- Oi, meu nome é Caio e estou a 12 dias sem beber.
- Pô, de novo? Você não consegue engatar um mês sem recair? Pensa na Mari pelo menos!
- Falou o senhor-bom-moço! O que você está fazendo aqui, então, mané?
Existe uma regra nos grupos Alcoólicos Anônimos que é bastante simples: ninguém comenta o problema do outro. Você vai, fala dos seus problemas e, se tudo der certo, dos seus progressos. Ouve o depoimento dos outros e pensa a respeito do que foi falado. Ninguém dá conselhos.
O conselho tem um poder perverso. Tira o foco de nós. É simples. Quando o outro fala você pode pensar no que ele está fazendo errado ou o que você está fazendo errado. E ver o problema do outro é muito mais fácil.
É engraçado isso. A gente só enxerga a nossa fraqueza no outro, quando não pode apontá-la nele.
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Li esses dias o projeto de mestrado do Hugo, Esmeralda – Por que não dancei: autobiografia como exercício etnográfico e um pensamento ficou me perseguindo, me desconcentrando e me desconcertando a cada linha:
- Se toda crítica é autobiográfica. Por que não o contrário?
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Levei o texto do Hugo e essa pergunta para caminhar comigo por outras leituras e acabamos nos encontrando com esse texto do Luís Fernando Veríssimo sobre Fellini.
“Sendo o mais narcisista, Fellini é o mais italiano dos diretores italianos. E o mais divertido. O narcisismo italiano não implica introspecção ou exagerada auto-analise. Nem um fascínio exclusivo com o próprio umbigo. Ao contrário, é tão expansivo e abrangente que requer um espelho do tamanho da Itália.”
Um espelho do tamanho da Itália é uma autobiografia, uma crítica ou um exercício etnográfico?
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Querido Hugo, sua companhia em meus pensamentos ligou vários pontos. Acreditei ter entendido provisoriamente tudo sobre o mundo e sobre mim.
Essa separação entre crítica e autobiografia que me tirou o sono e me encurtou as unhas é absurda. É impossível falar de si sem falar do mundo e ingênuo achar que fala do mundo sem falar de si. Mas que bobagem, não?
“Parece-me um paradoxo crucial. Para existir plenamente como indivíduos, temos de nos inscrever numa narrativa mais ampla que a nossa.” (Jonathan Nossiter, Gosto e Poder)
Claro que hoje eu acordei com mais perguntas. Mas eram outras.
Obrigado,
Caio
P.S.: Peço apenas um favor. Só por hoje, não me dê conselhos, que eu estou em construção.
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“Isso de querer ser exatamente o que agente é, ainda vai nos levar além” (Paulo Leminski)
5 palpites:
Muito interessante, Caio. Concordo muito com isso da crítica ser autocrítica. Penso muito nisso para observar várias das minhas relações e é mais fácil de perceber isso e mais difícil de reconhecer na relação com a minha muchacha Súlivam. lembrei também de um trecho http://www.youtube.com/watch?v=zUrQYnCwrUs muito legal do filme "Profissão: Repórter" do Antonioni em que o repórter David Locke (Jack Nicholson) entrevista um rebelde em um país africano. Um abraço
Todo elogio é no fundo um auto-elogio.
Muito bom texto Ca.
Caião, tomei um susto quando estava lendo o texto, pulei da cadeira aqui! Porque estava sorrindo diante do computador com o jeito despojado de escrever a primeira parte, dos AAs. A cadeira ficou pra trás quando li o meu nome! O por que não o contrário da pergunta eu não sabia se era pra mim, se era pra antropologia, se era sei lá pra quem. Entendi que era uma pergunta pro teu texto, que você se fazia e procurava em outros textos.
Em seguida apareceu o Fellini na história, aí - fiquei roxo de vergonha, me escondi debaixo da escrivaninha - onde já se viu me colocar num texto ao lado de Fellini, Caião, tá doido, cara??
Por fim, fiquei com o meu ego do tamanho da Itália na última parte!
Sou eu quem agradece, meu caro, muito obrigado pela companhia!
Lindo o texto!
Abração
Che, é exatamente na minha relação com a Mari que eu mais vejo isso tbm. Muitas vezes me pego criticando nela problemas que são meus. Ainda bem que há muito amor! hehehe Vou ver o filme. Valeu pela dica.
Boa Ma. Não tinha chegado a pensar nesse ponto. Mas quem diz que gosta, diz que entende. Putz, acho que vou escrever um post só sobre isso!
Hugão, claro que as perguntas são todas feitas para o próprio texto que se busca. Mas pensei no seguinte também. Não saberia fazer boas críticas ao seu texto usando uma bibliografia acadêmica. E além disso, sei que a gente aprende a se blindar contra argumentos acadêmicos. Atacamos a coerência interna do oponente, a historicidade dos conceitos, tudo que for possível. E assim não poderia te ajudar. Apresentando questionamentos menos conclusivos e com uma linguagem mais livre e mais poética, pensei, talvez consiga que as perguntas venham de você mesmo e possa colaborar de uma forma mais legal. Abraços!
Caso mais alguém da família fique preocupado. Trata-se apenas de um diálogo fictício para ilustrar e aproximar-nos do tema. ;)
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