Por muito tempo, sob uma ótica simplista e infantil, cometi – assim como muitos sociólogos – o pecado de impedir que meu pensamento relacionasse a obra de Nelson Rodrigues com qualquer teoria social, isolando-o “apenas” como um gênio do teatro e da literatura. Afinal, como poderia alguém que fazia questão de se dizer conservador e apoiar a ditadura militar ser uma referência social?
Logo esse preconceito com a diferença de opinião foi se desfazendo em minha cabeça junto com outros paradigmas que caíam em minha vida. Lendo sua obra, e com artigos de estudiosos, comecei a perceber que havia nos escritos do dramaturgo embriões da sociedade brasileira contemporânea.
Engraçado, mas uma das expressões que mais me impressionam por sua atualidade vem de suas crônicas esportivas e diz respeito ao modo como ele chamava os jornalistas esportivos de sua época: “idiotas da objetividade”. Para Nelson Rodrigues "em futebol, o pior cego é o que só vê a bola. A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num corner mal ou bem batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural".
A arrogância da expressão “idiotas da objetividade” é, na verdade, a demonstração de uma autocrítica radical com relação aos seus pares. Hoje, no tempo da grande mídia, o corporativismo cada vez mais forte impede qualquer possibilidade de um jornalismo (auto)crítico e independente – tanto na direita como na esquerda. Pensemos no que aconteceu com Heródoto Barbeiro, quando apertou o então candidato à presidência José Serra em uma entrevista no Roda Viva e dias depois fora afastado do programa, que sofreu uma reformulação “global”, literalmente. Ou então Maria Rita Khel, demitida após escrever, no Estadão, uma crônica ácida questionando o posicionamento da classe média brasileira frente aos programas de distribuição de renda.
É como se, desde a época de Nelson Rodrigues, tivesse se acentuado o conceito jornalístico que tem como referência os “idiotas da objetividade”. Basta ver os cadernos de economia, esporte, mundo, Brasil. Estão cada vez mais permeados por “técnicos especialistas”, com menos cronistas e sem espaços para discussões ou pluralidade/multidisciplinaridade de opiniões - embora sempre tenha uma pagininha para essa mea culpa, uma hipocrisia. Nesta semana, ficou evidente como temas polêmicos e ricos - a morte de Bin Laden, a união estável homossexual, a disputa pelo metrô de Higienópolis – foram tratados de modo dicotômico e simplista. A ilusória busca da verdade, como se ela fosse uma só, una e indivisível.
Para os editorias de jornais, revistas e noticiários televisivos, o mundo divide-se em bandidos e mocinhos, radicais e conservadores, machos e fêmeas, direita e esquerda, pobres e ricos, patrocinadores e público alvo Falta no jornalismo, assim como na educação, o distanciamento crítico, ou como nos mostrou Nelson, enxergar a “complexidade shakespeariana” e o “evidentíssimo do sobrenatural” que há por trás de cada notícia.
3 palpites:
Em nome do inexistente "leitor médio" vale qualquer simplismo e qualquer maniqueísmo. Muitas dessas dicotomias começam a ser internalizadas pelo uso. De tanto buscar a verdade objetiva de um corner, começam a defender que há maneiras certas e erradas de fazê-lo. Parece que estamos até hoje publicando receitas de bolo no lugar de reportagens. A censura está internalizada, na fomra de objetividade, na forma de "leitor médio" e na forma de medo de demissão. Quando algum comentário dissonante consegue (quase milagrosamente) cruzar essas fronteiras... cortem as cabeças!
ótimo post, com um dos grandes sociólogos não-reconhecidos desse Brasilzão nosso, hehe.
E quando a gente se pega comentando "o cara passa a semana toda treinando para cobrar um escanteio e cobra desse jeito", o que isso quer dizer? Idiotice objetiva ou prática mal feita?
Fico pensando que não falta distanciamento crítico, mas, talvez, uma imersão crítica na realidade. Compreendem?
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