Um homem na cama do hospital. Estava para morrer, sabia que morreria em breve, era fato consumado. Era um escritor, um poeta errante, nos momentos errados. Vendo de sua cama que a poesia esfacelava-se na velocidade da folhas que caiam no outono. Da janela do hospital, via-se uma parreira que parecia resistir ao pincel cinza que transcorria a cidade. Sentia-se só.
Na mocidade, pensava que alcançar a academia, não tão acessível há quarenta anos, lhe garantiria uma vida de conforto. Lembrava como se fosse ontem do Vinho do Porto que ganhara de seu pai logo que entrou para o seleto grupo de futuros intelectuais:
-Tem tudo para ser grande, filho. Seus sonhos têm que ser maior que as suas pernas, assim como é maior a quantidade de vinho em uma garrafa do que o que se cabe em uma taça. Mas o que chamam de maturidade é a calma para mudar o vinho de recipiente sem que ele transborde ou manche a toalha sobre a mesa.
Anos depois, formou-se, era, enfim, oficialmente letrado. Tudo ia bem, engenheiro estável, saiu empregado da formatura e, colhendo os frutos do milagre econômico brasileiro, tinha sua fatia do bolo. Estava pronto para a vida, e seu pai, dividindo com ele um vinho francês que trouxera de sua última viagem a Paris, especialmente para a ocasião, pressionava.
- Filho, que grande dia.
-Obrigado.
-Reparou que a taça de vinho tem o formato de uma vulva? A mulher que compõe uma família, meu filho, é como este recipiente. Olhe para sua mãe, por exemplo, serena, sentada na mesa. O cristal, aqui, poderia ter qualquer formato, mas ele abrilhanta e acalenta o seu conteúdo, sem deixar que ele se perca, dando a base e forma para uma vida estável. Você precisa se casar, meu filho.
- Sim pai, eu estou procurando a mulher certa.
-Na sua idade, eu já era casado.
-Sim, e eu tenho certeza que logo alcançarei mais essa conquista.
-Tem mesmo? Não me parece uma preocupação recorrente pra você, como obviamente deveria ser.
-Assim como o cristal é único dentre tantos materiais, procuro uma dama única para que eu possa preenchê-la.
-A mulher certa, meu filho, é uma dama na sociedade e uma puta na cama.
-Devo olhar novamente para minha mãe como exemplo, pai?
O que é preciso para uma mudança de rumos? Uma separação, um novo emprego, um posicionamento político. Pois para ele a mudança veio anos depois, ainda estava solteiro, sob efeito de muitas taças de vinho, sentado embriagado com uma colega da empresa, após convidá-la para um vinho em sua casa, terminado o expediente.
-Agora que estamos bêbados, conte-me um segredo qualquer.
- Faz três anos que não falo com meu pai, desde que me formei.
-Por quê?
-Por causa de uma taça de vinho, como esta.
-Como?
-É uma longa história, não quero falar. Conte-me você um segredo.
Sentiu a moça lhe beijar e não reagiu, apenas retirou do bolso um papel, pegou uma caneta tinteira e escreveu palavras que lhe vieram vomitadas à cabeça. Foram seus primeiros versos e a descoberta de que escrever lhe fazia reinventar o mundo como um beijo inesperado. Largou o emprego, estaria em tempo integral dedicado à nova profissão, seria escritor.
Tentou um, dois, três, quatro, cinco, quinze, vinte e cinco manuscritos. Viveu de esporádicos trabalhos para a redação de alguns jornais locais. Vez ou outra ainda escrevia panfletos para fábricas, sindicatos, ou quem lhe pagasse. Passaram-se anos sem que nenhum de seus poemas fosse aceito por editoras. Voltou a bater na porta de seu pai, que não demonstrou surpresa com sua volta, tampouco tristeza por seu rosto fatigado. Ofereceu-lhe um vinho comum, chileno, mas que poderia ser de qualquer país, um destes que se oferece pra visitas comuns.
- A que devo sua visita?
-Preciso que fale com seu amigo, Benício.
- Dono daquela editora?
-Sim.
- O que quer com ele?
-Tenho um conjunto de poemas, que escrevi nestes últimos anos, desde que larguei a engenharia. Quero publicá-los.
-Por favor, saia de minha casa.
Bebeu o que restava de vinho em sua taça e, com a porta fechada, sabia que dali em diante, o vinho seria doce e barato, não mais combustível de sua imaginação, apenas fonte de dores de cabeça no dias seguintes. Logo se percebeu doente e, após muito resistir ao seu próprio pessimismo, internou-se. Estava para morrer, sabia que morreria em breve, era fato consumado. Era um escritor, um poeta errante, nos momentos errados.
Quando o aparelho alertou que seu coração parara de bater, não se sabia se o que tinha em mãos era exatamente um haikai ou se havia simplesmente acabado sua força no meio da escrita. Não queria estar ali, e assim morrera, com os olhos rasos d’água ainda abertos, mirando a janela. Um poeta desconhecido, cujo epitáfio fazia-se por linhas cinzentas e tortas de resmungo retiradas de seus versos derradeiros.
A brisa no verde da parreira proclama
Safra rica de Vinho doce
Na vida seca de dor e de cama
Era início do outono e as folhas começavam a cair.
2 palpites:
-A mulher certa, meu filho, é uma dama na sociedade e uma puta na cama.
Bonito
Taí...conto com poesia! E ainda de uma série temática. Ponto.
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