Bom dia, vizinho
Acho que você não me conhece. Esquisitas são as nossas vidas, porque na cidade dos meus pais, por exemplo, que não é nenhum fim de mundo de pequenina, todos na rua, no quarteirão, se conhecem, senão amigos, pelo menos de cumprimentos rotineiros. Já aqui, por outro lado, neste lugar tão pequeno, nós, eu, que estou aqui há quase um ano nesta rua, nunca sequer vi você entrar ou sair de casa. Se pelo menos houvesse um elevador para nos encontrarmos, casualmente, como em geral acontece nos condomínios verticais, mas não há, são apenas nossas casas, uma de frente para a outra.
Bom, mas quem sou eu, que te escrevo agora? Sou um estudante, divido a casa aqui com uma amiga - e o namorado dela, que sempre está presente, é verdade, mas pelo menos ele faz café de vez em quando, ainda que economize pó pra isso, céus! -, saímos todos os dias para passear com a cachorrinha aqui de casa, você já deve ter reparado. Não, eu não sou aquele de barba e cabelos desgovernados. Uso óculos também, mas são maiores que o meu rosto, e se pareço desengonçado e atrapalhado, acertou. Só não sou eu também quem pára sempre com uma das mãos na altura da cintura, nas costas, e com a outra fica coçando o queixo. Tsc tsc. Conheço poucos vizinhos neste quarteirão, alguns sei apenas quem são, poucos eu cumprimento. Sabe como é, frequento a padaria aqui perto, na rua de trás, então alguns eu vejo com mais regularidade. Sua casa pra mim antes era apenas mais uma no cenário da rua, agora não, mesmo sem nunca ter posto os olhos em você, sei quem vive aí nesta casa. É.
Há uma semana, havia acabado de escurecer nesse horário de verão, e eu, que chegava em casa, vi um furgão enorme da Polícia Militar na frente da sua casa. Você já deve ter visto, era um carro daqueles da base local. “Comunitária”, se eu não estiver enganado, é a palavra que está escrita na lateral do veículo. Seis policiais estavam na calçada de sua casa. As luzes da sirene estavam ligadas, girando, e pelo menos não tinha aquele apito, só mesmo as luzes informavam a urgência. Mais do que curioso, fiquei assustado, muito, mesmo. Imaginei que fosse um assalto, um roubo, pela minha cabeça passaram ainda estupro e morte, coisas que, infelizmente, tem sido comuns mundo afora. Três mulheres, duas senhoras e uma moça estavam junto aos policiais, e todos olhavam para sua casa escura, fechada.
Não, não, não fiquei preocupado por serem tantos policiais, não acredito que eles sejam todos maus por natureza, profissão ou condição social, ou que sejam todos iguais, como autômatos treinados única e somente para bater, prender e matar, mesmo que diariamente encontremos exemplos de violência policial, abuso de autoridade, corrupção etc. São funcionários públicos, pelo menos por enquanto, cidadãos comuns, bem informados, formados e mal pagos. Só que muitos são pessimamente preparados, é verdade, porém, os problemas que envolvem a polícia são sociais, de organização e administração pública, são problemas políticos. Nem passa pela minha cabeça, também, que policiais agem da mesma forma em outros bairros da cidade, infelizmente, pois deveriam sim agir, tal como fizeram aqui, em todos os lugares. A realidade é outra, bastante cruel. Aliás, seria ingenuidade minha ainda imaginar que eles agissem aqui da mesma forma que agem quando sobem o morro de uma favela, mesmo que, paradoxalmente, no fim das contas, a minha vontade mais recôndita, naquela noite, fosse essa.
Digo isso porque sei que você deve ter reparado que desde semana passada o noticiário falou bastante da polícia, com tudo que tem acontecido no campus da USP Butantã, e agora na Rocinha carioca. Ficou tudo muito estranho na USP, a polícia já estava lá há muito tempo, José Grandino Rodas é quem não deveria estar, ser o Reitor, já que não foi eleito pela maioria no processo eleitoral discutível dali, mas o governador é quem manda. E Alckmin disse que os estudantes precisavam de aulas de democracia por protestarem... puxa, há muitos erros, equívocos nisso tudo, e eu também tenho minhas discordâncias e reticências quanto a muitas das ações dos estudantes, enfim, divago, mas para dizer o mínimo, se respeitássemos sempre o Estado de Direito (nem sempre) Democrático, continuaria tudo como está, e não está tudo bem. Aceitar as regras do jogo não significa não exigir que elas mudem ...
Mas sem saber o que estava ocorrendo na porta de minha casa, sem nunca ao menos ter te visto, vizinho, corri para minha casa, deixei as sacolinhas do supermercado e voltei imediatamente para a rua. Perguntei à moça que mais próxima estava o que acontecia ali. Mais apreensivo fiquei com o intervalo das palavras e com os olhos dela. Atrás daqueles óculos fundos, eles estavam encharcados, e a voz dela também soluçava. Meu Deus - como pode um agnóstico repetir tantas palavras religiosas? - era o terceiro dia, e ela descobrira então, finalmente percebera, morando na rua de trás, e tendo a própria casa dela como fundo da sua, vizinho, o que estava acontecendo. O gato de estimação dela, já bastante velho, tinha sido preso por você, que não o alimentava nesse período. O animal, contudo, começou a grunhir de desespero, pedindo socorro. Ouvindo o bichano, só a sua casa, vizinho, poderia ser o paradeiro dele, pois no terreno baldio ao lado o gato não estava, nem na casa da outra senhora, do outro lado, a mulher é amiga da moça e da mãe dela.
Acionada no final da tarde, a polícia militar – a PM(!), vizinho – enviara o furgão da base comunitária, e todos os soldados estavam na calçada com algumas lanternas tentando iluminar sua casa. A moça me dissera que, quando os policiais chegaram, você apagou as luzes e fechou a janela do corredor também. Você se escondeu. A mãe da moça gritava, ela te xingou bastante, vizinho, mas não se preocupe, se fosse num estádio de futebol, nada ali seria um xingamento, aquela senhora, da liga das carolas, só estava nervosa demais. Ela queria que os policiais pulassem o muro, batessem na porta, nas janelas. Todas elas queriam que os policiais fizessem você aparecer. Não queriam que você explicasse algo, convenhamos. Um dos soldados repetia que não, que não poderia entrar ali, que ele não possuía mandado ou qualquer ordem oficial para realizar algo nesse sentido. Educação e polidez incríveis se comparados aos colegas de profissão que atuam em outros bairros. Quando se ouve os relatos vindos da Rocinha então, invejáveis os soldados daquela noite na sua porta. No final, não entendi por que eu mesmo não fiz isso tudo: por que não pulei o muro e bati nas suas portas e janelas naquele momento? Voltei para minha casa.
Agora, espero, profunda e imensamente, que eu nunca cruze com você por qualquer desgraça que seja. Espero, também, que você tenha matado o gato, mas que não tenha esperado a morte dele por inanição. Não acredito, não consigo acreditar, que a sua covardia e estupidez tenham te levado à assistir a morte lenta do bicho, tampouco a devolvê-lo, soltando-o, confirmando sarcasticamente o que você fez. Não há arrependimento, também, que possa mudar o fato de você ter torturado um animal, deixando-o sem comida e preso. Você deveria ser processado, condenado e preso sem direito à fiança. Te desejo muito mal, vizinho, aliás, nem sei por que te escrevi um bom dia no início ...
Hugo
2 palpites:
Porque?
Sabe, acho que cronicas do cotidiano, em que fatos quaisquer são escolhidos como pano de fundo para uma outra discussão, é um prato cheio para aqueles que sabem contar histórias. E, você Hugo, sabe muito bem contá-las. Sabe escolher as histórias, os pontos interessantes delas, enfatizá-los, juntar duas histórias com argumentos parecidos formando uma só, etc, etc, etc...
Digressões são boa opção para falar de outros assuntos que por vezes podem não ter nada em comum com o tema do texto principal, mas que de certa maneira explica-o, ajuda a entender, etc, etc, etc...
Nesse texto você faz as duas coisas, mas sem maestria alguma. Suas digressões são atuais, casos e fatos que estão ai na mídia, mas que no caso do texto parecem só servir de contraponto, sem transparecer uma opinião mais marcada sobre o que se quer dizer. E eles não ajudam a entender o argumento do seu texto, estão ali, parece, linkados por que precisava escrever alguma coisa sobre o que vem acontecendo e achou que seria interessante se viesse no meio de algum texto sobre outra coisa. Como se tivesse um varal, uma linha, em que se estendesse as outras idéias, prendesse com o pregador, mas que não fazem parte do mesmo caminho do varal, estão ali presas porque parece que aquele varal pode ter essa utilidade.
E, porque? Uma carta de ódio ao seu vizinho? Ódio ao vizinho pelo fato de ter prendido o gato da outra vizinha? Ok, também tenho dó do gato, acho meio maluquice, todos ficamos muito mais felizes pelo final feliz, mas, não é mais insano o que as suas digressões trazem? Policiais entrando na Rocinha para "civilizar" ou na universidade?
Porque?
Difícil responder, Fábio...
Alguns porquês, acredito, a gente incorpora e vive, e diante destes parece que é melhor se perguntar o "como". Acho que você tem insistido muito num "porque" útil, que serve a algo. Não sei, isso é uma impressão, uma dúvida minha, na verdade. Vamos pensando sobre isso.
Tentando pensar teu último parágrafo, me incomodam algumas palavras tuas, o "mais insano", por exemplo. Uma das coisas que pensei ao escrever o texto, pra usar chavões e clichês talvez, pensava naquele negócio de "banalização do mal", em como coisas, no meu modo de ver, escabrosas acontecem esmiuçada e diariamente ao nosso redor, e se não estamos na Rocinha, ou no Cairo, não percebemos, tratamos como se fosse apenas mais uma maluquice. Não me agrada essa hierarquização do "mais insano". Violência e tortura são violência e tortura. Mas acho que não explorei isso direito no texto... de qualquer modo, valeu pelo comentário!
Abração
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