Iranianas choram por conta da decisão da FIFA pela preservação de um
espaço público laico e democrático
Foi com pesar que soube da notícia de que a seleção iraniana feminina de futebol havia sido desclassificada das eliminatórias para a próxima edição dos jogos olímpicos, que acontecerão em Londres, em 2012. E o mérito não é o futebol desta equipe, que nunca vi em campo. A eliminação é decorrente do fato de elas terem entrado em jogo, contra a seleção jordaniana, cobrindo suas cabeças com o véu (vestimenta mais do que conhecida, e comum na cultura dos países de maioria muçulmana).
A FIFA, entidade máxima do futebol mundial (a despeito de todos os casos de corrupção que a envolveram nestas últimas semanas), estabeleceu protocolo para que nos jogos de futebol sejam proibidas quaisquer manifestações de caráter ideológico, pessoal, comercial e, como se vê, religioso.
Discussão semelhante, a respeito de manifestações religiosas, surgiu na Copa de 2010, por conta de críticas a jogadores que, em suas entrevistas ou em comemorações de gols, faziam vistosas exibições de textos com referências a figura de Jesus Cristo, ou declarações em que enfatizavam seus agradecimentos a Deus.
Esta busca por um terreno laico para o exercício do esporte, como algumas autoridades do mundo da bola, principalmente europeus, tem procurado afirmar, parece estar em um âmbito bastante equivocado. Eu poderia dizer até, perigoso.
Sempre fui crítico deste tipo de política de contenção de manifestações. No primeiro momento em que surgiram as críticas aos jogadores cristãos a respeito de seus proselitismos dentro das quatro linhas, sempre concordei que qualquer exagero deveria ser discutido e trabalhado em outras esferas que não o da proibição pura e simples. O futebol, como principal esporte mundial, envolve diversas identidades culturais, inclusive religiosas. Portanto, sempre entendi que atitudes sensatas deveriam trabalhar o esporte como espaço democrático de manifestação de idéias e identidades, sob a égide da tolerância e do diálogo.
Agora, a proibição da seleção feminina iraniana de participar das próximas olímpiadas, por conta do uso do véu, é evidência maior de que, não apenas a FIFA não se dispõe à construção de um diálogo internacional a respeito das diferentes identidades culturais, como demonstra que sua decisão bebe da mesma fonte das políticas de intolerância secular que ascendem em um número significativo de países europeus, baseadas no discurso de que o espaço público laico deve ser preservado de qualquer interferência de fundo religioso, e que todos os cidadãos, a despeito de suas crenças e valores, deve submeter-se em última instância à tutela do Estado nacional e isento de valores religiosos.
É necessário observar, porém, que tais políticas inserem-se em um contexto agudo de emergência de uma nova direita nacionalista, temerosa com o ingresso de contingentes de imigrantes, sobretudo vindos de países de predominância muçulmana - os mesmos países que, em época anteriores, foram sugadas por estes Estados europeus, antigos impérios coloniais que interferiram (e até hoje interferem) na soberania destes povos.
Em tempos de debates acalorados sobre a inclusão de novos atores sociais na cena política, de um necessário revigoramento das discussões a respeito do multiculturalismo, e de um novo ascenso do movimentos democráticos (no mundo árabe, e que já bate à porta dos países europeus), a política de intolerância à identidade religiosa só possibilita afirmar que o laicismo, como eixo organizacional do Estado e da sociedade contemporânea, necessita assumir um novo significado, pelo qual não seja capaz de construir (e nem mesmo de tangenciar) discursos de exclusão de identidades culturais, sobretudo religiosas.
===============================
Sydnei Melo é sociólogo e misturou-se com a “gente diferenciada” deste blog logo na faculdade. Cristão crítico, sempre se posicionou sem medo sobre todos assuntos.
3 palpites:
As pessoas cainda onfundem ser laico com ser antirreligioso.
Quanto a manifestações em campo, se não podem haver as de caráter comercial o que são os patrocinadores estampando os uniformes?
Adriano, de acordo com a nota da Folha, linkada no texto, a proibição da FIFA de manifestações de ordem religiosas, políticas, pessoais ou comerciais é em relação às seleções que pleiteiam a disputa olímpica.
Eu poderia ter esclarecido melhor isto no texto. Registro aqui a omissão.
Bem-vindo, Sydnei! ;)
Me inquieta muito essa história, do uso do véu e da burca pelas mulheres islâmicas, das generalizações que se faz, do uso que se faz das palavras "opressão", "liberdade" e "igualdade" em determinados contextos, eu sempre me pergunto sobre isso... ano passado teve um quiprocó danado com o uso do véu e da burca nas escolas e espaços públicos na França...
Não sabia do lance da desclassificação da seleção... é deprimente...
Outros textos teus, recentes, no teu blog, são muito bons, de você abordando essa questão do laico que compreende o religioso, porque, de fato, como bem lembrou Adriano, laico não é antirreligioso.
Curioso mesmo se o "comercial" pode, oras: consuma o futebol de "iguais tão desiguais", mas não aceitamos "diferentes com estatuto de igualdade"... como assim??
Acho que foi o Richard Rorty, num livro sobre "pragmatismo, objetivismo...", que falava da beleza do sistema democrático liberal, universalista - nesta democracia do Rorty eu não acredito, antes que apareça aqui "el hombre retórico y sus preguntas pequeñas" :P - cuja luz abriria janelas para contemplar a diferença num mundo tão diversificado como o nosso, sendo princípio básico para ele a tolerância. Pois se abre janelas e é tolerante, tenho cá minhas dúvidas, porque a janela pode estar aberta, mas não ouse passar por ela, nem mesmo fazer sombra na entrada...
Volte sempre, e quando quiser!
Abração!
Postar um comentário