segunda-feira, 18 de abril de 2011

Vinho: A última Parreira (Conto)

. . Por Thiago Aoki, com 2 comentários

Um homem na cama do hospital. Estava para morrer, sabia que morreria em breve, era fato consumado. Era um escritor, um poeta errante, nos momentos errados. Vendo de sua cama que a poesia esfacelava-se na velocidade da folhas que caiam no outono. Da janela do hospital, via-se uma parreira que parecia resistir ao pincel cinza que transcorria a cidade. Sentia-se só.

Na mocidade, pensava que alcançar a academia, não tão acessível há quarenta anos, lhe garantiria uma vida de conforto. Lembrava como se fosse ontem do Vinho do Porto que ganhara de seu pai logo que entrou para o seleto grupo de futuros intelectuais:

-Tem tudo para ser grande, filho. Seus sonhos têm que ser maior que as suas pernas, assim como é maior a quantidade de vinho em uma garrafa do que o que se cabe em uma taça. Mas o que chamam de maturidade é a calma para mudar o vinho de recipiente sem que ele transborde ou manche a toalha sobre a mesa.

Anos depois, formou-se, era, enfim, oficialmente letrado. Tudo ia bem, engenheiro estável, saiu empregado da formatura e, colhendo os frutos do milagre econômico brasileiro, tinha sua fatia do bolo. Estava pronto para a vida, e seu pai, dividindo com ele um vinho francês que trouxera de sua última viagem a Paris, especialmente para a ocasião, pressionava.

- Filho, que grande dia.

-Obrigado.

-Reparou que a taça de vinho tem o formato de uma vulva? A mulher que compõe uma família, meu filho, é como este recipiente. Olhe para sua mãe, por exemplo, serena, sentada na mesa. O cristal, aqui, poderia ter qualquer formato, mas ele abrilhanta e acalenta o seu conteúdo, sem deixar que ele se perca, dando a base e forma para uma vida estável. Você precisa se casar, meu filho.

- Sim pai, eu estou procurando a mulher certa.

-Na sua idade, eu já era casado.

-Sim, e eu tenho certeza que logo alcançarei mais essa conquista.

-Tem mesmo? Não me parece uma preocupação recorrente pra você, como obviamente deveria ser.

-Assim como o cristal é único dentre tantos materiais, procuro uma dama única para que eu possa preenchê-la.

-A mulher certa, meu filho, é uma dama na sociedade e uma puta na cama.

-Devo olhar novamente para minha mãe como exemplo, pai?

O que é preciso para uma mudança de rumos? Uma separação, um novo emprego, um posicionamento político. Pois para ele a mudança veio anos depois, ainda estava solteiro, sob efeito de muitas taças de vinho, sentado embriagado com uma colega da empresa, após convidá-la para um vinho em sua casa, terminado o expediente.

-Agora que estamos bêbados, conte-me um segredo qualquer.

- Faz três anos que não falo com meu pai, desde que me formei.

-Por quê?

-Por causa de uma taça de vinho, como esta.

-Como?

-É uma longa história, não quero falar. Conte-me você um segredo.

Sentiu a moça lhe beijar e não reagiu, apenas retirou do bolso um papel, pegou uma caneta tinteira e escreveu palavras que lhe vieram vomitadas à cabeça. Foram seus primeiros versos e a descoberta de que escrever lhe fazia reinventar o mundo como um beijo inesperado. Largou o emprego, estaria em tempo integral dedicado à nova profissão, seria escritor.

Tentou um, dois, três, quatro, cinco, quinze, vinte e cinco manuscritos. Viveu de esporádicos trabalhos para a redação de alguns jornais locais. Vez ou outra ainda escrevia panfletos para fábricas, sindicatos, ou quem lhe pagasse. Passaram-se anos sem que nenhum de seus poemas fosse aceito por editoras. Voltou a bater na porta de seu pai, que não demonstrou surpresa com sua volta, tampouco tristeza por seu rosto fatigado. Ofereceu-lhe um vinho comum, chileno, mas que poderia ser de qualquer país, um destes que se oferece pra visitas comuns.

- A que devo sua visita?

-Preciso que fale com seu amigo, Benício.

- Dono daquela editora?

-Sim.

- O que quer com ele?

-Tenho um conjunto de poemas, que escrevi nestes últimos anos, desde que larguei a engenharia. Quero publicá-los.

-Por favor, saia de minha casa.

Bebeu o que restava de vinho em sua taça e, com a porta fechada, sabia que dali em diante, o vinho seria doce e barato, não mais combustível de sua imaginação, apenas fonte de dores de cabeça no dias seguintes. Logo se percebeu doente e, após muito resistir ao seu próprio pessimismo, internou-se. Estava para morrer, sabia que morreria em breve, era fato consumado. Era um escritor, um poeta errante, nos momentos errados.

Quando o aparelho alertou que seu coração parara de bater, não se sabia se o que tinha em mãos era exatamente um haikai ou se havia simplesmente acabado sua força no meio da escrita. Não queria estar ali, e assim morrera, com os olhos rasos d’água ainda abertos, mirando a janela. Um poeta desconhecido, cujo epitáfio fazia-se por linhas cinzentas e tortas de resmungo retiradas de seus versos derradeiros.

A brisa no verde da parreira proclama
Safra rica de Vinho doce
Na vida seca de dor e de cama


Era início do outono e as folhas começavam a cair.

2 palpites:

-A mulher certa, meu filho, é uma dama na sociedade e uma puta na cama.

Bonito

Taí...conto com poesia! E ainda de uma série temática. Ponto.

    • + Lidos
    • Cardápio
    • Antigos