“Os
meninos, donos e senhores da casa,
fecharam portas e janelas,
e
quebraram a lâmpada acesa de um lustre da sala.
Um jorro de luz
dourada e fresca feito água
começou a sair da lâmpada quebrada,
e
deixaram correr até que o nível chegou a quatro palmos.
Então
desligaram a corrente,
tiraram o barco, e navegaram com prazer
entre
as ilhas da casa.”
(A luz é como a água
Gabriel Gárcia Márquez)
Tudo
começou quando passei a levar as coisas a sério. Mas isso não foi
uma opção minha, uma escolha, ao mesmo tempo, tampouco foi fruto de
condições que me foram impostas por outras pessoas ou circunstâncias, uma necessidade obrigatória e
inescapável. Só hoje percebo que, simplesmente, a partir de
determinado momento, de um período, passei a levar as coisas a
sério. É o único comentário que encontro.
Eu devia
ter uns 14 anos, ou talvez já estivesse passado dos 27, não me
lembro, já faz muito, mas, apesar da diferença entre as datas,
minha gastrite deve ter começado nesse intervalo. Ali me encontrei
enquanto sujeito, ser humano, como se diz, e não enquanto alface,
claro. E se parece absurdo falar de um adolescente para um homem a
beira dos trinta indiferentemente, quando tudo isso já passou há
tanto não existe diferença alguma. Sabe como são as lembranças,
meio imprecisas, embaçadas, esfumaçadas, envolvidas de incerteza. Assim, fica mais difícil ainda falar da minha gastrite, que me
acompanha desde então. Nalguns momentos, não percebo mais a
respiração pelo movimento do diafragma, ou palpitações que sejam,
não penso num conceito importante, ou sequer me ocorre aquela
citação precisa, apenas sinto que, por dentro, da altura do umbigo
ao queixo, tenho um enorme e vibrante estômago sofrendo.
A
primeira recordação me vem de uma namorada, óbvio, que me deixou
sem que eu tenha imaginado qualquer esfacelamento, ausência
ou perda de encanto. Andávamos pela rua, no caminho da minha casa,
quando ela, enquanto eu mordiscava meu pão de queijo, me disse que encontrara outra pessoa, e também sobre como era compreender a condição de nossas vidas:
às vezes, para alguns, de estoica solidão. O pão de queijo,
carnudo, quente, macio, autêntico, naquele instante, ressecou-se, tornou-se praticamente uma massa de polvilho velha: a saliva eu perdera. Segundos depois, o entendimento, o raciocínio
enfim compreendeu o que o corpo, por meio do paladar, já havia
entendido. Não era só mais um fora, como se diz hoje, mas o tom
cerimonioso fizera daquelas palavras uma ameaça de destino. Levei muitos anos para digerir aquele pão de
queijo.
Depois
disso, duas coisas me marcaram profundamente o desentendimento.
Estava
num ônibus cruzando a cidade para o trabalho e, descendo uma avenida
movimentada, ouvimos todos ali dentro, de repente, a sirene
esganiçada, como todas o são, é verdade, de uma ambulância. O
motorista, como todos nós, assustou-se ao mesmo tempo em que tentou
tirar o enorme veículo que dirigia do caminho. No movimento brusco,
um rapaz lá no fundo, mais ou menos na mesma direção que a minha,
um pouco atrás, gritou que ali não viajavam vacas e bois, não. O
motorista não se manifestou, já o cobrador, que ainda naquele tempo
era uma profissão, não se conteve. Segundos antes da manifestação
do sujeito, o cobrador estava a vontade, esparramado, com as pernas
voltadas para a frente do ônibus, o corpo para trás. No entanto, ao
reagir, ajeitou-se na poltrona, fez-se imperioso. Aqui não tem
vagabundo pra você sair gritando, não, viu, irmão, disse,
aqui é tudo pai de família, dobrava as mangas da camisa para trás,
erguendo o indicador. Você não viu, não percebeu a ambulância que
passou, não, questionou. Sentado, mais ou menos na mesma direção
para a qual o cobrador olhava ao falar, não assistia às mangas
serem dobradas assustado ou com medo, mas não é coragem minha,
confesso. A discussão mudou de tom. Não venha justificar o erro do
outro, cara, pela voz, o rapaz transmitia um nervoso soluçar. Esse
motorista vem dirigindo assim lá desde baixo, feito louco,
completou. Não havia mais mangas e o dedo do cobrador estava
decidido a não se abaixar, enquanto ele finalizou. Olha só, aqui
ninguém é obrigado a ouvir gritaria, se você quer se queixar, ao
descer, anote o número do veículo e ligue no telefone que está ao
lado do mesmo número na parte de trás do ônibus, mas não venha
gritar com pai de família, rapaz, finalizou o cobrador. Nunca o
barulho do trânsito lá fora foi tão alto enquanto aquele rapaz não
desceu no ponto que o esperava. A saída mesmo foi espetacular, com
mochila sendo jogada no ponto e coreografia improvisada para anotar
os tais números. Todos estávamos num silêncio que possibilitou ouvir o arfar
do motorista ao arrancar, muito mais veloz do que vinha
anteriormente. Talvez fosse o estômago dele reagindo, quem sabe.
Não me
vinham por quês, não procurava por explicações, esclarecimentos
ou resoluções, não pensava em nada, apenas sentia meu estômago.
Outra vez
foi tentando relaxar, fugir do trabalho que colocava o jaleco em mim
24h. Como qualquer menino chorão, corri para os braços de mamãe.
Já muito mais esperto diante dessas situações, abraçava o
sarcasmo antes que a desfaçatez do absurdo se ajustasse ao
conveniente. Em menos de quarenta minutos de estrada, diante das mais
de seis horas de viagem que me esperavam, ouvi tapas e pequenos
gritos de me devolve, é meu. Quando sai da vigília, os gritos e
tapas ficaram mais altos, não eram apenas irmãos ou uma mãe e crianças num entrevero, como eu imaginava sonhar. É bom lembrar, algumas pessoas usavam músicas altas nos aparelhos celulares naquela
época. Então, a mulher pediu para a moça abaixar o volume da
música, a moça não abaixou, a mulher tomou da moça o aparelho e
foi feito o alvoroço. Quando achei que deveria levantar a cabeça da
poltrona e olhar, somente ver mesmo o que já tinha
ouvido, o aparelho celular cruzou os ares do corredor do ônibus. O
aparelho ainda bateu as costas de uma poltrona lá na frente e caiu
no colo de outra moça, esta se levantou como... como tudo aqui desde
o começo, que se percebe pobre literária e metaforicamente, em uma película de
zumbis lado B. Você está louca, sua gorda, escrota, se esse negócio
acerta a minha cabeça eu te estouro. Uau, engoli. A moça, dona do
aparelho, tinha uma criança de três anos que àquela altura estava
em muitas lágrimas, escondida debaixo da poltrona da mãe. Enquanto isso, seguia a troca de tapas e ameaças ao som de Jesus, Deus, põe Deus no coração,
gente, repetidos por uma senhora de voz adocicada. Outros gritos
avisaram o motorista: já era tempo de parar aquela viagem. A polícia
foi chamada, a briga foi separada, a criança tirada debaixo da
poltrona e dos berros. A mulher quase atingida pelo aparelho celular,
contudo, ainda se mantinha de pé, retrucou uma das ameaças de
agressão, alternava dois passos a frente e um para trás, dois para
trás e um para a frente, fazendo esvoaçar a jaqueta longa e ressoar
o tamanco no assoalho: ê, você cala a sua boca, sua gorda, escrota,
vai emagrecer, faz só dois anos que eu to na rua de novo e a última
pessoa que me ameaçou tá morta. Mata, mas sem barulho que eu quero
dormir, gente, alguém poderia ter dito.
Essas lembranças não são do pensamento, são do corpo, são dor física, nesses momentos o que eu tenho é um estômago queimando. No ônibus de viagem, foi um período em que eu já não queria
uma crença renovada para enfrentar o mundo, reconhecer-me diante das
coisas e entender onde eu estava, não, preferia o cinismo, uma
franqueza cretina. Eu, que
nunca fui um bêbado, que nunca fui de comida gordurosa, que cruzei a
infância com fama de menino tranquilo, distraído, alegre, bem
humorado, ploft, passei a sujeito preso numa caixa de
Omeprazol, com dicas para reconhecer excessos de ansiedade e
nervosismo, com exercícios de relaxamento e auto-controle para não
enfrentar crises de gastrite. O mundo e as pessoas não eram o que eu
queria ou esperava que fossem, me diziam, como se diz aos
adolescentes, aos jovens, aos adultos imaturos. Não, mas já naquela
época, eu sabia que eu não era nada, que era apenas mais um, e
tampouco estive à procura de um caminho, de um lugar para ir, sabia
resignadamente que o que nos resta na vida é esmiuçar uma diversão
qualquer diante de tudo. Alguns diziam que eu precisava de fantasia e
imaginação para o meu realismo fatalista. Nos livros, para eles, eu
deveria encontrar um remédio. Que mundo.
Pois bem, hoje pouca coisa mudou, não saio sem comprimidos para o
caso de um ataque, mas paro e retiro do real-absurdo que me aparecer
as duas palavras que compõem a mesma expressão. Sonho com as
coisas, fragmentando-as, até que percam o lastro: como um sobrado azul de
portão branco, paredes arranhadas pelo tempo e jardim desgovernado,
quando eu tenho um chapéu também azul que me cobre o rosto, uma
máscara, enfeites e algum desconcerto, talvez revolta, encerrado aos pés de uma grande árvore que não entende o inverno. Encontro nas paredes do sobrado o número 183, mas queria que fosse o 44, não, o 77, e faço do que vejo combinações que me deem um 4 ou um 7 repetidos. Minto, só queria escrever.
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