Quando ouvi pela primeira vez a notícia que os chilenos queriam exumar o corpo de seu ex-presidente Salvador Allende, achei incrível. Nós não conseguimos nem falar sobre a nossa história e eles estavam, literalmente, desenterrando a deles. Fiquei animadíssimo. Isabel Allende, parente mais influente do morto (que não tem nada a ver com a escritora) coordenou a ação, que deveria descobrir de uma vez por todas se o falecido se matou ou foi assassinado.
Estive no Chile na semana do veredicto. Além de estar curioso para saber o final da história, essa era uma das poucas notícias recentes que sabia sobre o país. Então, na primeira oportunidade que tive de puxar assunto com um chileno, achei que seria adequado trazer a questão. Perguntei à motorista do ônibus. Achei que ela ficaria feliz de saber de meu interesse sobre sua terra e de saber que estávamos acompanhando o antifuneral até no Brasil. Mas, sem querer falar muito a respeito, ela me respondeu grosseiramente: “Allende se asesinou”. Se asesinou? Como assim? Quis perguntar pelo menos se ele se asesinou sozinho ou se a armada ajudou, mas tive vergonha. Descontente com meus ambíguos conhecimentos de portunhol, passei o dia sem entender a resposta.
No dia seguinte fizemos um Free Walking Tour pelo centro de Santiago. Em frente ao Palácio de la Moneda, sede do poder executivo, paramos para ouvir algumas explicações dramatizadas por nosso guia em inglês. O idioma estrangeiro não chegava a nos denunciar, mas parados em praça pública na hora do rush... Até o mais analfabeto dos chilenos sabia que éramos turistas. Os apressados nos espiavam e, com o canto do olho - da direita ou da esquerda -, verificavam o que se dizia com tantos gestos sobre seu país. Até que, sem que eu precisasse perguntar, o guia resolveu comentar sobre o morto. “Salvador Allende committed suicide”, contou. Desta vez em inglês claro e pausado, praticamente for dummies. Tentou engatar a contar sobre a perícia, as armas e as balas encontradas na cena do crime, mas, do outro lado da rua, um grito o interrompeu: “Es mentira!”. Com a credibilidade questionada, contentou-se em dar uma risada e dizer que esta era apenas a versão oficial, não necessariamente aceita por todos.
Neste dia, frustrado com o sentimento de que a história não passa de um apanhado de versões oficiais, fiquei pensando sobre o caso brasileiro. Sempre fui pela abertura dos arquivos da ditadura no Brasil. Porém, começo a ponderar que, dependendo do presidente, talvez eu prefira um bom lacre numerado.
Só se exuma um corpo uma vez. E, por mais que mude o governo, conta-se apenas uma versão oficial. Um governo se diz diferente do outro, mas o medo de que uma crise política possa ser mal vista internacionalmente e virar uma crise econômica impõe silenciosamente uma série de regras de conduta. Essa é uma delas. Portanto, se exumarmos a ditadura, teremos uma única chance a uma única versão oficial. E, com o oficial errado, podemos acabar passando a vida do outro lado da rua, gritando, como bêbados, que é tudo mentira.
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GASPARI, Elio. A ditadura exumada. Santiago: Mistura Indigesta, 2011. (Es mentira!)
4 palpites:
Gostei muito, delícia de texto, muito bem escrito... Li em 30 segundos... É ótimo viajar, dá um olhar diferenciado, do que quando estamos em nosso próprio país. E, no fundo nos descobrimos mais..
Mas voltando a Allende, me lembrei de um livro que entrou para minha lista de não-lidos, que se chama "O dia em que Getúlio matou Allende". É daqueles meio ficção meio realidade. Esse repórter, o Flávio entrevistou o Allende pouco depois do suicídio de Getúlio e ele falou sobre a possibilidade do suicídio para abdicar do poder. Getúlio dizia que só sairia morto e Allende defendeu o contrário, mas para o jornalista houve inspiração getulística no suicídio do chileno...
Tem também nas teses do Benjamin, a necessidade de contar a história dos vencidos...
E por aí vai, muito bom mesmo!
Excelente artigo! (E ainda por cima, aprendi que a Isabel Allende escritora não é filha do Salvador...)
Acho que é um dos melhores textos escritos por ti, Caião! E, com isso, por favor, não se iniba com os próximos, pelo contrário, cara.
Duas coisas são muito legais nesse texto, especialmente, o lance da (a)versão oficial, e dá versão oficial como mentira!! (!!)
Digo, isso também porque o texto une uma prosa desinteressada, aparentemente, uma narração gostosa, de viagem, a questões sempre candentes pra todos nós, a história política, no caso, do Chile, do Brasil, da América Latina também...
Os casos contados, da motorista, do guia turístico, ao lado das reflexões, tudo é bastante preciso e valioso.
É curioso - talvez mais bem dito, triste - como em nome dos monstros que se inventaram nos últimos tempos no jornalismo político, como governabilidade, governos abram mão de coisas absolutamente justas como a memória das pessoas... a história delas, a vida delas, putaqueopariu, porque pode gerar "crise"... Tenho a impressão, no entanto, que abrir um arquivo, do ponto de visto do esforço físico e da movimentação institucional, é tão mais simples que perdoar dívidas astronômicas de alguns bancos, ou mesmo salvá-los da falência. No fundo, dinheiro, trabalho, sobreviver, emprego, e crise economica, tudo isso passa, da-se um jeito, mas, óbvio, pra morte é que não há jeito. É tão mais simples...
Abração
Saiu, na última quinta-feira de 2011, o relatório final da investigação sobre a morte de Salvador Allende, concluindo que ele cometeu suicídio. Como eu havia escrito o texto A Ditadura Exumada - Aversão Oficial, sobre o incidente, deixo aqui um breve comentário sobre o caso.
A foto que acompanha o texto, apesar de colorida digitalmente é uma foto do dia do ataque ao Palácio de la Moneda, onde se suicidou Salvador Allende.
Conheço muito pouco da história do Chile e deste episódio específico, mas o que mais precisamos ver? O prédio estava totalmente cercado e ele era o alvo.
Quando escrevi o texto, estava coincidentemente relendo o livro Do Contrato Social, de Rousseau, e grifei a seguinte passagem que não utilizei em meu texto: "Todo homem dispõe do direito de arriscar sua própria vida para conservá-la. Jamais se disse daquele que se lança por uma janela para escapar a um incêndio, que seja culpado de suicídio? Jamais se atribuiu tal crime àquele que perece numa tempestade cujo perigo não ignorava ao embarcar?"
Existe suicídio nessas condições? A ciência pode ignorar as condições reais de temperatura e pressão? As ciências humanas não.
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