Uma pombinha entrou no vão, na entrada de casa, e não conseguia sair. Presa, batia no teto pintado de branco, sendo que, diante dela, dos dois lados, havia passagens enormes por onde passamos. Não entendo essas construções, na verdade, enormes, apenas para permitir que a água da chuva ou a luz do sol não cheguem à porta da cozinha. A pombinha poderia voar tranquilamente, tal como entrou ali, porém, em vez disso, voava de um lado para o outro, parava sobre a haste do varal, e, às vezes, esbarrava no teto e no espaço entre a laje e as passagens sem portas. Isso foi quinta-feira da semana passada.
Ainda bem que foi na quinta-feira, porque sexta foi dia 13, 13 de setembro. Ainda bem que estamos em setembro, porque fosse agosto haveria uma catástrofe qualquer. Estamos em 2013, imaginem: sexta-feira 13 do mês de agosto em um ano cuja terminação é 13, cruzes. Três anos atrás, numa sexta-feira 13 do mês de agosto, eu, que me chamo Hugo Ciavatta, com treze letras contando o espaçamento como caracter – pode conferir, conte letra por letra, caracter por caracter, são 13 –, inclusive, eu passei num processo seletivo, num concurso público. Não poderia ser diferente, minha colocação na lista de aprovados foi a décima terceira. Ah, foi sorte, claro.
Sexta-feira, 13 de setembro de 2013, também foi aniversário de Dona Iolanda, tia de minha mãe. Dona Iolanda é uma das irmãs mais novas de vovó, já falecida. Assoprou 79 primaveras a Iolanda, e, exatamente dois meses antes, no dia 13 de julho – era um sábado, antes que alguém pense bobagens –, ela caiu na garagem de sua casa. Em um folheto de ofertas de supermercado, no piso da garagem, ela escorregou, deu com o corpo no chão e quebrou partes da bacia e do fêmur. Naquele sábado de julho, ainda, eu levava minhas coisas para a casa de meus pais novamente, depois de oito anos longe, há sessenta quilômetros dali. Enquanto eu fazia minha mudança, Dona Iolanda encontrava o folheto no chão da garagem dela. Foi azar, coitada.
Dos quase oitenta anos, Iolanda viveu cinquenta deles em Franca, onde trabalhou durante vinte e seis anos para o laboratório de um médico. Ela ficava na recepção, colhia material dos pacientes, e mais, fazia análises clínicas. Nunca frequentou curso em qualquer área de saúde, mas ela me contou que era curiosa e doida. Trabalhou aqueles anos sem carteira assinada e só soube disso depois que um paciente começou a acompanhá-la. Terminado o expediente, Quico a levava até o portão da casa dela. Ele se chamava João, embora o conhecessem, misteriosamente, como Quico, ficara viúvo e fazia a corte para Iolanda, trinta anos mais nova que ele. Casaram-se, Quico a levou para São Paulo.
Quico e Iolanda ficaram pouco tempo na capital, apenas alguns anos, porque ele decidiu deixar a vida que levava na cidade em troca de Pontal, pra lá de Sertãozinho. Na rodoviária da pequena cidade, eles abriram uma banca de jornal para fiar os dias. No entanto, os dias foram poucos para Quico, ele logo faleceu. Assim, foram igualmente poucos anos juntos, e isso tudo faz quase trinta anos. Iolanda não se lembra direito: eu pergunto, interessado, curioso, ela se confunde, conta sempre, mesmo que eu já tenha decorado, duas coisas, que a cama dele no hospital era enorme – Quico tinha um metro e noventa de altura, e ela, divertidamente, não chega a um e sessenta –, e que ele sempre segurava a mão dela sobre a mesa.
Depois do hospital, da cirurgia no quadril, devido ao folheto na garagem, Iolanda está em nossa casa, em Ribeirão Preto. Somos vizinhos de quarto, ela e eu. Conheço todos os seus horários, todos os seus ais, seus gostos televisivos, sua fisioterapia, suas impressões de temperatura. Não consigo tirar muitas histórias dela, contudo: eu pergunto de Franca, ela me pergunta se conheço a casa dela em Pontal, e eu conhecia, claro, desde pequeno; eu pergunto dos pais dela, da dezena de irmãos, dela e da única irmã que ainda está viva, ela pergunta se eu conheci Quico; digo que não, que quando ele faleceu eu não havia nascido, pergunto por que o apelido se o nome dele era João, ela não sabe; pergunto como era Quico, ela diz que muito alto, repete, com um metro e noventa de altura; refaço a pergunta sobre Quico, como ele era, Iolanda fala, outra vez, que ele sempre segurava a mão dela sobre a mesa; faço mais uma vez a pergunta sobre como era Quico e, às vezes, ela quer gelatina, às vezes, que a vire na cama, às vezes, que feche a janela.
A mesma janela por onde, no final da tarde daquela quinta-feira, Iolanda assistiu à pombinha, que percebeu como fora parar ali. Bateu no teto uma última vez a bichinha, voou mais baixo e foi embora.
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