Li críticas sobre o cinema de Sergio Bianchi, segundo as quais, em seus filmes, a obsessão do diretor pelo argumento atrapalha a trama. Depois do fantástico “Cronicamente Inviável” e do bom “Quanto vale ou é por quilo?”, tive a oportunidade de assistir, sem muitas expectativas, ao “Os Inquilinos”, que passou quietinho por 2010. Bianchi não é sociólogo, mas suas películas são aulas de sociologia, que precisam ser revistas algumas vezes para se notar tantas entrelinhas.
Não entrarei no mérito do filme, que tem passagens marcantes e outras nem tanto, mas trago-o aqui pois em uma de suas cenas, lá estava a linda poesia de Carlos Drummond de Andrade, “A morte do leiteiro” (confira na íntegra clicando aqui), interpretada por Cassia Kiss.
Drummond traz na poesia, sua visão sobre o falecimento de um leiteiro, morto por engano durante a madrugada.
Na Bienal de Artes 2010, um dos vídeos fazia menção a uma entrevista de Clarice Lispector, em que diz sobre os enigmas de seus escritos e menciona um texto escrito sobre o bandido Mineirinho, “morto por treze tiros, quando apenas um bastava”.
A crônica, escrita em 1978 (confira na íntegra clicando aqui), traz o seguinte trecho:
“(...)a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim. Mas há alguma coisa que, se me fez ouvir o primeiro tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina - porquê eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.”
Havia me lembrado deste vídeo quando aconteceu o massacre de Realengo, e me veio à tona novamente enquanto ouvia a triste saga do leiteiro.
“Primeiras Estórias”, de Guimarães Rosa, é um livro no qual praticamente todos os contos falam sobre uma solidariedade mágica que em momentos únicos compõem os laços humanos. Uma família levada ao hospício, um pai que foge pro meio do rio, o enterro de uma menina abençoada. No conto “Irmãos Dagobé”, outro exemplo interessantíssimo. Liojorge, cansado de ser humilhado por Damastor Dagobé, mata-o. O tempo inteiro a tensão da possível vingança dos três valentes irmãos de Damastor, que matariam do pior modo possível o assassino. Até que Liojorge faz o anúncio que participaria do enterro e que ajudaria a levar o caixão. Para a surpresa de todos no arraial, os irmãos aceitam a ajuda e nenhuma morte acontece.
Drummond mostra-se quase íntimo de um entregador de leite que sequer conhecia e Clarice diz que o horror com o bandido, fez dela própria uma vítima. Os irmãos Dagobé entendem a humilhação passada por Liojorge e este é perdoado, mesmo matando um dos irmãos. Tragédias, catástrofes, pena, culpa. O que tira, da escuridão do baú, a possibilidade de nos colocarmos no lugar do outro?
É a dúvida que incomoda a professora do filme. “De repente, por causa de um barulho, tudo acontece. Depois acalma de novo. Nasce o dia, mas aí já é diferente...”
Eu complementaria: estamos mansos, individualmente mansos, novamente.
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6 palpites:
Thi, faltou o link pra crônica da Clarice na íntegra.
Ganhei o dia só de conhecer essa crônica que ainda não conhecia.
Cada referência usada me incomodou de uma maneira diferente.
Obrigado pelo post indigesto.
Este vai ficar na minha cabeça por alguns dias.
São fascinantes as suas releituras. Parabéns pela excelente postagem.
Alterado Caio!
http://salmocarandiru.blogspot.com/2007/07/por-que-di-morte-de-um-facnora-por.html
Obrigado Paty, sinta-se sempre bem-vinda por aqui...
"há alguma coisa que, se me fez ouvir o primeiro tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina - porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro."
"Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados."
"Só depois que um homem é encontrado inerte no chão, sem o gorro e sem os sapatos, vejo que esqueci de lhe ter dito: também eu."
"Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila, e que os outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer. Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender."
" todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização. Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento."
São alguns dos trechos desta belíssima crônica da Clarice Lispector. Muito bem, Thiagão!
Alías, medo maior pavor de você, cara. Escreve sobre tragédia: vem um tsunami; escreve sobre o Mineirinho: matam o Osama bin Laden...
Falando sobre o post, quando li a primeira vez, tive muita dificuldade pra sacar a parada toda. É um post bastante abstrato, bastante teórico, recheado de intertextualidade. Acho isso incrível por você. Mas me preocupo com uma coisa, com a funcionalidade da parada. Pois, na pressa, tive dificuldade pra entender, e com paciência, pensei sobre a tênue distância entre a erudição de textos assim, com um diletantismo qualquer, exibição de referência. Digo isso porque me é uma dificuldade também, faço mea culpa, cortar trechos de textos quando coisas que penso, lembro e fazem sentido pra eu poder comunicar algo, então não consigo limar do texto essas coisas. Mas algumas, sim, precisam ser retiradas, porque não jogam com o restante do tema, do objetivo, do assunto, e acabam como acessórios dispensáveis. E que, se olhados para a totalidade do texto, pouco ajudam na compreensão dele. Neste texto, eu retiraria as referências aos filmes do Bianchi, por exemplo. O excesso de referências às vezes nos atrapalha, acho... Acho que isso deve ser uma preocupação nossa, constante. Eu tenho dificuldade com isso também, dá pra perceber, né...
Acredito que "Irmãos Dagobé", o poema de Drummond e o texto de Clarice já são densos e ricos o bastante para um post.
Enfim, porém, de modo algum isso que estou chamando de "excesso" impede de repararmos na beleza, por exemplo, do trecho: "Tragédias, catástrofes, pena, culpa. O que tira, da escuridão do baú, a possibilidade de nos colocarmos no lugar do outro?"
Parabéns!!
Verdade, mas minha cabeça funciona que nem criança que não acaba uma brincadeira e já começa outra...
Já me defendendo, cortei mais seis - isso mesmo, seis - outras referências que me vieram viajadas...
Acho que não to conseguindo mais lidar com o "entender" de quem lê e isso não tem me preocupado - e eu lá quero ser entedido? Pra mim faz mais sentido as entrelinhas, o que não é óbvio..Escrever descritiva e teoricamente é muito chato pra mim como processo...
Pensei, por exemplo, em divagar sobre o que significa "estarmos mansos", mas achei que estragaria o texto...
Cansei do "lirismo funcionário público com livro de ponto espediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor." hehehe.. Tá vendo? Olha a intertextualidade aí..
Mas deixa pra lá porque os comentários estão ficando metalinguísticos demais...!! rss
O texto do Bianchi está aí
1) pra divulgar um filme desconhecido
2) nada faz sentido sem ele, que puxou todos esses vagões e em cada um deles tinha um pouco do filme..
Bjs
Belo Post. Não conhecia o filme, nem a crônica. A poesia já tinha ouvido alguma parte ou alguém comentar, mas nunca lido inteira...
Nosso amigo viajou. Não acho que há excessos de referências. As coisas se encaixaram e deram uma objetividade.
Okay que você retirou algumas outras referencias (que bom!). Isso mostra que a sua preocupação em deixar mais objetivo valeu a pena.
Mansos. Nós ou eles? Eu ou o outro?
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