido e que não foram, sentindo, com certa graça e resignação, a impossibilidade de controle sobre o destino. No restaurante do shopping, no lanche-de-namorados-pós-seção-das-19h, olhávamos atentos para as pessoas sentadas às mesas e, assim como é comum fazermos no metrô, brincamos de descobrir que narrativa cada um traz consigo: para onde vão, de onde vieram, em qual estação saltarão. Ou, mais além, quantos encontros perdidos pelo caminho, quantos amores evitados pelo acaso. Impossível saber. Em alguns momentos, Mariana compara a vida na cidade ao livro “Onde Está Wally”, como se, sem rumo, esperássemos pelo encontro de algo que não sabemos o quê. O mundo, uma somatória de narrativas paralelas dispersas. Quando lemos os versos de Vinicius de Moraes, “a vida é a arte do encontro/ embora haja tanto desencontro pela vida”, pensamos em sua vida boêmia de amores deixados pra trás, mas Taretto vai além e faz da frase o mote da vida nos grandes centros. Para se ter relações humanas orgânicas entre os arranha-céus da urbe, é preciso desafiar a artificialidade do avatar de cada um, ultrapassar o limite imposto pelo espetáculo que faz da relação entre os homens uma relação mediatizada por imagens. Para lidar com a sombra dos prédios é preciso derrubar paredes, construir novas janelas, preparar o jardim, deixar o Sol entrar para que o acaso pouse e, enfim, o encontro possa acontecer.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Seção 11/09

. . Por Thiago Aoki, com 2 comentários

(Na seção 11/09 do purgatório, onde as almas falam a mesma língua)

-Além de tudo, jogaram meu corpo no mar.

-Me chamou?

-Não, disse “além de”, e não “Allende”. Dizia que além de tudo, jogaram meu corpo no mar. Até hoje não me conformo.

-Mas também, o que você esperava depois de matar 2996 civis.

-Não fui eu, foram mártires de Alá.

-Mas você comandou.

-Quem comandou foi a vontade de Alá. Feliz aquele que foi escolhido por Alá para ser um mártir.

-Olha, estou aqui no purgatório há 37 anos, e seus "mártires" há 10. Acho que se você e eles tivessem seguido tão bem as ordens Dele, não estariam aqui ainda.

-Malditos americanos.

-Veja, em primeiro lugar, prefiro que diga estadunidenses, pois também somos americanos. E mesmo assim, o povo estadunidense nada tem com isso. Você colocou-se no direito de ser Deus e matar pessoas por causa de disputas políticas religiosas econômicas, em suma, em nome do poder.

-Olha só quem está falando... Seu jeitinho paz e amor que deu certo né? Já pensou que pela sua incompetência e falta de pulso é que o seu país passou 17 anos em uma das piores ditaduras das Américas? Não se sente culpado? E toda essa sua benevolência te deixa aqui, no purgatório, como eu..

-Culpado? Por seguir minhas convicções? Claro que não, morri por elas e morreria de novo. Mesmo que, depois de minha morte, um amigo escritor colombiano tenha dito, com sabedoria, que meu erro foi a “amêndoa legalista que havia dentro de mim”.

-Viu só? Por isso joguei aviões em prédios he he he...

-Você é doente, fanático, o que é diferente...

-Vocês ocidentais, sempre legando ao irracional as atitudes que diferem da de vocês... É essa prepotência de julgamento que gera o ódio, meu combustível. Aliás, você esquerdista, e adorador de poesias, devia conhecer aquela frase de seu amiguinho comunista “O que é o assalto a um banco comparado à fundação de um banco?” É isso que penso! Qual o pecado moral de matar pessoas sujas? Quantas pessoas os americanos mataram depois da gente?

-Não posso estar escutando isso, Bin Laden citando Brecht! Não desvirtue e descontextualize Brecht, pelo amor de meus ouvidos... A frase que você deveria reproduzir era outra: “Pela Razão ou Pela Força”.

-Como?

-É o lema autoritário gravado em nossa moeda chilena. Brincava com amigos que deveríamos mudar para “Pela Razão, NÃO pela força”.

-Besteira, prefiro a frase da moeda...

-É, se “Alá” fez alguma coisa correta foi não te colocar no poder... Ainda bem que o oriente se livrou dessa... Coitados...

-Não precisamos de sua piedade... Nem de dizer o que é melhor para nós... E nem que diga o nome de Alá em vão...

-Pare com isso... Deixe de orgulho, estamos mortos e veja só... Os Estados Unidos financiaram o golpe que me matou e a ditadura sangrenta de Pinochet. O mesmo Estados Unidos que te armou, matou e está criando guerra atrás de guerra para exportar fast foods e importar petróleo no Oriente Médio. E derrotados, cá estamos no purgatório, um lugar sem território, sem nação, sem blocos econômicos, sem dinheiro, à espera do seu Alá.

-Se a mim faltou razão, a você faltou força.

-Acho que você não entendeu nada... A força que quero, não vem dessa militarização ridícula, que reproduz toda a lógica de dominação estadunidense. Quero a força das ruas, do espírito de revolta potencializado de cada chileno... Cheguei a dizer em entrevistas, que, em minha época, o povo tinha o governo, mas não tinha o poder! Jamais sairia matando inocentes por aí...

-Que cuti-cuti Allende! Por que não abre uma ONG? Abraça uma árvore? Quanta ingenuidade... Olhe pra mim... Meu poder vem da minha força! Da minha capacidade de destruir em nome de meus ideais, assim é o mundo, admita. Se chegasse ao poder, como você chegou, criaria a mais poderosa e disciplinada nação. Colocaria cada inimigo de Alá, no mármore do inferno!

-Em tempo de primavera árabe e revoltas estudantis chilenas, espero que, diferente de você, os homens tenham aprendido com a história.

-Aprenderam nada, continuam a ouvir ocidentais... Matam as pessoas erradas...

-Sinceramente, não dá pra conversar com você, é um fascista tal qual Bush, mas ainda mais decadente.

(Silêncio... Bin Laden abre a bolsa e começa a ler o Alcorão, quando é interrompido por Allende)

-Aliás, agora que está morto, por favor, me diga... Você tinha, digamos... Ligações com Bush antes do atentado? Digo, ele já sabia de tudo? Foi uma farsa minuciosamente armada?

-Olha... V-V-Veja bem... É uma questão delicada... Hum... Vamos fazer o seguinte, antes me responda... Você se suicidou mesmo ou foi assassinado pelos militares?

-Não é tão simples assim, o que aconteceu foi que...

(Nesse momento, uma luz amarela radiante paira sobre a cabeça de Allende, cegando-o. Também não consegue nada enxergar Bin Laden, que protege os olhos, ardem muito. Quando, enfim recupera a visão, está sozinho na seção 11/09 do purgatório. Já não há ninguém ao seu lado. Abre o Alcorão e recomeça a leitura.)


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thiago@misturaindigesta.com.br

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