- Como é que é, “Ulisses”?
- Isso, já ouviu falar, o livro?
- Claro, já li até, escrito por James Joyce, mas entendi nadinha, bulhufas daquele calhamaço...
- Sim, mas falo de outro, do Ulisses da “Odisséia”, de Homero. De qualquer modo, Joyce se refere a Homero, mas de outra forma, num contexto completamente diferente, e mesmo parodiando, por assim dizer, aquela obra clássica. Porém, falo daquele da grécia antiga mesmo.
- Humm... não conheço.
Não, não desista logo agora que mal começaram estas linhas. Ou não se fruste se não vai encontrar uma discussão sobre teoria literária e personagens que atravessaram séculos. É quase lá, já que a conversa é sobre quem já passou muito tempo por aí afora, sobre quem parece que o Tempo (Deus, ou sabe-se lá o que...) não levou (ainda), porém, está deixando viajar pelos anos. Porque se, por exemplo, no dia 15 de dezembro de 1939 estreara um dos maiores clássicos do cinema mundial, “E o vento levou”, ele então completava no mesmo dia 32 anos, podendo ser assim considerado um homem maduro. Para época, casado, pai de uma filha, formado e trabalhando em seu escritório, sua vida seria, digamos, exatamente a mesma nos próximos muitos anos. Muitos... sim.
Imaginei, inclusive, que ele fosse o personagem de Borges em “El Inmortal”. O escritor argentino que mais que adorava a mitologia clássica, portanto, bem poderia ter roubado a história dele e o transformado magnificamente no narrador da novela que encontrara filósofos para quem estender a vida dos homens era equivalente a prolongar a agonia e multiplicar o número de mortes de todos eles. O mesmo narrador também encontrara a secreta Cidade dos Imortais: “tan horrible que su mera existencia y perduración (…) contamina el pasado y el porvenir y (…) mientras perdure, nadie em el mundo podrá se valeroso o feliz.” Pois a simples menção à imortalidade é desesperadora, ainda que a morte possa ser, para muitos, razão de infortúnio sem fim. Ser um "imortal", enquanto um vivente secular que se aproxima da previsibilidade de tudo que pode acontecer, torna a vida diária uma banalidade absurda, inconcebível, e para todos os outros viventes, contudo, a morte cotidiana os faz raríssimos: “éstos conmueven por su condición de fantasmas; cada acto que ejecutan puede ser último; no hay rostro que no esté por dibujarse como el rostro de un sueño. Todo, entre los mortales, tiene el valor de lo irrecuperable y de lo azaroso. Entre los inmortales, em cambio, cada acto (y cada pensamiento) es el eco de otros que en el pasado lo antecedieron, sin principio visible, o el fiel presagio de otros que en el futuro lo repetirán hasta el vértigo. No hay cosa que no esté como perdida entre infatigables espejos.” (Borges, em El Inmortal)
Tendo nascido tão logo engatinhava o século passado, parecia que assistir a duas guerras mundiais poderia ser suficiente para qualquer um, o que o XX não negou a nenhum daqueles que o atravessaram, e foram muitos, é verdade, mas veio a Guerra Fria, um mundo divido e o Brasil e a América Latina encobrindo-se de histórias que até hoje não nos foram publicizadas... Eu já estaria satisfeito, e no lugar dele hoje bradaria aos céus, ao inferno, ao diabo que fosse o responsável pelo meu esquecimento em vida...
Qual será a experiência temporal desse homem, se para muitos de nós o que importa é a pressa, o instante, os minutos contados para cada coisa? Se parece cada vez mais impossível ter direito à contemplação e preservar horas dentro de nós, como pode ele administrar o peso de tantos anos, de tantos eventos, acontecimentos, pessoas, sentimentos, pensamentos, mudanças, perdas, conexões, velocidades, transformações?
Jorge Luis Borges insiste e perturba, porque lembrando da Odisséia de Homero, com seu personagem Ulisses, com circunstâncias e mudanças compostas ao longo de uma viagem tão larga, impossível não seria a composição de tantos reajustes ao longo de uma trajetória qualquer, afinal, todos compomos nossas Odisseias, nossas viagens. No entanto, o simples fato de todos mortais serem mais um pelo mundo, quaisquer, indiferentes, constrói, com isso, uma imagem do oposto, de um suposto homem imortal quase como uma aglutinação de todos os homens, tal o alargamento de sua composição, de sua trajetória, de sua viagem pelo tempo. Um tal homem imortal, assim, é deus, é herói, é filósofo, é demônio, é o próprio mundo e, por fim, não é, é nada. A própria imortalidade parece levar ao absurdo, conduz quase que naturalmente à ideia de morte e, ao fim, à indiferença, já que um imortal pode ser todos, ao mesmo tempo, não é nenhum deles. Ele torna-se todos devido a previsibilidade das composições de sua viagem pelo tempo, ao passo que, paralelamente, é como se morresse para todos os outros homens. Viver mais de um século, especialmente quando pensamos no XX e no XXI, parece fazer um ser imortal. Ser esquecido pela própria morte, também, o que acaba por pintar a vida como a mais cruel assassina, contínua, diária e persistente de Oscar Niemeyer.
- E daí, hoje não é dia 16 de junho? Não foi hoje que aconteceu a história de Leopold Bloom, do tal romance de Joyce, aquele monstro de páginas não acontece todo num dia só: 16 de junho?? Que ficou conhecido depois como o Bloomsday??
- E daí, e daí?? Como assim? É um absurdo, cara, imagina Oscar Niemeyer, hoje com 103, se resolvesse escrever um autobiografia a lá James Joyce e seu “Ulisses”?!?! São dois absurdos, duas loucuras que não se encontram, viver mais de um século beirando o infinito, e inventar um mundo quase infinito em um único dia!
Fácilmente aceptamos la realidad, acaso porque intuimos que nada es real. (Borges)
1 palpites:
Hugão, achei o texto meio confuso em algumas passagens. Sei que a culpa é nossa também, que ficamos te apressando para postar o texto perto do dia 16.
Enfim, formatos à parte, o pensamento é bastante perturbador.
Fica meio nas entrelinhas que a morte é necessária porque apenas um recorte pode dar uma sensação de sentido a nossa existência.
Entendi com sua leitura do Borges que precisamos recortar um período de tempo para conseguimos nos diferenciar de outros.
Porém, entendi com suas outras leituras que é tão absurdo expandir infinitamente a narrativa no tempo quanto na profundidade.
É tão absurdo viver infinitamente quanto se aprofundar infinitamente na narrativa de uma experiência breve.
Talvez o texto seja perturbador porque não conclui.
Ou talvez seja perturbador porque coloque em xeque as poucas alternativas à morte que conseguimos imaginar. E a morte é tão absurda quanto elas.
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