Tudo começou na saída do restaurante do clube. Quando já estava lá fora, na fila do cafézinho, me dei conta de que o prato estava nas minhas mãos, em vez de abandonado cinquenta metros atrás. Depois foi pegando a comida, já passado o feijão e a salada, percebi que precisava de um prato se eu quisesse mesmo carne e arroz. Ao redor, as pessoas riam. Bullying. Três vezes sentei diante do prato e me perguntava o que estava faltando, mas não encontrava uma resposta até que talheres se mostravam ausentes. Foi, foi e então, num belo - talvez nem tanto - dia, estranhamente, eu tinha dois garfos nas mãos para comer. Demorou, porém, entendi que não é bom comer pão de queijo antes das refeições, me deixa atrapalhado.
Não sabia se era progresso, repassando os acontecimentos na minha cabeça, se um avanço em relação a tantos anos de dedicação e correspondente alheamento, ou o fim, outra vez o fim. A primeira vez foi quando cheguei na biblioteca de tantos anos para mim e a funcionária, que atende por Aline, me recebeu visivelmente consternada, dizendo que tinham acabado as chaves dos armários para guardar a bolsa. Isso faz tempo. Não tive dúvidas, foi pura impulsividade, lhe perguntei abruptamente se ela não havia guardado uma chave só para mim. Ela ficou ruborizada. Triunfei. A estagiária ao lado dela, talvez por inveja - quero acreditar -, enquanto estendia a mão com uma chave restante, me olhou ¬¬. Não me abati, me mantive firme quanto às minhas intenções. Mesmo ruborizada, Aline me dizia não entender como poderiam ter acabado as chaves, que ainda era cedo demais, e que somente algum evento nos andares do prédio poderia ter provocado aquilo. Não contente com a primeira infâmia, que lástima, prossegui dizendo que depois de tanto tempo eu merecia uma chave cativa, como que em honra à minha presença diária. Foi demais, Aline me olhou como se contempla um pé de alface. Que fracasso, eu, que já escolhia as palavras para me declarar, então só queria um pão de queijo pra me consolar.
A biblioteca do clube era meu lugar preferido. No mundo mágico do clube, a biblioteca era a minha segunda casa. Juro, não estou me gabando: me tornei um mané por isso. Em todos esses anos, me lembro de uma funcionária lendária, a Luscínia, todo mundo morria de medo dela, sério, e eu também. Ela tomava muitos remédios, antidepressivos, não sei, e durante a noite, quando era o turno dela lá, era comum encontrá-la andando vagarosamente pelos corredores, arrastando as sandálias, empurrando os carrinhos abarrotados de livros. Luscínia usava calças largas que depois até viraram moda, calças que parecem aquelas de palhaço: hippie chique. Ela dizia um "oi" demorado, como quem se esforça muito pra levantar a língua, tinha uma voz tremida, era muito alta, quase do tamanho das estantes. As calças largas faziam dela uma imagem por demais caricata, enorme, fina, comprida e com a cintura e as pernas aparentemente largas. Havia um descompasso em Luscínia. Quantas vezes ela não me parava pra conversar, eu ali engolindo seco, respirando fundo pra não fazer xixi nas calças e ela no maior papo?! Quantas vezes eu não esperei a chuva passar debaixo da entrada coberta, ali na frente da biblioteca, enquanto Luscínia fumava um cigarro ofensivo de tão ruim?! Ela, olha só, inclusive emprestou um livro pra mim uma vez, mesmo eu estando suspenso depois de um atraso. Luscínia fez isso no nome dela, na carteirinha de funcionária. Mas ela virou lenda, desapareceu quando fiquei desempregado e parei de frequentar o clube. Dizem que ela, depois de afastada, se aposentou. Não sei mesmo.
Aline sempre ficou na recepção durante o dia e, nossa, como essa criatura me odiou. Nunca olhou na minha cara a tratante, nunca respondeu a nenhum dos meus milhares de "bom dia" e "boa tarde". Aline é uma nanica, não deve ter um metro e meio de altura, ridícula. Ela nunca usou crachá, então só descobri que o nome dela era Aline depois de muito tempo, daí fui ousado, passei a nomear o bom dia, era "oi, Aline, bom dia", e nada. Eu era rejeitado, oh, desprezado, oh, ignorado, oh, esquecido, oh, mas tudo isso me fez insistir. Eu brincava, às vezes, para outras pessoas me referia a ela como a funcionária que levava um dragão sobre os ombros, desfilando ódio e labaredas ao redor. Passei 47 anos, 8 meses e 19 dias tentando arrancar, na força bruta, um sorriso da Aline. Claro, nunca obtive sucesso. Ela, obviamente, me perseguia, o ódio dela era tamanho que, uma vez, eu já estava indo embora do clube, eu já tinha recebido aviso prévio na firma e emprestava um último livro na biblioteca antes de perder o vínculo: Aline me pediu, além da carteirinha, o R.G.!! Eu gargalhava, repetia, "não é possível, você só pode tá me zuando, cara, você me vê aqui há anos, toda semana, e vem me pedir o R.G. pra te provar que eu sou eu mesmo?! Ah, não é possível!!" Gente, como fiquei indignado aquele dia. Aline sempre me odiou. Acho que, naquele instante, se ela tivesse uma faca, ou uma tesoura que fosse nas mãos, ela tinha dado cabo à minha vida.
Duro é que sou muito bom, sou um dos melhores quando o assunto é tática e estratégia: pra provocar ciúmes na Aline, comecei a puxar conversa com outra funcionária, Sílvia, que também faz o turno durante o dia. Sílvia ficou minha amiga e sempre retornava assunto, trocava figurinha sobre amenidades, coisas sobre o tempo, se vai chover, sobre o fim de semana, sobre qualquer coisa que costure uns segundos de nosso dia. Ah, isso deve ter despertado a fúria, a voracidade, o ciúme, a inveja incontrolável na Aline. Porque eu quase me estatelei no chão quando, me vendo cruzar os corredores da biblioteca, Aline virou-se pra mim e disse "oi, Hugo, tudo bem?". Fiquei assustadíssimo aquele dia, durante a noite, inclusive, nem mesmo cochilar eu consegui, eu ficava reproduzindo a imagem da Aline se dirigindo a mim "Oi, Hugo, tudo bem?" - ela sabia o meu nome!
Ah, uma vez tive um pequeno sucesso. Versado também na arte de reclamar, passei a entrada da biblioteca praguejando contra a espécie de ser que deixara aquele ar condicionado efusivamente ligado. Lá fora já fazia muito frio, oras, para que raios o ar condicionado deveria estar ligado?! Aline estava sozinha no balcão: era a minha chance! Tentando ser eu mesmo sem ser eu mesmo, mesmo, fui de papinho: "Ui, tá frio aqui, né?!"; "Ai, não sei o que acontece, ligamos e desligamos o dia todo porque esfria demais, não conseguimos regular..."; "Ainda mais hoje com essa chuva pela manhã, né? Fica difícil com esse frio..."; "Difícil, o quê? Por que fica difícil?" - surpresa; "Ah, e a preguiça que dá, né?!"; "Ai, Hugo - ela sabia meu nome mesmo! - você não tem jeito de preguiçoso!" - toma essa mundo!; e eu, que não tenho dignidade, insisti: "Ah, o que é isso?! Se tem uma coisa que eu entendo bem é de preguiça, viu!". Enquanto Aline sorria, eu triunfava. Para um pão de queijo eu ia convidá-la quando, tadan, de repente, não mais que de repente, Sílvia chegou cortando o assunto, a conversa toda, o clima, me deixando sozinho, no vazio, levando Aline para uma conversa burocrática que fosse. Ah, conspiração, ah.
É tanto azar, que acho que perdi Aline de vez ontem. Foi demais pra mim, quatro policiais estavam entrando na biblioteca quando eu voltava ao armário para buscar meu giz de cera esquecido na mochila. Só percebi minha reação quando Aline jogou um copinho d'água no meu rosto, eu havia paralisado de medo. Mas não podia, eu tinha que impressioná-la, oras, quatro policiais na biblioteca, então me aproximei para saber o que se passava. Nenhum deles queria emprestar ou devolver um livro, uma pena, e um deles se dirigiu à Sílvia no balcão. Ele tinha um papel nas mãos e, enquanto se aproximava, ergueu e dispôs o papel sobre o balcão com a autoridade que ele e alguns outros mundo afora acreditam que tem, no tom cerimonioso de um coxinha típico:
- Estamos à procura d'o Café. Por gentileza, onde se encontra o Café?
- O Café, pois, onde está o Café, quero saber onde é que está meu amigo Rafael, o que fizeram com ele?! – me aproximei também do balcão enrolando meu bigode, a maneira Dalí.
- Temos esta ordem para cumprir – apontava para o papel – e precisamos d'o Café, aqui também diz que o Café está na biblioteca – transmitindo serenidade.
- É, traga o Café aqui imediatamente, rã! – exaltado, eu só queria impressionar Aline, que, do outro lado, via tudo aquilo com desdém.
- O senhor queira se conter, por favor, deixe que fazemos o nosso trabalho – insípido.
Eu, que deixei de ser bobo faz muito, fiz pose e aguardei do lado, em silêncio. Por fim, o Café tinha açúcar, era branco e não atendia por Rafael. Não me interessei mais, dei de ombros e voltei para o meu canto. Munido do meu giz de cera, ainda tentei puxar assunto com Aline sobre café sem açúcar. Ela não entendia com eu saíra do terror imobilizado para o Clint Eastwood dos trópicos tentando interagir com os policiais, o olhar dela nesse momento eu gostaria de esquecer. Acho que a perdi para sempre. Definitivamente, nem em pequenas doses, pão de queijo nunca mais.