Esse post faz parte da série Vinho.
Uma das grandes preocupações da antropologia é tentar compreender o que é universal de todas as comunidades e o que é particular. Ironicamente, os livros de antropologia, depois de lidos, dividem-se em dois grupos que seguem um lógica parecida. De alguns lembra-se apenas o relato, de outros apenas a teoria. Detalhes interessantes tem esse perigoso poder de tirar a atenção do todo. Vale lembrar das duas galinhas d’O Homem Que Copiava de Jorge Furtado ou os dois acrobatas de Luís Fernando Veríssimo. O livro Gosto e Poder, de Jonathan Nossiter é uma sorte de estudo antropológico do mundo do vinho.
Os causos, detalhes e declarações polêmicas são uma diversão a parte. Até quem não entende nada de vinho consegue acompanhar e se divertir com a simulação de Nossiter ao levar um vinho alterado (misturado com outro vinho vinagrado) ao fornecedor e escutá-lo argumentar que não há nada de errado. Mesmo depois de prová-lo.
Se você assistiu o filme Sideways (trailer) e lembra qual é o vinho que Miles (Paul Giamatti) acaba tomando sozinho em um copo de plástico ou ao menos a região onde o filme se passa, você irá se deliciar com os relatos e causos de Gosto e Poder. Neste caso, veja também o documentário Mondovino (trailer), do mesmo autor. Se esse é o seu caso, leia este livro duas vezes. Você não quer perder a teoria.
Fique com essa pequena degustação, filtrada, obviamente, pelo meu gosto pessoal.
“Uma reavaliação do vinho também poderia nos levar a reconsiderar o que nos fez adiquirir um gosto pessoal (em termos de vinho, de arte, de política, de tudo) e o que nos permite afirmar essa liberdade crucial sem nos deixarmos intimidar por aqueles que dizem saber tudo ou – pior – por aqueles que orgulhosamente se gabam de saber pouco ou nada”.
“Parece-me um paradoxo crucial. Para existir plenamente como indivíduos, temos de nos inscrever numa narrativa mais ampla que a nossa. Se, ao contrário, afirmamos uma individualidade inteiramente sui generis, afastamo-nos dos mecanismos comuns (baseados na história) que nos protegem da onivora cultura do marketing”.
“A lógica inexorável dos que procuram confiscar a diferença cultural em proveito pessoal (…) é transformar os cidadãos que somos, livres para afirmar nossos gostos, em simples consumidores enganados pela ilusão de que a capacidade de escolher constitui uma expressão do gosto”.
“Garantem que vivemos um era de democracia sem igual, na qual temos universalmente acesso aos vinhos da melhor qualidade possível, a todos os preços, da China ao Paraguai, passando pela África”
“Cidadãos políticos, estamos nos transformando em consumidores previsíveis, confundidos num único e mesmo corpo político transnacional, uniformizado e desprovido de qualquer dimensão ideológica. O “cidadão do mundo” se tornou o “consumidor mundial” do fácil e do açucarado.”
5 palpites:
Falando em gostos, o vinho aparece como uma espécie de "consumo diferenciador", aquele que tem "conhecimento" sabe o que é um "bom vinho". Acho que tem um trecho de uma entrevista que li há algum tempo atrás com o Quino, aquele cartunista argentino que criou a mafalda que dialoga bem com seu post:
FOLHA - Vejo que é um cinéfilo. E falando das coisas que gosta: como um cidadão de Mendoza, também gosta de vinho?
QUINO - Não, um pouquinho não. Gosto muito de vinho. Apesar de um senhor que se chama Michel Roland [francês, consultor de vinícolas], que impõe um tipo de vinho que tem o mesmo gosto em todo lugar. Na última vez que fui ao Brasil, jantei com Ziraldo e pedi um vinho brasileiro. Ele me disse: "Está louco?" Bem, pedimos um e me pareceu ótimo. Com esse Michel Roland o vinho esta virando uma espécie de Coca-Cola no mundo inteiro.
Ele fala sobre Michel Roland, mas quantos Rolands não existem por aí não é?
Exatamente Thi. Achei que aqui no blog era mais legal falar da idéia geral, mas o filme e o livro do Nossiter citam (criticam até não poder mais) o Michel Rolland. O cara ganha uma nota preta para dar consultoria de vinhos. Essas cenas no filme são bem legais. O Nossiter acompanha o Rolland no seu trabalho. É um dos momentos de maior tensão do documentário. A profissão do Rolland é ir nas vinícolas, experimentar o vinho e dizer o que precisa ser feito para que este fique bom. Acontece que pasteuriza o gosto. Via de regra ele indica processos semelhantes, de micro-oxigenização e os vinhos ficam todos mais ou menos parecidos. Isso ainda é vendido como democracia, pois 'aumenta o acesso'. Mas aí cabem as perguntas como esta: escolher entre pepsi e coca é liberdade de gosto? É o mesmo argumento da Monsanto, não é?
A liberdade da democracia é bem ilusória nesse sentido. Não escolhemos o que ouvimos, o que bebemos, e por que raios coca-cola é tão bom e a Monsanto tão rica?
Sei lá porque me veio à cabeça uma frase do Celso Furtado, se não me engano, que (você mais do que eu pode dizer isso) me parece cada vez mais atual:
"Em um triângulo retângulo, o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados do dois outros lados: mas convém adicionar a pergunta: trata-se realmente de um triângulo retângulo?"
Abraços!
Tô rindo muito com essa citação. Genial!
“A lógica inexorável dos que procuram confiscar a diferença cultural em proveito pessoal (…) é transformar os cidadãos que somos, livres para afirmar nossos gostos, em simples consumidores enganados pela ilusão de que a capacidade de escolher constitui uma expressão do gosto”.
Me lembra a conversa que tivemos semana passada sobre a diferença entre escolher entre opções pré-determinadas e construir aquilo a se escolher.
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