domingo, 1 de julho de 2012

Desavisado*

. . Por Unknown, com 0 comentários



"
Ver você como uma coisa, que eles são capazes de ver você como uma coisa. 
Sabe o que isso quer dizer? É terrível, nós sabemos como isso é terrível enquanto ideia,
 que é errado, e achamos que sabemos todas essas coisas sobre direitos humanos
 e dignidade humana e como é terrível tirar a humanidade de alguém,
 é só isso que a gente diz, a humanidade de alguém,
 mas ver a coisa acontecer com você, ver, e agora você sabe de verdade.
 Não é só uma ideia ou uma causa para ficar todo careta.
 Faça acontecer isso e você terá um gostinho de verdade (...)
 E agora você sabe o poder que isso tem.
 O poder total.
 Porque se você consegue realmente ver alguém como uma coisa
 você pode fazer com o outro qualquer coisa,
 fica tudo de fora, humanidade, dignidade, direitos, justiça - tudo de fora."
(David Foster Wallace)




Meu nome? Inês, doutor. 'Doutor' não? Tá. Senhor me desculpe então, por favor. 'Senhor' também não? Tá. Ainda não é doutor, né – sorri. E 'Senhor' tá no céu, a gente sabe... mas se esquece, né, ou é Ele que se esquece da gente – sorri. Onde é que eu tava nos dias 21 e 22 de janeiro deste ano? Mas isso o senhor já sabe. Ai, me desculpe, 'senhor' não: você, você já sabe. Ah, tá, quer escrever, contar o que aconteceu lá no dia 22, como foi tudo. Olha, vai ser difícil, quase impossível, viu, eu acho. Porque talvez mesmo com aquelas câmeras por todas as ruas e cantos do condomínio da dona Matilde, que eu trabalho aqui em São José mesmo, na saída da cidade, e mesmo que você entreviste a porção de gente que vivia e estava lá, não vai conseguir contar o que meu menino viu e sentiu aquele dia. Disso você já sabe, né, pois só to avisando. Por que falei do menino e não do que eu passei? Porque a gente esperava já, né, esperava era pelo pior e ele veio. Ah, a gente estava lá fazia uns anos, eu mais meu menino e meu marido também, meu segundo marido. A gente veio de Piquiurama, eu nasci foi ali pertinho no Paraná mesmo. Meu menino é do primeiro marido, um desgraçado que larguei, depois foi que arranjei esse outro traste aí – sorri. A gente primeiro foi pra São Paulo, ficou lá um tempo. Norival, meu marido hoje, estava trabalhando pra uma transportadora, mas eu não queria ficar naquela cidade lá, não, Deus que me livre, lá perto daquela estação da Luz, num prédio velho, sem nada. A gente é muito simples, sabe, mas não queria meu menino crescendo pra ver tudo aquilo lá não... Nada por nada, Norival arranjou uma outra transportadora em São José e a gente veio, depois consegui ficar de doméstica numas casas que o pessoal indicou. A gente veio direto pra cá, quer dizer, pra lá, né. Quem foi que falou pra gente de lá? Não, não teve nada de movimento – sorri – de partido político, não. Falaram pro Norival lá na transportadora mesmo, nosso vizinho lá trabalhava com o Norival. Se não tinha partido e movimento lá, organização? Claro que tinha, moço, mas que coisa isso que vocês tem que falar, credo. Tinha pra lá de mil de gente lá, daí umas dez pessoas, to exagerando, vai, era de um partido, outras cinco, de outro, e eles tudo brigavam, né, nossa, só confusão. Vinha lá um pessoal da faculdade, nos fins de semana, faziam reuniões, coisa pequena, mas nunca fui, não, eles passavam avisando todo mundo. Eles faziam trabalhos, cuidavam das crianças, nada demais. Tinha reunião toda semana também, por setor, nestas eu ia às vezes, pra gente saber como é que estavam as coisas. Eles ofereciam uns cursos técnicos até, e não era dos partidos, era da prefeitura, moço, olha o rolo que vocês criaram. Mas o espaço, o terreno era todo bem organizado, isso a gente tem de reconhecer. A gente tinha energia elétrica da prefeitura, vieram os caminhões uma vez e desenharam direitinho as ruas, iam asfaltar, falaram. Todo mundo cadastrado, preocupado com a questão do esgoto. As pessoas falam, aqueles meninos dos jornais, da faculdade, sempre falavam também: os partidos. Nosso partido lá era o da sobrevivência, né. Eles acham que a gente é muito malandro de ir morar lá, é... Malandragem agora é medo de passar fome. Ô mundo esse, viu – sorri. É engraçado isso, as pessoas falam aí, comentam, né, ah, os traficantes, ah, os bandidos, os presidiários. Claro que tinha, tinha de monte, mas daí a dizer que só tinha gente assim é maluquice, né. E por que é que quem um dia foi preso sempre será bandido, me diz? Tanta gente diferente lá, gente trabalhadora, dedicada, respeitadora, era um bairro igual aos outros, moço, só isso. Pra onde é que essa gente vai, onde é que essa gente fica se não tem nada, gente? Acaba assim mesmo. E vem pra onde a gente tá tudo agora, né. É isso. Que que as pessoas pensam? Norival já teve preso também, já roubou, já deu tiro pra fugir da polícia, não é santo, não, eu também já vendi baseado vagabundo, pacotinho de pó quando o medo de faltar comida foi maior que o de encarar uma cama de cimento e um sol gradeado. A gente lá era tudo como se fosse só “ex-” alguma coisa, né, ex-traficante, ex-ladrão, ex-preso, só que aí, como você já sabe, você viu, tem foto, tem vídeo, vocês tudo viram, naquela manhã de domingo a gente virou foi ex-mulher, ex-homem, ex-criança: ex-ser humano. A gente então era sei lá o quê, pior que bicho. A gente já estava alerta fazia tempo, mas no sábado, como todo sábado, mesmo que para alguns todo dia seja sábado – sorri –, a gente tomou uma cervejinha, queimou umas gordurinhas até de noite, pessoal lá tocou música, dormi mais tarde e acordei com meu menino gritando “mãe!!, mãe!!, mãe!!” do meu lado. Os olhos dele estavam do tamanho do barraco, coitado. Eu ainda meio zonza, o Norival foi saindo pra ver o que acontecia. Meu menino dizia que estavam gritando fazia tempo, que parecia que era a polícia, que tava correria. Foi tempo dele dizer isso, eu ficar de pé, o Norival entrou de novo no barraco gritando, e eu, que já ia ralhar com o menino pra parar de repetir a mesma coisa, me assustei também, porque o Norival foi juntando o que viu pela frente, roupa, documento, o que deu mesmo, enquanto dizia que era a polícia mesmo, que era o Choque, que a gente estava sendo posto pra fora. Estava meio escuro ainda, mas no final do corredor dos barracos dava pra ver os escudos juntinho, um do lado do outro, avançando. Os gritos de que era pra gente sair na outra direção iam ficando cada vez mais perto, cada vez mais perto. Norival e os vizinhos, o pessoal lá fora ainda ficou pedindo calma pros Choque, que tinha criança, bebê lá, pra esperar as mulheres saírem direito primeiro. Eles iam avançando. Dava pra ver, vocês viram as fotos, né, policial entrando nos barracos lá na frente, quebrando e derrubando tudo. A gente ouviu tiro, sim, não sei o que era, não, deviam tá atrás de bandido, incriminar alguém, foragido, não sei. Disseram que morreu gente, não vi, não sei, vai ver que sim. Morre tanta gente toda hora. Bateu a raiva só lá fora, sabe, aí eu gritava, xingava, filhos de uma puta. Puta não, né, que puta não tem nada com isso. Desgraçados. Era como se nada do que ficou lá fosse nosso, como se eu não tivesse trabalhado, suado todo dia pra comprar e montar as coisas do nosso barraco. O sol ainda não tinha nascido direito e a gente lá fora foi juntando umas madeiras, tacando fogo, como se quisesse avisar o que estava acontecendo. Mas avisar pra quem, né... Alguém vai dizer, "pros partidos" - sorri. Ah, tá. As crianças ficaram amuadinhas, todo mundo com medo, a gente gritando, um monte de gente correndo, as pessoas foram percebendo que o bairro todo estava cercado. Não tinha o que fazer. Além deles fazerem aquilo, tirar tudo da gente quase na madrugada de um domingo, queriam que a gente assistisse a tudo, de pertinho, sem poder fazer nada, porque crueldade pouca é besteira, né – sorri. Foi muito rápido. Depois a gente foi levado lá praquelas tenda que vocês viram. Era pra triagem, diziam. Triagem, gente, se a gente era tudo cadastrado lá... A gente não é boi, não. Aí foi esperar, né, esperar o dia passar, acabar todo aquele inferno. Minha vó, mãe da minha mãe, dizia que não podia falar essas palavras porque atraía, não podia falar 'desgraça', não podia 'câncer', não podia, atraía coisa ruim. Vai ver ela estava certa, mas não foi a gente que atraiu, não, porque a desgraça, o inferno já está aí antes da gente, e ele vem sem nem a gente chamar. Tá tudo errado, né, desde o começo. Meu pai errou quando se juntou com minha mãe, os pais do Norival a mesma coisa, eu também, quando me juntei com aquele primeiro desgraçado, mas a gente quer acertar, né, e carece é de sorte. Agora é ver até quando vai durar essa bolsa aluguel que a gente tá recebendo, e tanta gente ficou sem... Com o dinheiro, a gente tá num quarto nesse cortiço aqui atrás, sabe. To lá na dona Matilde, o Norival na transportadora fazendo os bicos de sempre, o menino tá no colégio: vê se estuda, né, é melhor. Quero mais filho não, gosto do menino, sei o que é ter um monte de irmão, é bom, mas é duro também. Passei lá no Pinheirinho outro dia, vi que não fizeram nada, teve corrida de carro lá, né, na terra, mas teve gente que foi morar lá de novo, fez barraco e tudo e foi despejado de novo também, né. Tem que ir atrás do dono daquele lugar lá, moço, porque tá feio lá, viu, abandonado, fiquei com medo, estava parecendo as noites lá perto da onde a gente morava em São Paulo. Os nóias, uns coitado que nem consegue para em pé direito, tudo sujo, jogado, ziguezagueando. Não é medo deles, sabe, é também, é estranho, é dó, um clima que dá medo, sabe. Daqui a pouco, aquele lugar vira sei lá o quê, ou a gente mesmo acaba voltando pra lá, né...


*texto ficcional, fruto dessa história de desafio no blog: foi proposto pela leitora Lais Fraga, indigesta por aliança

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