PREMISSA PARA ROTEIRO. Após evento fortuito e inesperado, homem que parece ter tudo na vida perde tudo e, face aos horrores que lhe restaram após a recém-acontecida tragédia, vai para longe, até onde seu dinheiro lhe permite, para viver uma vida que nunca cogitaria viver antes. Ao mesmo tempo em que tenta deixar o passado para trás, homem busca nesse processo de reinvenção o sentido de sua própria vida, em uma mal-disfarçada tentativa de encontrar a si próprio em meio a anseios de redimir-se por erros de outrora que parecem inescapáveis. Homem, após ter de encarar de frente suas angústias, sofrimentos e, princpalmente, o seu próprio orgulho, descobre na mudança da personalidade a solução não de todos, mas de vários de seus problemas.
Vamos convir: essa não é uma premissa das mais originais para se escrever uma história.
Isso não impede, porém, que obras magistrais possam ser desenvolvidas a partir desta proposta, reinventando-a e mostrando que os limites da arte se dão verdadeiramente nas execuções infinitas de uma mesma ideia, bastando apenas uma execução suficientemente criativa dela.
Asterios Polyp (David Mazzucchelli, Cia. Das Letras, 2009, primeira reedição em 2012), um volumoso calhamaço de quase 400 páginas coloridas de quadrinhos, não faz parte do panteão de obras que se propõe a pegar essa proposta de narrativa e reinventá-la. Muito pelo contrário, a fórmula é seguida à risca, com muito pouco espaço para o desenrolar de um certo tipo de história que, com certeza, já vimos antes.
Por que, então, esta é considerada a magnum opus de David Mazzucchelli, mais até do que trabalhos mais conhecidos do mesmo autor como Batman: Ano Um e Demolidor: Renascido, nos quais personagens clássicos tem as suas carreiras reinventadas e suas histórias recomeçadas de um ponto de partida original, que rompe com outras leituras do mesmo? Por que uma das premissas mais recontadas da história, sem nenhum tratamento digno de nota, é reconhecido por diversos veículos como um dos quadrinhos mais inovadores dos últimos anos?
O estatuto concedido a esta obra se dá, principalmente, porque Mazzucchelli arrisca fazer algo que, no passado, muitos artistas falharam tentando: o foco dele é na forma de fazer quadrinhos, e não no conteúdo narrativo contido nos mesmos. Ao contrário do que normalmente acontece, isso não significa que isso desmereça a obra, pelo contrário: ao invés de se colocar somente como um deleite aos olhos e nada mais, a arte de Asterios Polyp é, antes de tudo, um convite a se afundar mais e mais no roteiro, colocando na obra todos os não-ditos, pressupostos, reflexões e demais elementos responsáveis por tornar os personagens profundos e a história, cativante.
A arte opera dessa maneira incrível de várias maneiras: a que mais se sobressai é a estilização de cada um dos personagens, que em primeiro lugar tem todas as suas falas e pensamentos escritos em fontes distintas uma das outras - essa mudança estilística, irrelevante à primeira vista, é um primeiro sinal ao leitor para que a individualidade de cada personagem, por menor que seja, seja estabelecida tanto na narrativa quanto na sua mente. Esta mesma postura de desenvolvimento dos personagens a partir da arte acontece de maneira mais impactante quando a história entra no plano de análise subjetiva de cada um deles: são todos (todos!) desenhados de maneiras distintas, de maneira a ressaltar características psicológicas e personalísticas que, se o único meio utilizado fossem as palavras, não seriam colocadas de maneira tão contundente e chamativa. A arte, nesse sentido, coloca tudo que o texto não coloca sobre a personalidade de cada uma das pessoas com as quais Asterios cruza durante sua jornada de auto-conhecimento: a partir dessa base, a mente do leitor se encarrega de fazer o resto do processo de construção dos personagens.
Mais do que colocar em evidência o pequeno universo artístico que cada personagem carrega em si, Mazzucchelli se utiliza da arte também para colocar uma questão que, com menos sensibilidade, é tratada de maneira simplista e muito pobre: o choque entre visões de mundo de duas pessoas muito diferentes entre si. O contraste visual entre estilos de arte gritantemente diferentes, junto à simplicidade dos balões de fala/pensamento, geram uma maneira de comunicar, durante a narrativa, os momentos de tensão e conflito entre as partes envolvidas, deixando o conflito implícito ou explícito conforme os elementos narrativos de cada página se coordenam entre si para desenhar cada elemento do roteiro.
Além de servir como instrumento narrativo, o contraste entre estilos de arte muito diferentes entre si coloca, em diversos momentos, uma questão que gera muitos debates: quando cada um de nós é inescapavelmente único e singular em seu âmago, é possível que essa unicidade/singularidade seja compartilhada, ou até mesmo compreendida, pelos outros seres únicos e singulares que nos cercam? Asterios Polyp dá uma possibilidade de solução para esta pergunta, e também dá pistas para que o leitor chegue às suas próprias conclusões, sem que para isso precise que a graphic novel leve-o pela mão até elas.
Obviamente, além de questões levantadas pela arte, a graphic novel não se resume ao roteiro-modelo colocado no início desse texto: a história possui alguns outros pontos levantados, a maior parte deles referente à construção da personalidade de Asterios, o personagem principal, mas não é possível falar dos mesmos sem que isso revele detalhes importantes da história. Se a descrição inicial da história sugere falta de profundidade, não se engane: ainda que não seja extremamente complexa e envolva diversos planos de narração, esta história em quadrinhos apresenta uma história sólida e envolvente, que vale muito a pena ser lida.
Em suma, Asterios Polyp reconta uma história que você já ouviu antes, mas dentro dos limites dela, faz coisas incríveis, singelas e bonitas, com alta carga emocional e que invariavelmente se comunicam com histórias que já ouvimos (e passamos) antes. Por conta de sua arte incrível, cada leitura permite novas reconstruções de cada um de seus personagens e eventos, bastando para isso apenas um novo olhar e análise para cada cena que o delicado jogo entre palavras e imagens coloca em cada folha de papel. Na opinião deste que vos escreve, é simplesmente uma história de quadrinhas imperdível, que reafirma o estatuto de arte concedido às histórias sequenciais e escapa de praticamente todas as soluções fáceis que esta forma artística normalmente propõe e não se deixa escapar.
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