Quem não viu, já ouviu falar. Talvez seja essa uma das definições mais vulgares para um clássico.
Conhecer as polêmicas entre Wilson Batista e Noel Rosa, saber que Mozart não era reconhecido, que o público de Shakespeare era o mais barulhento de sua época, tudo isso muda nossa forma de apreciar a arte. Não que a arte seja só técnica ou só contexto, mas conhecer essas determinantes, esses constrangimentos, reconhecer as influências e os ingredientes, também são um grande prazer.
Chegaremos na cena de Chaplin no fim do post, mas antes queremos aproveitar muito bem as preliminares, não queremos?
Esse primeiro vídeo é uma aula sobre grammelot, do teatrólogo, ator e dramaturgo italiano, Dario Fo.
Dario Fo é um dos principais estudiosos sobre o assunto. Seu livro Manual Mínimo do Ator já nasceu clássico e levou o Prêmio Nobel de Literatura de 1997. Ele e sua mulher, Franca Rame, são referências no teatro italiano por sua incansável pesquisa sobre a commedia dell’arte (aquele teatro de máscaras de Arlequino, Pierrô, Pantaleão etc) e seu ativismo político ácido. Sua peça Misterio Bufo, baseada nessa mesma técnica, foi considerada pelo jornal oficial do Vaticano "o programa mais blasfemo jamais levado ao ar na história da televisão mundial".
Claro que nada disso é importante para apreciar esse ótimo vídeo, em que não entendemos uma palavra, mas compreendemos tudo.
Grammelot é uma técnica que começa a ser usada, segundo o premiado livro citado ha pouco, pelo grupos italianos de commedia dell’arte. É um resmungo, uma imitação da sonoridade da voz em um idioma, que não diz nada, mas comunica muito.
Aproveitando que estou falando de pessoas que admiro, deixe-me colocar um outro exemplo fantástico.
O palhaço deste vídeo é o russo Slava Polunin, famoso mundialmente por seu humor poético e pelas inovações na interação com o público. Esse trecho faz parte do Slava Snow Show, que foi representado algum tempo atrás aqui no Brasil. O dia que assisti a peça, em São Paulo, a personagem principal foi interpretada por outro palhaço, mas não há do que se reclamar, pois é exatamente essa dinâmica que criou o espetáculo tal qual conhecemos. Assim como na comédia dell’arte o show não tem roteiro fixo, apenas um canovacio ou roteiro de ações. A cada apresentação são convidados atores, palhaços e amigos para atuarem em cima deste roteiro e criar um novo show.
O vídeo é de 1981 e o espetáculo já passou por diversas alterações, como era de se imaginar. A cena do telefone, quando vi, foi bem parecida, porém a sonoridade buscada foi semelhante ao português e quase conseguíamos identificar uma ou outra palavra no meio da embromação. Uma sutileza gostosa de assistir.
Gostaria de ter um vídeo para este próximo exemplo, mas ele ficará apenas como referência literária. Molière, como talvez você já saiba, é um escritor, dramaturgo e ator francês. Sua história está intimamente ligada à commedia dell’arte, assim como a história de Marivaux e de Goldoni. Todos eles escrevem com as máscaras da commedia, porém, eliminando-se outras grandes diferenças que não cabem aqui, tem uma característica em comum: eles escrevem. Como já observamos ao falar de Slava, a commedia dell’arte é caracterizada, entre outras coisas, pela inexistência de um roteiro de falas, o que faz a maioria dos estudiosos classificarem esses escritores como posteriores à tradição teatral em questão.
Antes que fique chato. Estou contando esse exemplo mais literário e mais distante, porque é na obra de Molière que está escondido um exemplo interessantíssimo da técnica que estamos desvendando.
Cavando só mais um pouco. O grammelot começa com a commedia, pois essa era itinerante. Viajava pela Itália e pela França, ou seja, navegava pelos dialetos franceses e italianos de cada região. Com a crescente padronização da língua e o a transformação de roteiros de ações em roteiros escritos, o grammelot perde seu sentido original.
Eis que surge a censura.
Molière, como se sabe, teve diversas peças proibidas. Reza a lenda que algumas de suas personagens mais polêmicas eram representadas por habilidosos atores que contornavam e entortavam a censura usando o grammelot em dribles fantásticos, que, obviamente, não constam nos livros.
Poderíamos ter ido direto ao ponto, mas a graça é exatamente perceber como a mesma técnica foi reinventada várias vezes, antes de falarmos de Chaplin.
O cinema mudo tinha uma característica inusitada, perceptível apenas aos muito atentos: ele não tinha falas. Chaplin havia fundado seu estúdio em 1919. No fim da década de 20, o cinema falado já havia se popularizado, mas o comediante resistia em utilizar as falas. Seu primeiro filme sonorizado foi Tempos Modernos, que apesar disso, não tinha falas, apenas a canção final.
A voz de Chaplin nunca tinha sido ouvida. Era o primeiro filme com som produzido pelo consagrado humorista e a primeira fala que vemos em um de seus filmes. Claro, que após esse blábláblá todo você já deve estar imaginando a escolha do ator. Temos que admitir: que ousadia.
Aproveite esse trecho genial da obra em que ele canta “Je cherche après Titine” de Leo Daniderff’s em um grammelot nonsense que zomba da própria linguagem do cinema e das novas técnicas para se consagrar como um dos melhores filmes de todos os tempos.
Não sei se Chaplin foi só uma desculpa para falar disso tudo ou se tudo isso foi uma desculpa para admirar Chaplin. De qualquer forma, foi um grande prazer.
4 palpites:
Muito legal seu blog seu Caio. Vou pesquisar mais sobre o Grammelot achei bem interessante. Um grande abraço!
Adorei os paralelos e essa cavada gigantesca pra chegar na bela minhoca que é o Carlos Chaplin hehe..E esse russo, então, ininarrável, não dá pra saber se rimos ou choramos, me deu medo, como todo palhaço..
Abs!
Fantástico :-)
Caião, meu palhacinho preferido, minha quarta-feira feliz!!
adorei saber que agora até grunhido tem nome científico artísticco filosófico e cultural... hahaha
muito bom esse trem, principalmente porque ataca aquela do millor que acatei como verdade:
"uma imagem pode até valer mais que mil palavras, mas quero ver alguém me dizer isso sem as palavras"
qualquer hora eu escrevo sobre isso... talvez até cite esse negócio, como é que é mesmo? camelot?
Pê i xê
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