quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Considerações sobre o senso comum...

. . Por Thiago Aoki, com 6 comentários

Ter o pensamento social como objeto de nossa profissão, significa viver, dia-a-dia, um dilema. Quase sem querer somos levados a uma certa arrogância, pensando que fomos um dos poucos iluminados que tivemos a capacidade de sair da redoma de dominação dentro da qual o resto do mundo está trancafiado. Por eufemismo, trocarei o termo “arrogância” para “dificuldade em lidar com o senso comum”.

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Situação 1:

O acadêmico está em uma livraria lendo manuscritos inéditos de Dostoievski quando escuta por de trás da prateleira:

- Esse livro deve ser bom. “Seja um vencedor”. Um amigo leu, disse que foi ótimo para ele superar suas dificuldades e ser alguém na vida. Quero comprar, talvez me inspire pra conseguir um novo emprego, uma vida nova.

Nesse momento o acadêmico já está mordendo a camisa, suando a mão, costurando com os pés. É quando ele não aguenta vai ao outro lado e desabafa sereno:

- Meu querido, sinto muito, mas a desilusão que você vive é fruto de um problema estrutural da sociedade capitalista e mesmo suas ideias, costumes e preferências refletem a sua posição dentro dessa estratificação social. Portanto, não será com pensamento positivo e figas que você sairá dessa lástima. Melhor você tentar entender o processo de luta de classes instalado na atual conjuntura econômica...

Situação 2:

O acadêmico está tomando seu café sem açúcar na padaria que usa grãos árabes quando escuta da mesa ao lado:

- Uma coisa que não admito é pirataria. Vai saber o que você não está financiando quando compra um filme pirata: assassinatos, drogas, crimes. Deus me livre. Quem hoje em dia não tem 5 reais pra alugar um filme? Eu mesmo já passei fome, mas corri atrás, estudei, aprendi a investir na bolsa e hoje estou aqui. Pra mim, pirataria é coisa de vagabundo.

É quando se escuta o tilintar um pouco mais forte da xícara sobre o pires. Olha-se pro lado e o acadêmico, já em pé, voicifera:

- Você sabe quantos milhões giram em torno da indústria cultural? Quantas expressões artísticas são deixadas de lado, quantas padronizações são feitas em nome dessa indústria? Qual a autenticidade da arte perante sua mercantilização? Além disso, parabéns, você venceu na vida e faz uma coisa “digna”, jogar na bolsa de valores. Se você tivesse investido nas ações daquela marca de roupa espanhola que usa mão-de-obra escrava, será que saberia o que estava por trás dessa ação limpa e pudica?

Situação 3

O acadêmico está em um ônibus lotado quando se percebe um enorme trânsito. Logo alguém diz que professores estão fazendo greve e fechando a passagem na rua. Ao saber disso, um tiozinho brada:

- Por isso que digo, melhor mesmo é na época dos militares, pelo menos esses vagabundos não faziam baderna.

Um sujeito solta-se do apoio e cambaleia, quase caindo no chão do ônibus, é o acadêmico. Que se recompõe, respira fundo, conta até 10 e lá vai:

- O senhor tem mesmo noção do que acabou de dizer? Que um sistema que torturava e matava pessoas sistematicamente, proibia a expressão de manifestações políticas e repreendia nossas referências culturais é realmente melhor? Além disso, sabe qual o salário de um professor da rede pública? O caminho da emancipação humana perpassa uma educação crítica que transforme a apatia das pessoas e, para isso, os professores têm sim que ser bem remunerados. O que você chama de baderna, eu digo que é uma justa manifestação social da classe trabalhadora!

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Em resumo, a bolha acadêmica corre muitas vezes paralelamente ao mundo. É normal incomodar-se com comentários conservadores de um almoço em família e ao mesmo tempo é um saco ficar se policiando a cada situação para encaixar o que se pensa com o que é aceitável. Também não é o caso de culpar-se por preferir Gramsci a Augusto Cury, tampouco de compará-los. Mas, convenhamos, os grandes pensadores socias, foram aqueles que, sem abdicar de seus ideais, tiveram a capacidade de se distanciar da situação e dialogar com o senso comum, com plena consciência de que estavam também inseridos nessa roda viva. Nas ciências humanas, por outro lado, somos sempre estimulados a criticar o senso comum, mas esquecemo-nos de que, para isso, é necessário conhecê-lo e, para conhecê-lo, é preciso experimentá-lo. Sair pro mundo que existe e, confessemos em voz alta, independe de nós. Pior do que estar no senso comum é isolar-se dele. Não sintamos raiva ou pena de quem não possui a mesma lente que a nossa para enxergar o mundo, não façamos do embate de ideia um massacre de sete pedras sobre o gato, mas uma possibilidade real de troca. É preciso a coragem necessária para se contaminar. Abaixo os puristas.

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Misturas Relacionadas:

Entrevista com MC Leonardo

O Meta-Intelectual

6 palpites:

Um dos seus melhores, Thiago. Parabéns!

falou e disse! e deu ânimo para amanHã voltar à sala de aula e enfrentar tudo isso aí...

Chinês, me parece que este é um passo decisivo para finalmente (vai tarde) você superar sua birra com os "acadêmicos" (entre, os quais, principalmente, você). Você já fez essa mesma crítica aqui um sem número de vezes. É preciso ir além e tomar cuidado pra não fazer o elogio do inelogiável. Você quase (por muito pouco) não escorregou para o elogio da conservação e para a negação da necessidade de superar (portanto, concordo, conhecer e vivenciar) o senso comum. No futuro, quando o acadêmicos forem estudar a obra de AOKI, T.B., certamente este será considerado o texto em que se expressa de forma inequívoca a sua ruptura epistemológica, marcando, finalmente, a sua maturidade, na qual você pode escrever (bem, e claramente, como sempre o fez); livremente; sobre qualquer coisa sem se preocupar em se explicar e pedir desculpas por ser um acadêmico de classe média crítico da academia e da classe média.

Smac

do mais:

http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-59/tipos-academicos/o-neoerudito-alegorico

smac

Como o primeiro comentário do Peixe, concordo. O texto citado, acho, não é pra ele (Aoki) não, acho que ele foge disso, está distante, aliás... Talvez no trabalho dele faça mais sentido, mas por aqui não tenho visto nada nesse sentido... sei lá...

Ah, o texto é realmente muito legal!

Beijos

hahaha muito bom!

Tem razão, Peixe.. Apesar do seu cinismo característico!

Falei pro Hugo mesmo que cansei desse tiro no pé com meas culpas rs..

Abs!

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