O álbum No chão sem o chão (2009), - é, eu sei, estou super atrasado para o tempo ultra-acelerado cotidiano -, apresenta uma passagem entre oposições: do alto ao baixo, do possível lógico ao concreto falhado, do impopular para a tentativa de se ser popular, da arte já feita/consumada para a possibilidade ou fundamentação dessa própria arte-poética. Essas passagens – que eu resumiria como passagem ao mundano – não são cristalinas, e é exatamente aí que reside a beleza da coisa: a passagem é tortuosa até o fim. (O caso exemplar é o final do segundo CD, na passagem de Astronauta para Saiba ficar quieto).
Ao longo do álbum, o ouvinte que aceitar o desafio proposto logo na primeira música (Quem tem tempo pra perceber/ Tempo pra perder/ Vai chegar ao Fim/ Do tempo de esperar por mim) verá que as guitarras, o naipe de metais, os ruídos, os barulhos e os efeitos sonoros vão sendo aos poucos deixados de lado (ou são depurados) em favor de um som mais limpo, culminando num melancólico violão acústico com três acordes finais que mais abrem o caminho para o ponto do cão do que propriamente encerram qualquer experiência estética. É um final no qual o dito é agora dito pelo não-dito; o violão se encarrega de ser o poeta. (A música então não é solidária a falha da poesia?)
Trata-se de um longo processo de depuração para chegar a uma realidade, a uma concretude, ao mundano despido de tudo que for supérfluo, um mundano desencantado, que desde o inicio – ou desde o fim – já trazia em si a ideia e a semente do fracasso do projeto estético, pois ninguém teria tempo de seguir o poeta ao longo do álbum (do ponto do cão [quem vai ter tempo para segui-lo?] e para quem me quer assim [quem me seguir na lama não se engana] e para fazer sucesso [sou um projeto que odeio]). A origem do fracasso é dupla: ninguém mais tem o tempo necessário para fazer essa experiência estética - e o Romulo Fróes sabe disso -, assim como ele se sabe distante do popular, tentando retornar a um popular falhado, imaginado.
AS PERGUNTAS
É o processo de caminhar para o começo, de se despir. Começa-se já sabendo do fracasso, já fadado ao fracasso. Mas é o fracasso da própria música ou da poesia? Há uma vingança do não dizível ou da música contra o poeta? Ou a música é solidária, intimamente solidária da impossibilidade do cantar? De qualquer maneira, a música também padece desse encolher.
IDÉIAS DISPERSAS
Os próprios nomes (dos CDs e das músicas) são emblemáticos - como, por exemplo, 'no chão, no fundamento, sem o próprio fundamento; no chão, no amparo, sem o chão, sem amparo, desamparado'. Ou, iconograficamente (veja a capa do álbum), do alto não dado (em aberto, fora do campo de visão mas implicado pelo contexto da foto) para o rés do chão, que é aqui a morte, todavia uma morte ambígua, porque se tira da morte sua concretude de carne - é a morte de uma pomba dourada, de uma pomba que existe só no alto do mundo de possibilidades. Talvez a pomba seja a imagem do próprio fazer estético que sempre se choca contra as possibilidades do material dado; por sua vez, o material dado é a própria condição do fazer estético.
No álbum é clara a relação entre a construção da obra e sua possibilidade: é uma relação tensa, que sempre remete ao silêncio (do poeta) e a morte (que é o silêncio supremo e eterno); veja: a pomba da capa, saiba ficar quieto, cala boca ja morreu, melhor é o silêncio da dor cega (trecho da última música do álbum), etc.
Enfim, a beleza do álbum é a quantidade quase infinita de relações de significado que ele carrega. Infelizmente não darei conta de quase nenhum.
O MATERIAL DO FAZER ESTÉTICO
Do ponto do cão, lógico, sim e não, para o chamamento do negativo de uma musa (a anti-musa). O que é esse negativo, se não o contrário de uma musa idílica e campestre? Se não uma musa concreta (uma avó, por exemplo). Uma musa mundana e concreta, não romântica.
O material da música-poesia é esse sentimento do que passou e deixou algo, essa dor. O álbum é melancólico e sempre aponta para a falha, esse sentimento de se chocar e não sobreviver. Mas a possibilidade do fazer poético é a felicidade no alto, ali, não aqui! A casa do poeta-música fica ali e ninguém passa, inclusive o próprio poeta! O alto é o dia, a felicidade, é casa do fazer poético, mas ninguém passa (Minha Casa). Assim como quem quiser bem o poeta, o colocará na nota mais alta do flautim – diga-se de passagem, é um instrumento bem agudo. (Para quem me quer assim).
OUTROS APONTAMENTOS
Desconfio que a relação com o sujeito amado vai mudando de uma cd para outro seguindo essa ideia geral, mas não vou desenvolver esta ideia.
Outro lado que não posso explorar é a clara relação entre as imagens do encarte com os respectivos CDs. No primeiro cd, temos imagens de uma construção imaginária e de carros de boi fora de lugar, ou seja, um mundo de possibilidades em construção, mesmo que canhestramente; no segundo cd, vamos direto de encontro ao mundano mais estilizado e elitista possível, tirado de seu contexto por vidros. (sofás, mesas chiques).
EM RESUMO
O álbum parte de um mundo, de um alto abstrato, aberto, feliz, que é a morada inalcançável do poeta, esse mundo só é dito pelo contexto do não-dito (da música) e de referências na letra (quem olha para o poeta tem quatro saídas: uma sim, uma não). Enfim, a imagem desse mundo de possibilidades só referido, mas não realmente dado, é a imagem da capa do álbum: a pomba dourada morta, que remete ao alto, lugar de excelência da pomba, mas ao alto imaginário ou não real, ou simplesmente abstrato.
Esse processo de ir ao concreto falho e falhado, porque incompleto, se mostrar no desaparecimento dos efeitos sonoros na música, e na letra pela temática mais mundana, digamos.
O álbum é uma contradição, pois o final nega toda a possibilidade do próprio álbum inteiro, já feito.
MINHA CULPA, SÓ MINHA CULPA.
Não vou tratar da questão que maior parte das letras é do Nuno e do Clima e que em geral as músicas são do Romulo. Assumo o álbum abstratamente como o produto de um poeta-músico único, que se justifica em grande parte pela relação estreita entre o trio de artistas.
Para ouvir: http://www.myspace.com/romulofroes
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Olavo Antunes é filósofo (bom, pelo menos é o que atesta o diploma chancelado pela Universidade Estadual de Campinas: 'Formado em bacharelado em Filosofia'). Surdo de um ouvido, gordo, gosta de colas coloridas, calvo precocemente e entende absolutamente nada de música, artes ou o caralho-a-quatro, mas mete sua colher onde não é chamado. Aliás, odeia cozinhar - "Que gordinho sem-vergonha!", gritam os ratos. "Hemos de devorá-lo!"
8 palpites:
E aí, Olavo?!
Cara, valeu por ter escrito, e espero que você escreva mais com a gente por aqui!
Mas, não gostei do texto, eu demorei pra sacar que era de um músico que você estava falando, apesar do título avisar, apesar de logo nas primeiras palavras você mandar que é sobre um álbum e tudo o mais. Muitos travessões, ou apostos explicativos, e parenteses num texto, e já no primeiro parágrafo, deixam a coisa pouco ou nada fluída.
E era pra ser um texto de crítica musical, mas um crítico de algo, imagino eu, deveria se esforçar pra fazer um movimento comparativo, no caso, mostrando que uma produção artística tem referências teóricas, sociais, simbólicas, estilísticas, influências, tem uma história, um autor. Acho que o texto pareceu mais uma leitura estrutural do cd. Saquei as tuas sensações, o que o cd te despertou, mas não consegui sacar muito do próprio trabalho do Fróes, mesmo comparando com outras obras dele, quem sabe um pouco mais, talvez ajudasse.
Espero que não se importe, não tome como recriminação ou ofensa, por favor, são apenas algumas considerações que tive quanto li.
Abraços,
Hugo
bom, Hugo, sobre a constatação que o está mal escrito, acho que é ponto pacífico e, portanto, a aceito.
de resto, temos somente divergências, o que você me pede, ao imaginar uma crítica em abstrato, é:
-tomar o leitor-ouvinte pela mão.
mas, infelizmente ou felizmente, parti conscientemente de um pressuposto inválido (e talvez grosseiro), a saber, admiti que as pessoas saibam quem é e já tenham ouvido o Romulo Fróes (grafia correta, aliás).
Esse pressuposto tem então duas consequências: parti da ideia que as pessoas saibam por si, porque já teriam ouvido várias vezes, identificar as referências contidas, que são:
- a arte plástica do final dos anos 80 no Brasil, influenciada principalmente pelo oiticica.
- o samba, nas figuras do zé keti e, principalmente, nelson cavaquinho (e batatinha).
- uma leitura rigorosa do trio de artistas da MPB
Outra consequência:
- assumi que as pessoas conhecessem o trio de artistas, que me parecem o que há de mais interessante no panorama paulista, e tenham visto suas obras e entrevistas e polêmicas. A do nuno ramos seria a mais óbvia, devido aos urubus na última bienal.
Feito esse calvário de pressupostos com suas consequências.
Tomei a ideia de crítica enquanto demora estética na própria obra, que deve se bastar em certo sentido, ainda mais no caso de um álbum duplo difícil e, a primeira vista, desconexo.
Então, assumido o leitor-ouvinte inexiste, quis ajudá-lo a ver como, na verdade, o álbum tem sim uma lógica de leitura interna (da obra de arte).
enfim, não vejo uma crítica para mais ou para menos que não faça o que eu tenha feito, isto é, mostrar a lógica interna da experiência da obra de arte.
o resto seria recheio - que você me diria que seria necessário.
resumindo:
não quis fazer uma divulgação do Romulo Froés, mas antes um crítica estética através da experiência estética.
crítica essa que mostrasse que há sim um mundo a ser explorado por debaixo da suposta descontinuidade entre os álbuns e dentro das próprias músicas.
os cds são bens difíceis, convido-lhe a uma audição!
Olavo,
Realmente não sei o que deve fazer um crítico de arte. Tentei justamente dizer a forma com que vejo isso, ou seja, comparativamente.
Não acho, definitivamente, que isso seja pegar o leitor pela mão.
Não é o caso de entrarmos numa discussão sobre a experiência com obras de arte, como uma visita a um museu, por exemplo. Há um sem fim de gente dizendo, de uma lado, que é preciso conhecer a história da arte pra admirar um obra, enquanto outros dizem que não, que o contato com as obras provoca o expectador das mais diversas formas, mesmo sendo este sem "bagagem". Tendo, repito, tendo a ficar em cima do muro sobre isso.
A forma como leio a tua proposta, uma crítica estética da experiência estética, da lógica interna, pra mim, estaria no segundo time, grosseiramente dizendo, e, por isso, o meu desconforto com o texto, justamente porque pra estar de acordo com a tua proposta de crítica, é suposto um leitor conhecedor, como você bem destacou, aliás.
Dito de outra forma, pra eu, leitor, poder dizer se enxergo a lógica interna, ou se é recheio o que você está dizendo, tenho que procurar antes o que é a arte plástica dos anos 80 no Brasil, etc., então, ouvir o Romulo Fróes e, por fim, voltar ao texto.
Enquanto isso, pensando na crítica como exercício comparativo, o texto continua inacessível pra mim.
Abraços
Hugo,
essa é graça da coisa.
sendo inacessível e vc sendo curioso, pelo menos é o que me parece, isto fará você ir atrás das referências, estabelecendo daí um rico jogo contra meu texto e contra a própria obra, através dos rudimentos de lembrança e de pesquisa que vc fizer.
[e contra aqui é no sentido de gegen, do alemão, que não é ser contra. ]
quanto ao outro aspecto, convido-lhe a uma mesa que bar, porque eu tenho mania de sair digitando sem reler, e o texto fica uma bosta.
é isso que tenho para dizer de bate e pronto.
- o convite é sério, para beber, digo. o meks pode intermediar já que ele tá me devendo umas brejas mesmo.
quanto a seu comentário sobre o museu, as duas coisas são momentos da mesma experiência.
em alguns casos, como eu assim o julguei para esta crítica, um lado é privilegiado, pois me parece que era mais importante.
e outra coisa, é que eu acho de uma besteira sem fim ficar falando de referência em música.
Convite aceito, Olavo, com uma condição, além da presença do Mekaru, ele deve escrever um texto antes disso, do contrário, nada feito!
:))
novo cd lançado:
http://www.umlabirintoemcadape.blogspot.com/
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