quinta-feira, 18 de março de 2010

O dia em que Jesus matou o criador (a Glauco)

. . Por Thiago Aoki, com 1 commentário

Relutei, mas foi inútil, seria impossível não falar de Glauco.


É que senti uma raiva imensa de não ter falado dele ainda vivo, como por vezes havia planejado. Com certeza, seria alvo de alguma matéria envolvendo a tríade que compunha com Laerte e Angeli. Mas a raiva é porque agora, estapafurdiamente, matérias a mil vem sendo publicadas na grande mídia, em geral recheadas de hipocrisia e oportunismo. Parece que mais importante do que a biografia e órfãos personagens deixados pelo cartunista, tem sido o assassinato em si. Já houve quem diga que o caso ressucita a velha falácia da pena de morte. Mais ainda, a culpa seria do Santo Daime e seu teor alucinógeno. Por outro lado, alguns colunistas políticos que sequer algum dia dissera algo sobre o cartunista ou história em quadrinhos, hoje o colocam como o grande mártir opositor de Lula - esquecendo-se da oposição veemente que o próprio Glauco fizera a todos os governos anteriores. Show de horror e sensacionalismo instrumental dos velhos abutres que fazem com que a perda irreparável em nossa cultura se transforme em mero episódio das páginas policiais.

De todas mesmo, a melhor e mais digna foi a cobertura da Folha de São Paulo, que num primeiro momento deixou todos os espaços para charges e quadrinhos em branco, com a assinatura do falecido, e depois lançou dois cadernos com homenagens ao artista. Gostei também do jornal ter comparado a importância de Glauco, pai de Geraldão, para o Brasil, como a de Charles Schulz, pai de Snoopy para os EUA ou de Quino, pai da Mafalda, para a Argentina. Foi, inclusive na própria Folha, na seção infantil (Folinha), que conheci Geraldinho, que logo virou Geraldão, que me apresentou pra Dona Marta, que me mostrou o Casal Neuras, que apontou Doy Jorge, que jurava que já havia sido abduzido pelos Ozetês, que mais pareciam Los 3 amigos, disfarçados, fugindo de Nojinsk, que na verdade apenas procurava por Faquinha. De fato, os quadrinhos de Glauco e companhia deixavam mais forte o café matinal e mais fácil de ignorar a sujeira do banheiro de minha república durante a sua utilização.

O humor ácido e ligeiro do quadrinista - muito bem descrito em uma crônica de Marcelo Coelho em 1987 - traz consigo uma falsa ingenuidade das mais interessantes. Vale-se de exageros do cotidiano para criticar costumes, políticas e conservadorismos dos mais prejudiciais. Infelizmente, pouco se fala hoje sobre a possibilidade de integração dos quadrinhos com a educação, numa didática multidisciplinar que acrescentariam muito às aulas formais. Tampouco se diz sobre o descaso e preconceito com o qual o quadrinho de costumes vem sendo tratado, muitas vezes não como arte, mas simples ilustrador das notícias, feito o pianista que toca na praça de alimentação do shopping, para ninguém ouvir, apenas adornando o refeitório. Discussões estas que seriam muito mais bem-vinda do que aquilo que ando lendo por aí sobre sua morte.

Por fim, o mais bonito mesmo ficou por conta da homenagem de todos os cartunistas, reconhecendo o grandioso trabalho de Glauco. O blog Universo HQ fez uma, digamos, arrecadação de todas essas homenagens e colocou em seu site. Vale a pena apreciar uma por uma, mas deixo aqui, duas das que mais gostei, talvez por terem sido desenhadas por amigos próximos ao cartunista. A primeira, feita a quatro mãos por Laerte/Angeli, mostra uma árvore, em meio à cidade cinza, em cujo tronco surge um dos semblantes dos desenhos de Glauco. A segunda, de Caco Galhardo, que se auto-identifica como discípulo do quadrinista, mostra, sobre uma pilha de diversos livros teóricos, típicos de uma formação intelectual requintada, uma "Love Story" do Geraldão.

Esse post, na verdade, menos do que celebrar o sétimo dia da morte de Glauco, foi simplesmente um pretexto para a mea-culpa feita no início do texto e também para exibir esses dois quadrinhos, que, para mim, são os que mais sintetizam o vazio deixado por Glauco, irreparável por estas enúmeras postagens que surgem, ou pela pífia e infame prisão de alguém que, ironicamente, se identifica como Jesus, o redentor.

"Quando eu saí deste mundo
Eu deixei minha porta aberta
Eu deixei minha porta fina
Para ver quem me acerta "
(trecho de um dos hinos composto por Glauco, para sua igreja)

1 palpites:

chinês, eu gostaria muito se você expusesse com calma tudo o que vc tem a dizer sobre "humor político" versus (?) "humor de costumes".

smac
ps: não responda por este poste, porque eu normalmente não sei quantos comentarios haviam sido feitos antes do meu, nem qual poste eu comentei e qual não, enfim, pra mim esse é um problema dos blogues. comente por email ou por poste.

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