domingo, 22 de novembro de 2009

Arte: Modo de Apreciar

. . Por Fernando Mekaru, com 3 comentários

N. comprou um novo quadro, daquele artista novo que fez tanto sucesso que suas obras começaram a ilustrar até mesmo caixa de sabão em pó. Negociou direto com o artista, e conseguiu uma pechincha - 60 mil, por um quadro que os leilões cobrariam no mínimo 300 mil. Obviamente, deu uma festa para comemorar o tal feito para os seus amigos, colocou o quadro no centro do salão, mas chamou somente os seus amigos do pequeno círculo de intelectuais do qual fazia parte para fazer comentários sobre a obra - só pessoas suficientemente inteligentes saberiam apreciar tudo aquilo que o quadro representava.

A. tentou disfarçar o descontentamento frente àquela obra que seguia os mesmos padrões das outras dezenas de outras obras de artistas da moda, arte feita em moldes iguais com pouquíssimas características diferentes para ser feita e vendida em massa; pensou que L. estava se esforçando demais na sua tentativa de parecer culto com a compra de uma mercadoria qualquer da indústria cultural, e esquecera-se do verdadeiro potencial da arte - o potencial de despertar a consciência crítica nas pessoas e torná-las mais aptas a mudar o mundo. Decidiu não comentar nada e se concentrou no bufê para fazer o descontentamento passar.

K. maravilhou-se com as cores e formas, que denunciavam a tentativa do artista de expressar a contradição entre a maravilha e a angústia que se sente frente à vida no mundo moderno; achou que a influência oriental e nouvelle-art do artista combinavam muito bem. Parabenizou N., fez os comentários devidos e se concentrou nos canapés de salmão e no espumante pelo resto da noite.

H. gostou do retrato sócio-cultural que a obra inconscientemente denunciava, mostrando elementos da história e da sociedade na qual a obra foi concebida; era uma obra que seria muito apreciada no futuro, quando as pessoas olhassem para trás e percebessem a obra como um retrato da época na qual foi criada. Tentou passar essa ideia para N.; não conseguiu, mas ainda assim decidiu comemorar a genialidade da obra com o uísque e o presunto italiano do bufê.

O. se lamentou pela escolha do amigo: a arte, há muito tempo, perdera o seu papel principal, que era o de expressar e conservar os valores e tradições da sociedade, evitando que degenerações morais e perceptivas ocorressem com as pessoas. A arte moderna era mais um sinal da decadência dos valores da sociedade ocidental. Frustrado com esse sinal da vitória dos liberais, afogou suas mágoas no álcool e teve de sair carregado da festa.

B. decidiu não falar nada: para ele, arte era mais um dos assuntos impostos socialmente como algo que era necessário conhecer para que te considerassem inteligente ou de maior valor social em relação aos outros, e fazer algum comentário mostrando conhecimento sobre ela era dar razão a essa valoração social vazia e sem sentido. Quando exigiram sua opinião, assumiu para N. que não enxergava nada além de cores fortes e formas estranhas no quadro, e voltou a sua atenção para a cerveja.

N., após os comentários de seus amigos, entrou em crise: eram concepções de arte muito diferentes umas das outras, que se chocavam diretamente e que, ao mesmo tempo, não eram excludentes. "Não é possível que seja tão difícil definir a arte", pensava de maneira compulsiva. Decidiu trancar-se no quarto para refletir, junto a uma garrafa de vinho e petiscos diversos. Acabou dormindo, bêbado, sem chegar a uma conclusão; deixou para pensar mais sobre o assunto para depois da ressaca, sabendo que provavelmente não chegaria a algum lugar tão cedo.

F. observou a reação exagerada do amigo depois de cinco opiniões, e tentou imaginar o que ele faria depois de ouvir as outras 17 pessoas da festa, e suas opiniões distintas a respeito do assunto. Suicídio ou a escolha de um hobby menos complicado e controverso foram as soluções que ocuparam a sua mente em primeiro lugar.
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Arte, arte...

Provavelmente, seis bilhões e quinhentos milhões de possíveis definições e apontamentos do que ela seja. Assunto extremamente controverso e de difícil definição; tão indefinido e incerto quanto a política, a filosofia e a qualidade do futebol carioca.

Esse blog tentará (especial atenção para o verbo escolhido, e o tempo no qual ele foi conjugado) fazer algumas indicações sobre o assunto, para limpar um pouco o meio de campo no qual ele se encontra. Isso tudo, é claro, mostrando alguns enfoques possíveis sobre esse negócio que tanto nos incomoda e nos encanta.

3 palpites:

Muito bom Mekaru. As primeiras palavras normalmente dão o tom da conversa, você nos deu logo de cara uma harmonia. Mostrou a complexididade desse objeto que nos encanta através de uma crônica que incomoda. Qualquer música a gente levar agora vai ficar mais legal com essa idéia de pluridade acompanhando.
O humor do F parece ser bem próprio seu. Gosto. Abraço.

Excelente, também concordo com o F autobiográfico...rss

Abraços!

Muito bem, Mekarinho...colocou em palavras muitas de nossas angústias!!!

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