sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Vale-Cultura - Uma Discussão

. . Por Fernando Mekaru, com 8 comentários

Para quem não sabe, o Vale-Cultura é uma iniciativa do Governo Federal que se propõe a beneficiar uma parcela da população brasileira que teria seu acesso à cultura bloqueado graças aos custos um tanto proibitivos da cultura em nosso país. Nas suas etapas finais, o sancionamento da lei que o estabelece ocorrerá em Fevereiro, após votação na Câmara - passada a votação, tudo dependerá do aval do presidente Lula, que já mostrou apoio incondicional ao projeto de lei; caso aprovado, a implementação efetiva do programa está marcada para 2011. Ou seja, o vale-cultura é praticamente uma certeza nas vidas de muitos cidadãos brasileiros a partir do ano que vem.

Mas no que consiste exatamente essa medida, que causou certo furor na mídia, sendo chamada de "vale-circo" por Gilberto Dimenstein, "mais uma bolsa-esmola" entre a oposição ao governo atual, e comentários virulentos como "pão-e-circo petista", "pega-trouxa de ano de eleição", "medida governamental pra fazer o povão ver o filme do lula" no Twitter, no Orkut e em outros meios sociais?

Ideologismos emocionados à parte, vamos aos fatos sobre o Vale-Cultura. E eles estão à disposição de todos, na forma do PLC 221/09, que descreve detalhe a detalhe como é que a primeira medida de fomento de consumo cultural da história do país funciona.

Basicamente, o Vale-Cultura consiste na concessão de um vale de R$ 50 (para aposentados, o valor é de R$ 30), pessoal e instransferível, para qualquer cidadão que consiga comprovar que sua renda mensal é igual ou menor a cinco salários mínimos (R$ 2550 segundo os valores de Jan/10). Ele é distribuído pelo governo federal às empresas cadastradas no programa; estas, por sua vez, devem repassar o Vale aos seus funcionários que se enquadrem como beneficiários do projeto, que poderão utilizá-lo em qualquer estabelecimento autorizado a recebê-lo como forma de pagamento. Ou seja, somente empresas cadastradas no programa poderão aceitar o Vale-Cultura, e o governo não coloca o cadastramento no programa como obrigação.

De forma a tornar a adesão atrativa às empresas e incentivar o cadastro do maior número possível de empresas no programa, o governo oferece um desconto no Imposto de Renda de Pessoa Jurídica para aqueles que oferecerem o Vale: todo o dinheiro gasto dessa maneira pode ser revertido em abatimento do IR. Além disso, a empresa está autorizada a deduzir até 10% do valor do Vale (R$ 5,00) do salário dos funcionários beneficiados na forma de "despesas operacionais" (custos embutidos na emissão dos vales, compra de equipamento adequado, treinamento de pessoal, etc), de forma a diminuir os gastos com a implementação do programa na empresa.

O Vale-Cultura pode ser gasto somente naquilo que o PL enquadra como sendo um serviço ou produto cultural. Isso pareceria restritivo de início; porém, da maneira que se põe na lei, a definição é bastante abrangente, englobando todo serviço ou produto que possa ser incluído como sendo das artes visuais/cênicas, da literatura e das humanidades, do audiovisual, da música e dos patrimônios culturais. Isso incluiria tanto produtos e serviços culturais tidos como definições-padrão daquilo que seria cultura (teatro, apresentações musicais, cds de música, livros, idas a museus) quanto alguns que causam horror e espanto quando são chamados de cultura (jogos de videogame, livros de RPG, revistas em quadrinhos e/ou pornográficas, shows de funk, apresentações eróticas).

Deixando discussões políticas um pouco de lado, observemos alguns pontos interessantes que o projeto levanta, independente de ser aprovado ou não: ele aborda uma série de questões e elementos que, tradicionalmente, não tentamos responder, por não sermos confrontados com elas cotidianamente.

- Democratização da Cultura - O Lado Positivo. É inegável que o aumento do acesso à cultura, salvo raras exceções, é visto como um ponto positivo inegável na proposição desse projeto. Em um país cuja forma mais popular de difusão de conhecimentos continua a mesma desde os anos 50 (a televisão), não se pode negar que variar as possibilidades de contato com a cultura da população mais empobrecida é uma medida mais do que bem-vinda: isso acaba levando a novas maneiras de observar e pensar o mundo, a si mesmo e educar por vias não tradicionais uma camada da população que, por muitos anos, foi extremamente negligenciada nesse aspecto.

- Democratização da Cultura - O Lado Negativo. É também inegável, porém, a possibilidade da existência de efeitos nocivos com uma democratização irresponsável da cultura. Adorno e Horkheimer já alertavam nos mesmos anos 50 da ascensão meteórica da televisão e do rádio sobre os efeitos extremamente nocivos da popularização de produtos culturais extremamente pobres e de fácil produção, produzidos somente para serem vendidos como mercadorias descartáveis e vazias e como uma das mais eficientes maneiras de manter a população satisfeita, alheia à sua situação real e completamente sedada pelos prazeres do entretenimento. A grande questão é: o programa, por si só, já basta para resolver os problemas relativos à presença e variedade da cultura na vida das pessoas? Certamente, uma proposta que vá além da garantia de acesso é necessária para se evitar armadilhas que, a princípio, são positivas sob o aspecto da democratização mas que em seu funcionamento acabam sendo o contrário disso e agravam os problemas que o programa, a princípio, deveria resolver.

- O Que é Cultura? Talvez o ponto mais polêmico do projeto seja apresentar uma definição muito abstrata e ampla daquilo que contemplaria os serviços e produtos disponíveis à compra através do Vale. Existem defensores, os que enxergam benefícios e malefícios e detratores dessa indefinição conceitual. Ela envolve debates antigos sobre arte e cultura (os mais importantes envolvidos: elitização e qualidade vs. popularização e variedade; e popular vs. erudito); questões que, graças à sua subjetividade, não podem receber uma única resposta definitiva. É uma questão que muito provavelmente permanecerá da maneira que está, do ponto de vista do governo: tendo como ponto de partida o próprio objetivo do programa (i.e. maior acesso à cultura), faz muito mais sentido liberar o máximo possível do que impor, à força, restrições a manifestações culturais e artisticas através de uma definição de cima-para-baixo daquilo que o programa pode abranger.

Pelos pontos que levanta sobre a arte e a cultura, e ao mostrar uma maneira pela qual a sociedade e o governo podem se relacionar com esses dois assuntos, o novo projeto governamental está longe de ser mais uma bolsa assistencialista de um governo de centro-esquerda - ela é o centro de uma série de discussões interessantes sobre a sociedade, a política, nossas fontes de entretenimento, a arte e a cultura, e as maneiras pelas quais acessamos produtos e serviços que, em primeira vista, não servem para nada, mas que nos são muito importantes. Pensar e refletir sobre esse projeto é tentar solucionar o mistério da arte e da cultura, que nos aflige de diferentes maneiras conforme o tempo passa.

8 palpites:

Acho que criticar a idéia seria bobeira, mas a execução da questão Vale-Cultura com certeza deixa a desejar. É um projeto que devia ser muito mais discutido, como vc mesmo menciona no texto.

supondo-se correta a sua leitura da dupla sertaneja filosófica, o problema da 'cultura' não seria nem da democratização do acesso [termo horrível] nem da 'cultura' mesma, uma vez que seria legítimo se perguntar o que a dupla entenderia por cultura deveras [ou arte verdadeira como em marcuse].
Retomo: não seria da democratização mesma pois qualquer pessoa que consumisse tal mercadoria-cultural estaria, no seus termos, se alienando.
mas enfim, devaneios.

1 - Gostei do texto.

2 - Parafraseando um pensador da antiguidade (que fazemos questão de não ler para acreditar que o que pensamos hoje é algo jamais discutido) direi que todo Projeto de Lei tem sua forma virtuosa e sua forma viciosa. É sua execução que revelará seu predicado. Se seus executores querem que esse projeto dê ao pobre um plus de alienação, passando a oferecer a oportunidade de assistir mais coisas consideradas alienantes, além da já tradicional novela da globo e os 20 min de BBB (Pelo que entendi, para ver 24h, tem que pagar, certo?), esse pensador diria que o projeto se revelou algo extremamente negativo. Por outro lado... hum... voce já sabe mais ou menos como se segue esse por outro lado...
Agora, acerca da serie de questoes que nao tentamos responder, acho voce tem toda a razão pois desde a antiguidade, tradicionalmente, o homem cotidiano foge de certas questoes fundamentais ou nevralgicas (diria giacoia), como essas que seu texto apresenta.
A partir da leitura do seu texto, me lembrei que ao longo da história do pensamento ocidental temos tantas opiniões e respostas para discussões como estas, devidamente sistematizadas ou confusas e longamente apresentadas, que persistem em ser insuficientes. As vezes me pergunto mesmo se elas sao insuficientes ou se apenas nao satisfazem nossa vontade.
Quero acreditar que nossa cultura ainda possui coisas virtuosas dignas de serem apresentados aos empobrecidos, e que este projeto crie alicerces para isso.

3 -Dá até vontade de transformar esse comentário num tratado sobre política, arte, cultura, ou filosofia. Ou pelo menos, construir um questionário recheados de perguntas do tipo: o que é arte? cultura? governo? Alienação e etc?
Agora, licenciado em filosofia, qualquer coisa que renda mais de 5 páginas tem que gerar dinheiro...srsrs (é a necessidade de garantir a propria existencia falando alto) ou um churrasco de final de semana com cerveja na casa da cris. (gosto de pensar que existir é bom, e que comer e beber com os amigos é melhor ainda).


Brincadeiras a parte, deixo meus sinceros parabéns e espero que voce sempre escreva.

Teneco.

"Pensar e refletir sobre esse projeto é tentar solucionar o mistério da arte e da cultura, que nos aflige de diferentes maneiras conforme o tempo passa"

Mekarinho, menos! menos empenho em vender seu peixe... parece justificativa de pedido de bolsa de ic, mestrado ou algo igualmente infantil...

Vamos às ponderações irresponsáveis, já que to me metendo nesse ninho de cobra de filósofos..

Acho muito gozado - ou não entendi direito, o que é mais provável - como essa gente de Franquifurte (e você tá comprando a idéia) mantêm a separação entre sujeito e objeto com relação ao que eles chamam de cultura. Pra mim o fato de alguém consumir cultura é em si mesmo um absurdo que só é possível em sociedade elitistas (a idéia de cultura é em si mesma elitista - se ninguém disse isso antes, devia ter dito) e mercadorizadas e isso já é o suficiente para eu achar condenável a sua visão de que devemos melhorar o acesso das pessoas à cultura.

Por outro lado, eu e meu senso de humor infinitamente elástico rimos de cabo à rabo da sua descrição do projeto. Vale-Cultura pra mim é piada pronta do começo ao fim...

Por fim - pra acabar em três que é o número certo - acho que o que mais me intriga nessa coisa toda é que me parece claro que os principais beneficiários dessa campanha, como sempre, são as empresas que vçao se valer dessa brecha pra sonegar até o que não têm. Mas em que tipo de sociedade estranha está se transformando a nossa? Uma sociedade - tá, lugar-comum - muito meio-intelectual-meio-de-esquerda que tem que colocar sua cabecinha no travesseiro e justificar seu absurdo com medidas ilustradas como essa...

Eu acho bem diferente do pão-e-circo, mas to com preguiça de pensar porque..

Fiquemos com a minha sensação não exatamente racionalizada, para rimar mais com o texto do Chinês que com o seu...

Não se enciúme exageradamente.

Smac.
Peixe

Tentarei comentar sobre em um próximo post, como o tamanho dos comentários mostram, é um assunto estilo programa do ratinho: polêmico rss... Mas foi um bom começo de discussão.. Abraços...

Chinês,

você está sugerindo que o mistura indigesta é o ratinho dos nérdes?

smac.
Peixe

Peixe, a frase foi feita num desespero para dar fechamento ao texto... Poxa, até achei que tinha prestado pra algo, hahaha. Sobre o resto, te mando um email - tentei escrever sobre, mas sempre ficou muito grande pra uma caixa de ocmentários de blog.

Mas é bom ver que isso gerou feedback (opa, jargonês escapou, desculpem): a intenção era gerar alguma discussão mesmo.

Pô mekarinho.. manda então..

mas eu bem que preferia fazer em público...

afinal, vamo botar mais gente na conversa...

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