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Capacetes Coloridos
Paula Constante (2007) - 32'42''
Paula Constante (2007) - 32'42''
Cores
para diferenciar. Cores para hierarquizar. Branco é quem manda. Quem
pensa. O resto? É resto, faz trabalho braçal. O engenheiro se
impressiona de ter conseguido fazer ele só aquela obra. O secretário
diz que as decisões são muito rápidas, um mês, 15 dias, 15
minutos, uma canetada. Uma empreiteira. Várias terceirizadas. Vários
trabalhadores. Muitos capacetes coloridos. Poucos brancos.
O
documentário de Paula Constante nos trás a comparação de dois
canteiros de obras. Um é o canteiro da ampliação do campus da USP
na Zona Leste de São Paulo. Esse canteiro é o da empresa, da
empreiteira, que ganhou a licitação, e, sub-contratou diversas
microempresas de trabalhadores da construção civil, terceirizando o
trabalho. A relação trabalhista mostrada é do maior nível de
exploração, física, mental, social e econômica. Geralmente são
moradores do entorno da obra que procuram trabalho e se submetem a
esse tipo de exploração. As ferramentas são da empresa. São
mão-de-obra. Obedecem.
Na outra
paralela, o canteiro é da Associação Paulo Freire, ligada
à
União dos Movimentos de Moradia de São Paulo. A obra é em mutirão
autogerido. Mutirão porque é um monte de gente fazendo o trabalho.
Autogerido porque é esse monte de gente que discute e decide como
será feito o trabalho. Quem está executando a obra de construção
dos apartamentos são as mesmas pessoas que vão morar ali. Elas
decidiram o projeto, a planta, os materiais, o tipo de construção,
quem vai construir, como, quando, em quanto tempo. São as próprias
trabalhadoras (pois a maioria é mulher nesse processo) que decidem
sobre o seu trabalho. São mãos e cabeças-de-obra.
O
paralelo faz sentido quando pensamos sobre o fazer arquitetônico
numa sociedade na periferia do sistema capitalista. De um lado o modo
“tradicional”, “convencional”, de se fazer, de construção:
a universidade pública construída por uma empreiteira, com
mão-de-obra explorada, tecnologia convencional. Do outro, a
construção de moradias populares: a partir da necessidade das
pessoas de terem onde morar, se organizam, reivindicam, ocupam um
terreno, conseguem financiamento, e decidem eles próprios, em
coletivo, projetarem e construírem suas casas em autoconstrução,
em mutirão autogerido.
Num
mundo onde o morar é negócio e poucos tem realmente acesso a esse
direito, o pensar é, também legado a poucos. A universidade, lócus
do conhecimento, onde são fabricados milhares de bacharéis, mestres
e doutores, que pensam e comandam o mundo, é construído a base de
sangue e suor, dos trabalhadores explorados pela construção civil.
A
necessidade do morar leva as pessoas a reivindicarem um espaço, um
território nesse mundo cinza da cidades. Se organizam e se
movimentam para isso. A organização coletiva dos trabalhadores na
luta por moradia é base para o passo seguinte, a decisão de
construírem eles mesmos a própria casa. Esse fato modifica as
relações de produção envolvidas no processo do fazer
arquitetônico e da construção civil. Os trabalhadores não são
mais livres mercadorias no mercado de mão-de-obra de desempregados,
mas são donos do seu próprio fazer. Reintegram-se com o fazer do
seu trabalho a partir do momento em que não estabelece uma relação
de mercado, ou alienada, com seu trabalho.
É
o trabalhador, ou melhor, a trabalhadora, que decide a sua
necessidade. E isso se faz em coletivo. São espaços de
experimentação de uma esperança. Esperança de uma nova sociedade.
Outro projeto de sociedade. Onde são experimentadas nova forma de
trabalho. Relações de trabalho, de companheirismos, de
coletividade, de cooperação, que são contrárias as relações
convencionais desse sistema que vivemos. Não só contrárias, são
relações que negam essa outra forma atual. Não sem contradições
e limites, os mutirões autogeridos nos mostram um novo fazer
arquitetônico que nega o modo tradicional de construção, e também
a autoconstrução individual (modo mais comum nas periferias urbanas
– pessoas que constroem as próprias casa, com ajuda de amigos,
parentes – tipo favelas, barracos, etc).
De
certa forma as técnicas, a tecnologia, os artefatos, estão
presentes em todas as etapas da nossa vida. Se apontamos para o novo,
para um novo projeto de sociedade temos que apontar, tratar e
modificar, essa relação com a tecnologia, que nos domina, e, para
além disso, modificar a própria tecnologia. Creio, assim como
Sérgio Ferro, que “os canteiros de autoconstrução coletiva,
autogeridos pelos trabalhadores, são laboratórios experimentais em
que estas coisas podem, devem ser encaradas”. E Sérgio continua,
“mais: a autogestão na construção tem repercussões que saem do
canteiro, atingem outros níveis da vida social. A cantina, a creche,
o posto de saúde coletivos já avançam outras pistas. A
surpreendente e numerosa presença das mulheres na construção
estremece o machismo tradicional, a ideologia dos sexos. As
negociações para obtenção do terreno, de financiamento, de
compra, etc., fortalecem a perspectiva socializante destas
iniciativas. E etc., etc., etc...”.
O
filme nos traz o privilégio visual dessa comparação entre
canteiros de obras, o da empreiteira e o do mutirão autogerido. Os
textos e prática do Coletivo Usina e escritos de Sérgio Ferro,
mostram que a atuação desses arquitetos são uma modificação do
fazer profissional, são verdadeiros arquitetos-educadores que
optaram por trabalhar com a classe trabalhadora que luta pelos seus
direitos, sendo, nesse caso, um dos direitos mais básicos da
população, o acesso a habitação. Necessidade que deveria ser a
base da Universidade, na educação de capacitados para lidar com as
necessidades dos trabalhadores.
A
luta lado a lado, desde o início das ocupações de terras,
conquista do terreno, até o trabalho cotidiano de uma assistência
técnica compartilhada, é capaz de produzir nesses espaços de
mutirões autogeridos, novas formas de relações, solidárias, de
coletividade, de experiência de um vir a ser, de uma sociedade nova,
autogerida. Como João Bernardo que diz que “gerir as empresas e a
sociedade é algo que se aprende de uma única maneira: gerindo as
próprias lutas. Só assim os trabalhadores podem começar a
emancipar-se de todo o tipo de especialistas e de burocratas. E com
este objetivo não há experiências simples demais. Por mais modesta
que seja uma experiência, os participantes vão se habituando a
dirigir a sua atividade e vão aprendendo na prática aquilo que opõe
essa solidariedade e esse coletivismo ao Estado capitalista. É esta
a única maneira sólida como os trabalhadores podem, no plano
prático, reforçar progressivamente a sua capacidade de organizar as
empresas e a sociedade e, no plano ideológico, forjar uma
consciência de classe”.
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