sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Capacetes Coloridos

. . Por Fábio Accardo, com 0 comentários


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Capacetes Coloridos
Paula Constante (2007) - 32'42''



Cores para diferenciar. Cores para hierarquizar. Branco é quem manda. Quem pensa. O resto? É resto, faz trabalho braçal. O engenheiro se impressiona de ter conseguido fazer ele só aquela obra. O secretário diz que as decisões são muito rápidas, um mês, 15 dias, 15 minutos, uma canetada. Uma empreiteira. Várias terceirizadas. Vários trabalhadores. Muitos capacetes coloridos. Poucos brancos.

O documentário de Paula Constante nos trás a comparação de dois canteiros de obras. Um é o canteiro da ampliação do campus da USP na Zona Leste de São Paulo. Esse canteiro é o da empresa, da empreiteira, que ganhou a licitação, e, sub-contratou diversas microempresas de trabalhadores da construção civil, terceirizando o trabalho. A relação trabalhista mostrada é do maior nível de exploração, física, mental, social e econômica. Geralmente são moradores do entorno da obra que procuram trabalho e se submetem a esse tipo de exploração. As ferramentas são da empresa. São mão-de-obra. Obedecem.

Na outra paralela, o canteiro é da Associação Paulo Freire, ligada à União dos Movimentos de Moradia de São Paulo. A obra é em mutirão autogerido. Mutirão porque é um monte de gente fazendo o trabalho. Autogerido porque é esse monte de gente que discute e decide como será feito o trabalho. Quem está executando a obra de construção dos apartamentos são as mesmas pessoas que vão morar ali. Elas decidiram o projeto, a planta, os materiais, o tipo de construção, quem vai construir, como, quando, em quanto tempo. São as próprias trabalhadoras (pois a maioria é mulher nesse processo) que decidem sobre o seu trabalho. São mãos e cabeças-de-obra.

O paralelo faz sentido quando pensamos sobre o fazer arquitetônico numa sociedade na periferia do sistema capitalista. De um lado o modo “tradicional”, “convencional”, de se fazer, de construção: a universidade pública construída por uma empreiteira, com mão-de-obra explorada, tecnologia convencional. Do outro, a construção de moradias populares: a partir da necessidade das pessoas de terem onde morar, se organizam, reivindicam, ocupam um terreno, conseguem financiamento, e decidem eles próprios, em coletivo, projetarem e construírem suas casas em autoconstrução, em mutirão autogerido.

Num mundo onde o morar é negócio e poucos tem realmente acesso a esse direito, o pensar é, também legado a poucos. A universidade, lócus do conhecimento, onde são fabricados milhares de bacharéis, mestres e doutores, que pensam e comandam o mundo, é construído a base de sangue e suor, dos trabalhadores explorados pela construção civil.

A necessidade do morar leva as pessoas a reivindicarem um espaço, um território nesse mundo cinza da cidades. Se organizam e se movimentam para isso. A organização coletiva dos trabalhadores na luta por moradia é base para o passo seguinte, a decisão de construírem eles mesmos a própria casa. Esse fato modifica as relações de produção envolvidas no processo do fazer arquitetônico e da construção civil. Os trabalhadores não são mais livres mercadorias no mercado de mão-de-obra de desempregados, mas são donos do seu próprio fazer. Reintegram-se com o fazer do seu trabalho a partir do momento em que não estabelece uma relação de mercado, ou alienada, com seu trabalho.

É o trabalhador, ou melhor, a trabalhadora, que decide a sua necessidade. E isso se faz em coletivo. São espaços de experimentação de uma esperança. Esperança de uma nova sociedade. Outro projeto de sociedade. Onde são experimentadas nova forma de trabalho. Relações de trabalho, de companheirismos, de coletividade, de cooperação, que são contrárias as relações convencionais desse sistema que vivemos. Não só contrárias, são relações que negam essa outra forma atual. Não sem contradições e limites, os mutirões autogeridos nos mostram um novo fazer arquitetônico que nega o modo tradicional de construção, e também a autoconstrução individual (modo mais comum nas periferias urbanas – pessoas que constroem as próprias casa, com ajuda de amigos, parentes – tipo favelas, barracos, etc).

De certa forma as técnicas, a tecnologia, os artefatos, estão presentes em todas as etapas da nossa vida. Se apontamos para o novo, para um novo projeto de sociedade temos que apontar, tratar e modificar, essa relação com a tecnologia, que nos domina, e, para além disso, modificar a própria tecnologia. Creio, assim como Sérgio Ferro, que “os canteiros de autoconstrução coletiva, autogeridos pelos trabalhadores, são laboratórios experimentais em que estas coisas podem, devem ser encaradas”. E Sérgio continua, “mais: a autogestão na construção tem repercussões que saem do canteiro, atingem outros níveis da vida social. A cantina, a creche, o posto de saúde coletivos já avançam outras pistas. A surpreendente e numerosa presença das mulheres na construção estremece o machismo tradicional, a ideologia dos sexos. As negociações para obtenção do terreno, de financiamento, de compra, etc., fortalecem a perspectiva socializante destas iniciativas. E etc., etc., etc...”.

O filme nos traz o privilégio visual dessa comparação entre canteiros de obras, o da empreiteira e o do mutirão autogerido. Os textos e prática do Coletivo Usina e escritos de Sérgio Ferro, mostram que a atuação desses arquitetos são uma modificação do fazer profissional, são verdadeiros arquitetos-educadores que optaram por trabalhar com a classe trabalhadora que luta pelos seus direitos, sendo, nesse caso, um dos direitos mais básicos da população, o acesso a habitação. Necessidade que deveria ser a base da Universidade, na educação de capacitados para lidar com as necessidades dos trabalhadores.

A luta lado a lado, desde o início das ocupações de terras, conquista do terreno, até o trabalho cotidiano de uma assistência técnica compartilhada, é capaz de produzir nesses espaços de mutirões autogeridos, novas formas de relações, solidárias, de coletividade, de experiência de um vir a ser, de uma sociedade nova, autogerida. Como João Bernardo que diz que “gerir as empresas e a sociedade é algo que se aprende de uma única maneira: gerindo as próprias lutas. Só assim os trabalhadores podem começar a emancipar-se de todo o tipo de especialistas e de burocratas. E com este objetivo não há experiências simples demais. Por mais modesta que seja uma experiência, os participantes vão se habituando a dirigir a sua atividade e vão aprendendo na prática aquilo que opõe essa solidariedade e esse coletivismo ao Estado capitalista. É esta a única maneira sólida como os trabalhadores podem, no plano prático, reforçar progressivamente a sua capacidade de organizar as empresas e a sociedade e, no plano ideológico, forjar uma consciência de classe”.

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