Não sei se vocês notam, mas há palavras que, de tão divulgadas, vulgarizam-se. Se pegarmos a política como exemplo, "comunista" e "neoliberal" é o que mais se diz sem se saber o significado. Já nos RHs das empresas, a moda é a "pró-atividade" e o "dinamicidade". No caso da arte e cultura, diria que é o surrealismo. Até propaganda de chocolate já usou o termo para dizer que o doce era "surreal". O surrealismo, como se sabe, expandiu-se e tomou forma com Salvador Dalí e André Breton. Mas o que mais me incomoda, escapando ao público leigo, é a confusão que se faz entre uma arte surrealista e a arte conceitual abstrata. Tenho horrores a rótulos, justamente porque, embora interessantes didaticamente, levam a equívocos grotescos como este, visto que a lógica de romper-se com a razão, dominante no surrealismo é praticamente oposta à dominância do conceito na arte conceitual. Foi aí que resolvi pesquisar um pouco sobre alguns artistas surrealistas contemporâneos até para melhor compreendê-los e distinguí-los. O primeiro que me interessou foi Jerry Uelsmann, cujas fotografias espalham-se por este post (clique para ampliá-las).
Uelsmann é de 1934, nascido em Detroit, EUA. Em uma época em que sequer a fotografia digital existia, o fotógrafo revolucionou com incríveis manipulações de imagem. Ele mesmo, em entrevista à revista Photos explica os efeitos que utiliza desde à decada de 1960, sob desaprovação dos fotógrafos da época: "É puramente fotomontagem. A foto é feita com a combinação no processo de revelação no 'darkroom' , usando alguns ampliadores e movimentando o papel. Não há corte ou colagem de papel. A imagem final fica numa folha fotográfica". Assim, sem os recursos de nossa época, Uelsmann, que até hoje prefere o 'darkroon' ao photoshop, praticamente cria um novo estilo da fotografia, rotulado por muitos críticos como parte da "fotografia surrealista". O processo criativo, portanto, o motor da fotografia de Uelsmann, é enganosamente simples, como afirmou em excelente entrevista ao site Shutterbug "Meu processo criativo se inicia quando saio com a câmera e interajo com o mundo. Não há coisas desinteressantes. O que há são pessoas desinteressantes. Para mim, dar a volta no quarteirão onde moro levaria cinco minutos, mas, quando estou com a câmera, levaria cinco horas. Se consegue chegar a um ponto onde você responde emocionalmente, e não intelectualmente, há um mundo inteiro para encontrar com sua câmera.(...) Mas minha aproximação incial é muito não-intelectual. Hoje há muita arte dita conceitual que inicia-se em uma teoria particular e então o indivíduo ajusta a imagem"(Trad Livre). Parece-me que, nessa fala, Uelsmann coloca a principal distinção entre o surrealismo e a arte conceitual, no que diz respeito ao processo de criação artística.
O fotógrafo e "image-maker", como ele mesmo se intitula, ainda revela a influência de Carl Jung, -aquele da teoria dos arquétipos e inconsciente coletivo - e do filósofo francês Jacques Derrida, principalmente por sua teoria dos múltiplos significados. Embora não o tenha citado nas entrevistas que pesquisei, é impossível não
lembramos de Salvador Dalí (figura colorida à direita) quando vemos a obra de Uelsmann.
Independente de rotulá-lo estritamente como surrealista, o certo é a influência que sofreu conscientemente ou não (o que seria muita ingenuidade!) desta escola. De qualquer modo, fica o convite aos que lêem essa coluna de visitar a galeria virtual de Uelsmann - em seu site oficial ou no Modernbook - e viajar nas imagens que, além de técnicamentes muito bem feitas, trazem um pitaco a mais da subversão da fotografia tradicional, aquela do mero retrato da realidade. Há de se romper com a lógica racional que estagna, ou, como Breton afirma em seu Manifesto Surrealista, "(...)se a razão objetiva prejudica terrivelmente - como é o caso - quem nela confia, não convirá fazer abstração dessas categorias?" Espero que este seja o primeiro de muitos posts sobre o tema.
4 palpites:
Caro Chinês,
me desculpe debutar no blogue com uma provocação barata, mas dado que você me conhece de longa data, não poderia decepcioná-lo e me furtar dessa desdita provocação barata.
você não acha paradoxal que a arte do inconsciente recorra a intelectuais-pscicólogos como Jung e outros que a barra de rolagem congelada não mo permitem lembrar?
agora voltando ao nosso mundinho cientistas sociais viciados em citações, como fazemos para dar vazão à nossa emoção tão acostumados que fomos a pensar com as precisas palavras de outrem?
ainda que essa indagação totalmente circular me faça lembrar das minhas exes mulheres que se incomodavam com o fato de eu conversar recitando letras de samba pelo simples fato de ser incapaz de dizer com palavras mais adequadas aquilo que eles já cantaram e/ou por não conseguir tirar de mim o que sou: um sujeito que pensa com palavras alheias.
será muito diferente dessa arte surrealista supostamente inconsciente?
Preciso assinar?????? rsrs
Peixe
Nesse caso específico foi só pra justificar o autor como surrealismo, aquela velha tática de retirar trecho do texto completamente fora de contexto para justificar uma teoria hehehe...Mas concordo que é completamente paradoxal recorrer a teóricos para se fazer algo, supostamente, anti-teórico ou instintivo, mas não sei se seria uma crise de tirar o sono não...Até porquê, até Marx na Ideologia Alemã diria que racionalizar sobre nossos atos (ou nossos trablahos) é o que diferencia os homens dos animais, ou seja, pensar não deixa de ser instintivo..
Abraços!
Bem, como eu disse, somos os dois viciados em citações e não é à toa que você cita o Marx para justificar sua resposta. Precisamos (ou não?) parar com isso. No mínimo o Bussunda vai mandar a gente tomar lá onde não bate sol. Mas não ligamos pra isso. O mais importante é que eu acho que acaba ficando uma conversa pedante - indigesta? - que somente comunica com "iniciados" nas nossas "ciências" e estamos ambos tentando falar com mais gente, não é?
Agora quanto ao final da sua resposta, eu acho que não concordo plenamente não. O fato de a diferença dos homens para os animais ser a razão, faz com que a razão seja "natural", não necessariamente intuitiva.
De fato, o que eu tenho vontade de defender é que é impossível separar o instinto dessa "racionalização" o que deixa ainda mais estranho - e não é por isso que são interessantes - essas gentes que afirmam o primado da emoção e do instinto sobre a razão, invertendo a hierarquia mas mantendo a idéia de que existe uma superioridade de um sobre o outro.
Smac.
Peixe
ps: aquele pixador sobre o qual você escreveu brilha!! valeu pela dica. que gênio!
Belo texto cara, muita gente usa a expressão sem conhecer direito seu significado e sua origem. Eu mesmo não sabia de alguns detalhes que você citou ai
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