Quando assisti ao “A Culpa é do Fidel”, uma produção francesa, há mais de dois anos, pensei que era apenas mais um filme sobre ditaduras latino americanas, como a chilena que ali era acompanhada na França retratada pelo filme, a do início dos anos 70, e pelo olhar de uma criança. Há tantos filmes nesse sentido, como aquele brasileiro que ficou bastante conhecido, “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias”, de Cao Hamburger, muito semelhante ao “A Culpa...”, pois também traz o olhar infantil para o contexto político da época. Outro exemplo, mais próximo ainda ao “A Culpa...”, é “Machuca”, filme chileno sobre a ditadura daquele país e, da mesma forma, com uma belíssima leitura a partir da vida de duas crianças, quase adolescentes.
É, “A Culpa é do Fidel” talvez seja apenas mais um filme. Acontece que com as manifestações, os protestos no Chile a respeito da Educação Pública, com o criação da Comissão Nacional da Verdade pelo legislativo brasileiro, com a minha descoberta de um grupo de Resistência Nacionalista em São Paulo, e também com o mais recente Occupy Wall Street, enfim, essas coisas quase sempre me remetiam ao título e, por que não, ao filme: a culpa é do Fidel!! Então achei melhor revê-lo, e foi só assim que reparei que a diretora, Julie Gavras, é filha de outro cineasta, Constantin Costa-Gavras, um militante de esquerda na França, e exatamente desde os anos 70. Costa-Gavras se destacou pelo trabalho político, denunciando as atrocidades das ditaduras mundo afora. Se a protagonista de “A Culpa...”, Anna, uma criança de nove anos, acompanha a vida de militância dos pais - como não notei antes? -, o filme é, nesse sentido, autobiográfico!
Além disso, se a cineasta de fato não fez do filme, também uma adaptação do livro Tutta Colpa di Fidel, de Domitilla Calamai, uma autobiografia completamente, ou um pequeno recorte de suas memórias de infância, encantado que sou pelo filme, comecei a torná-lo, percebi o quão ele me é autobiográfico, de qualquer modo. Não, eu não cresci na França dos anos 70, meus pais não eram militantes de esquerda e tampouco fui educado em um colégio católico. Muitos, mas muitos, centenas, milhares de pessoas pelo mundo podem encontrar suas narrativas pessoais ali naquele filme. Fui apenas mais um que ficou brincando de trocar a personagem Anna por si próprio, ou por meu pai, no caso. Justamente por que foi meu pai quem viveu aqueles anos, os 60 e os 70, como filho de um ex-militante comunista.
E pior que comunista só mesmo um ex-comunista, dizem. Não é um caso – ainda bem – como o do Corvo da política brasileira, Carlos Lacerda, porém, Nazareno Ciavatta, meu avô, já havia deixado o Partido Comunista Brasileiro em meados dos anos 50 quando foi preso, logo depois do Golpe Militar de 1964. Um funcionário da Prefeitura de Ribeirão Preto, militante no máximo de um burocrático e esvaziado sindicato de servidores públicos, preso como agitador comunista... Ainda falta a Woody Allen conhecer a história brasileira daqueles anos. Porque depois as coisas mudam muito, é verdade, e o que poderia soar como piadinha infame aparece de maneira obscura, absoluta e profundamente obscura para este país que ainda hoje sabe pouco sobre sua própria memória política... Chegariam o final dos anos 60 e a década de 70, ambos para dizer que não havia nada de engraçado. “A Culpa...” é de quem? Do Fidel, claro!
Mas se aquele coroa, já com mais de cinquenta anos em 64, fora preso por ter, de fato, militado intensamente nos anos 50, não deixou ao seu primogênito qualquer inspiração política. Meu pai, tenho eu a sensação, passou ao largo de qualquer proximidade com aquilo divide o meu mundo: esquerda x direita; revolucionário x reformista; liberal x conservador. Com ele ficou a velha divisão cristã entre o bem e o mal vinda de minha avó, senão uma carola tradicional, uma católica heterodoxa, digamos, que benzia e orava com as mais diferentes combinações do interior paulista. A ausência da figura paterna, em meu pai, só em anos recentes deu lugar a uma espécie de "herói" tardio, agora com algum romantismo, mas que antes era lembrado apenas, da maneira como vejo, como um sujeito duro, polêmico, machista, capaz de violências simbólicas marcantes para qualquer criança ou adolescente. “A Culpa...” é de quem? Do Fidel, claro!
É assim que reencontro a personagem da menina Anna, comigo, quando me pego lembrando da confusão que era imaginar que meu avô fora um comunista... o que é, afinal de contas, para uma criança, para um adolescente egresso do fim da Guerra Fria, um comunista?? Como meu pai se tornara proprietário, veja bem, proprietário(!) de uma oficina mecânica sendo filho de um comunista? Pois um proprietário seria um capitalista? Um burguês, um explorador? Como assim? Ele também é um mecânico, vende sua força de trabalho, portanto, ainda é proletário: que contradição! Não, é um pequeno burguês, um profissional liberal: eis a classe média! Que horror... Maldito Fidel!!!
No Chile dos anos 70, os que foram contrários a Salvador Allende ficaram conhecidos como “momias”. Assim, irônica e carinhosamente, era Anna chamada pelo próprio pai e pelos amigos militantes da família: “la pequeña momia”. Pois mais do que ser contra ou a favor, ou ser ou não ser de uma bandeira, ela parece dizer, de cara doce e emburrada ao longo do filme, que o mundo e as pessoas são malucas e estúpidas. Que, muitas vezes, não faz diferença ser de direita ou de esquerda, ateu ou crente, afinal, como uma criança, importante é só ser curioso e desconfiado.
Julie Gavras e Nina Kervel durante as gravações de "A Culpa é do Fidel"
Hoje, pra quem apoia e incentiva coisas pra frentex, de esquerda colorida e descolada, como lembra o Thiago Aoki sempre, ainda é difícil dialogar com falas comuns sem reproduzir estereótipos, ou maniqueísmos. Mas algumas falas saem do comum, não são somente opiniões, são agressões assustadoras, e difícil passa a ser recolocar qualquer margem para um debate entre iguais. Ouvir, por exemplo, que vivemos numa “democracia burguesa ilusória”, de uma “grande mídia dominada pelo capital transnacional”, pra mim, é de um totalitarismo simbólico tão desanimador quanto imaginar a validade dos argumentos de grupos de skinheads.
Lembro sempre de um tiozinho no busão que, em meio a qualquer onda de denúncias de corrupção na política brasileira, dizia que bom mesmo era no tempo “deles”, enquanto movimentava uma das mãos sobre os ombros aludindo às estrelas presentes na farda militar. Ao início de comédia pouco usual da ditadura brasileira, acredito, ele não fazia referência, mas sim aos anos de maior repressão. Sentado no ônibus, em poucos segundos recordei as histórias de quem havia sido interrogado pelo delegado Sérgio Fleury, e do que passou a ser o DOPS... não poderia esquecer das pilhas para o meu MP3, é verdade, e antes que escapasse pelo canto dos olhos a foice e o martelo do meu DNA, saltei do ônibus sussurando: bendito Fidel...
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