- “Chegar atrasado? Não acredito... Bom, depois conversamos...” – e desligou o telefone na minha cara.
O carro estava quebrado, chuva forte, isolado na estrada, sem poder nem abrir os vidros pra tomar um ar. Se a bateria funcionasse, poderia ouvir uma música para relaxar. Trinta minutos pra chegar o guincho, poderia estar lendo algo, trabalhando. Mas não, apenas meu mau-humor, e pensamentos sobre a impotência diante do fato: nada poderia fazer.
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O que pode e o que não pode. Desde que nascemos, é a esta indagação que respondemos. Não pode colocar o dedo na tomada. Pode abraçar o amigo. Não pode jogar bola dentro de casa. Pode comer toda a comida.
Parece simples, mas o "pode-não-pode" complexifica-se ao longo do tempo, principalmente quando pensamos em situações coletivas. Pode pegar um atestado médico falso para descansar do trabalho? Pode matar para se defender? Pode prender um político? Pode guerrear com um país vizinho? Talvez por isso as disputas de “poderes” são consideradas como um dos principais combustíveis de nossa história. A maioria das sociedades exalta, em suas trajetórias, os homens e as poucas mulheres que possuíram o direito de dizer aos demais o que "pode" e o que "não pode".
A democracia que vivemos no Brasil e na maioria do mundo, ao contrário da intenção de seu discurso, não se configura como um espaço onde a maioria da população tem a possibilidade de participar da decisão do que "pode" e do que "não pode". O que há é uma votação onde se escolhe quem serão os responsáveis por tal decisão. E, por uma série de motivos, essa responsabilidade tem sido, historicamente, legada às classes que se beneficiam dessa estrutura social. E assim, como time que tá ganhando não se mexe, com um ajuste aqui, outro ali, a coisa se mantém como está.
Ocupar uma reitoria, uma praça pública, participar de uma manifestação ou mesmo contestar as micro-relações do dia-a-dia não é promover uma baderna, mas a criação de um espaço e momento onde se para de ouvir o que "pode" o que "não pode", para pensar coletivamente o que poderia ser. Não é uma questão de moralismo, pois tão violento como romper uma suposta legalidade, é manter uma lei que amarra harmonicamente todo o ciclo vicioso de reprodução do "poder" e "não poder". E também não é questão de ter ou não dinheiro. É questão de ter ou não possibilidade de participar da construção do mundo.
Frases de outrem chegavam à minha memória. “Daqui a pouco ele amadurece”. “Isso é coisa de juventude”. “Quando ele trabalhar vai ver só”. Pensava nas todas tantas pessoas que dizem diariamente "podeis" ou "não podeis". E de como, a obediência necessária para as coisas que sempre foram assim continuarem a serem assim faz com que percamos a cada dia a capacidade de nos indignar, aceitando o básico. Crescer é isso, saber aceitar? Quão exorbitante será a diferença, terrível diferença, entre o tamanho de nossas asas e a altura de nossos sonhos?
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Foi neste momento que minha cabeça, que estava em algum lugar longe, voltou, assustada com um barulinho do meu lado. Toc Toc Toc. Olhei instintivamente, já havia parado a chuva e um passarinho de cor diferente bicava o vidro do carro com força. Às vezes, embrutecidos pela rotina, não conseguimos enxergar além do que vemos, e por muitas vezes em minha história, a cena fora envolta por certa obviedade: um passarinho, que, sem saber o que é o reflexo de um espelho, ataca o vidro do carro. Fossem esses dias, sorriria de lado, um pouco com pena da ternura de sua tolice. Mas naquele momento, entendi que no fundo somos todos como este passarinho inconformado, procurando por si mesmo em diferentes espaços, tentando decifrar a imagem no espelho, insistindo, insistindo, insistindo.
1 palpites:
li em algum lugar:
"quando a gente é criança todo mundo fala para corrermos atrás dos nossos sonhos. quando somos adultos todo mundo faz de tudo pra você parar de fazer isso".
é ou não é uma belezinha de frase?
smac
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