para Thiago Aoki
A realidade não precisa de explicação. Ela é. Mark Twain escreveu que a única diferença entre a realidade e a ficção, é que a ficção precisa ser crível. Não se deixe iludir, se essa história parece absurda é porque não foi necessário inventar seus nexos: ela simplesmente aconteceu. Assim como a simetria costuma denunciar a ficção, a falta de sentido deste causo é a maior prova de sua realidade.
Estávamos no sítio do meu avô. Não sei onde ficava. Chamava apenas de “sítio” e me bastava. Eu tinha doze anos, meu avô pouco mais. Os números, principalmente das idades, não faziam muito diferença naquela época. Pensar no futuro era imaginar como eu seria no ano 2000, não como um adulto que projeta seus passos, mas como uma criança que inventa sua própria personagem. A morte, da mesma forma, era uma imaginação distante, que não provocava mais angústia do que a lição de matemática. Nesse dia, porém, eu senti medo.
Vô Bauer se irritou com minha mãe por causa do meu minigame. Como eu já havia fechado os dois jogos que tínhamos não me importei muito quando o meu avô jogou o aparelho no chão, mas fiquei um pouco apreensivo quando ele me pegou pelo braço e me levou para a floresta. “Filho,” – mesmo aos netos, ele sempre chamava assim – “hoje você vai aprender a caçar”.
Vovô me deu um revólver. Hoje sei que era um 38 e tenho minhas dúvidas se servia para caçar, mas na hora eu não pensei nada disso. Como ele pegou uma espingarda, imaginei apenas que minha arma era para crianças e a dele, maior, era dos adultos. Ele já estava bem mais calmo e me ensinou a atirar com bastante paciência. Segurou meus braços para que eu não me machucasse com o recuo da arma e me disse como deveria mirar e esperar a hora certa para atirar. Matamos duas codornas.
Sem balas, meu vô falou para voltarmos. Assim que fizemos meia volta vimos uma pantera. Estava abaixada e nos encarava. “Erwin, estatua e vaca amarela, agora. Quantas balas você tem?”. Eu tinha uma. Achei que vovô ia me pedir a arma, mas não foi isso que ele fez. “Você está vendo as duas?”. Só então reparei na mãe do bicho, em um galho acima de nossas cabeças, com o dobro do tamanho da outra que já me assustava. Lentamente ele tirou uma faca de sua bota e me disse: “eu vou atacar a mãe com a faca, você atira na filha e corre para casa”. “Não, vô, me dá a faca”, respondi. Eu não sei porque meu vô obedeceu, mas acho que na próxima frase você também já não se importará com esse detalhe. Com a mão esquerda, segurei a faca em frente à arma, com o corte virado para mim. Usando-a como mira, apontei entre as duas feras e apertei o gatilho. A bala atingiu a faca e se dividiu em duas: metade acertou o pescoço da mãe, metade o peito da filha. Nós corremos para casa e nunca soubemos se elas sobreviveram ou não. Na correria perdi a faca, mas nunca esqueci essa história.
O leitor pode pensar que se trata de causo de pescador. Não se deixe enganar. Como num poema de Manuel de Barros, asseguro que apenas dez por cento é mentira. E todas as mentiras contadas aqui são cem por cento reais. Só que a história não é minha. Erwin Schrödinger foi um físico austríaco, que viveu até 1961 e nunca teve um gameboy. Essa história é a adaptação de uma de suas memórias, que nunca foi escrita por falta de alguém que a inventasse. Você pode não acreditar, mas eu sou o melhor ghost writer do mundo. “Digo e garanto. Só não assino embaixo.” É meu slogan. Olhe meu cartão de visitas contra a luz qualquer dia. O Budapeste do Chico Buarque, por exemplo, pode ser meu. Ele só não desmente a falsa autoria por que tem senso de humor. Quando o homem atinge o auge da fama, o humor é tudo que lhe resta. Depois do reconhecimento consensual em sua área de atuação, só o senso de humor pode transformar o homem em lenda. Uma carta daqui a 50 anos revelará se o livro é meu ou do Chico e pelo menos um de nós vai dar muita risada. Até lá, o texto é meu e não é.
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4 palpites:
Adorei Caio. Sensacional
caios, você é o melhor e todos os critérios comepetitivos são cretinos.
smac,
peixe
Caião, fiquei profundamente emocionado com seu texto. Quando me disse que faria o conto, fiquei, confesso, com um pé atrás, normalmente é difícil adaptar os botequins para o texto, mas ficou perfeito! Narrativa, personagens, tudo!
O terceiro, quarto e quinto parágrafos são tão simples e envolvente, daqueles que formam perfeitamente a imagem na cabeça de quem lê, que tem o cerne de um grande escritor dentro deles, a ponto de realmente nos fazer desconfiar de quantos autores você já não publicou fantasmagoricamente!
Começar com Twain, terminar com Barros, faz uma metalinguagem sutil, mas muito poderosa, na medida certa! A propósito, você já assistiu o "Escritor Fantasma", do Polanski? É um thriller polítio bem legal sobre o tema.
Obrigado pelo presente!
Caio, Muito bom! vou dar pra minha mãe ler que é a pessoa que eu conheço que mais leu conto no mundo. Beijo, Lais
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