"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."
Inspirado por e-mail de um Indigesto amigo, percebi que quando penso em Fernando Pessoa, o que me vem a cabeça são esses versos, os primeiros da bela "Tabacaria", poema de Álvaro de Campos, mais um de seus múltiplos personagens. Então me pergunto: por que aquele mesmo poeta fingidor que nos inspira a passar além da dor e a não apequenarmos nossa alma, no poema "Mar Português", agora nos condena a não sermos nada? Pior, por que gostamos de ler coisa tão trágica ou grandiosa sobre nós mesmos? Em suma, a malvada esperança.
No final de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", ao fazer um balanço de sua vida, o personagem-narrador diz que teve seus êxitos e fracassos, e que algum desatento poderia pensar que seu saldo, em vida, fora nulo. Porém, lembra-se de fato que lhe fazia o saldo positivo: "não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria". Um dos mais belos trechos de Machado de Assis.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."
Inspirado por e-mail de um Indigesto amigo, percebi que quando penso em Fernando Pessoa, o que me vem a cabeça são esses versos, os primeiros da bela "Tabacaria", poema de Álvaro de Campos, mais um de seus múltiplos personagens. Então me pergunto: por que aquele mesmo poeta fingidor que nos inspira a passar além da dor e a não apequenarmos nossa alma, no poema "Mar Português", agora nos condena a não sermos nada? Pior, por que gostamos de ler coisa tão trágica ou grandiosa sobre nós mesmos? Em suma, a malvada esperança.
No final de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", ao fazer um balanço de sua vida, o personagem-narrador diz que teve seus êxitos e fracassos, e que algum desatento poderia pensar que seu saldo, em vida, fora nulo. Porém, lembra-se de fato que lhe fazia o saldo positivo: "não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria". Um dos mais belos trechos de Machado de Assis.
Em "Morte e Vida Severina", nosso João Cabral de Melo Neto nos narra a história de Severino, um retirante como outro qualquer, que busca de trabalho e encontra a mais crua miséria. Numa dessas andanças, conhece José, mestre carpina, morador de um mocambo paupérrimo. Ao constatar tanta pobreza, fome e falta de perspectivas no local, Severino indaga:
"— Seu José, mestre carpina,
que diferença faria
se em vez de continuar
tomasse a melhor saída:
a de saltar, numa noite,
fora da ponte e da vida?"
Seu José não responde à pergunta pois uma mulher entra, interrompe e lhe anuncia o nascimento de novo filho, a mulher de José daria a luz, naquele momento. Eis que, no trecho final, após a criança já ter vindo ao mundo, saudada pelas pessoas do vilarejo, a resposta de seu José vem:
"— Severino retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga;
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina."
Contrariamente ao Brás Cubas, seu José transmitiu a uma criatura o legado de nossa miséria. E esses versos, além de responderem ao Severino, servem também de contra-argumento a Brás Cubas. João Cabral explica, como diriam os filósofos do "Terra Samba", "como essa gente que sofre com fome e que passa mal / vai batucar na panela vazia e fazer carnaval". A esperança existente no povo brasileiro talvez seja o mais intrigante de nossos patrimônios simbólicos. É uma faca de dois gumes, cujo corte resultaria em duas metades opostas: frustração e conquista. Voltando a Pessoa, saber-se nada, mas viver com a coragem de se atravessar um mar bravo, ainda que se esteja fadado a nada conseguir. É missão do Severino que cada um tem em si atenuar o legado da miséria, sem saltar da ponte da vida. Miséria humana, miséria física, miséria moral.
Enfim, não caiam nesse "manifesto" da Coca-Cola - cá entre nós, esses caras do marketing são realmente bons.. Essa ideia de meio-cheio, meio-vazio é uma falsa polêmica que fica bonita ao som de Bob Dylan, mas não me engana. Tanto faz o otimismo ou pessimismo, ver a vida como copo cheio ou vazio, desde que não se ignore a profundidade do copo e o conteúdo do líquido, ou seja, até onde e como se pode chegar. Seria mais coerente que a popaganda incentivasse o público-alvo a se questionar sobre o líquido que preenche seu copo, sua vida, mas acho que isso os fariam perder alguns clientes. Melhor mesmo mesmo mantê-los conformados.
PS: Com o Corinthians eliminado na Libertadores, escrever sobre esperança foi uma terapia corinthiana, obrigado...
4 palpites:
que medo de você, Thiago!
outro dia no supermercado, escolhendo o macarrão pra jantar, ouvi um citação de Aristóteles que não sei reproduzir, mas era algo como "a sabedoria está no meio". não sei como pensá-la a partir da metáfora do copo e do líquido... quem sabe, se for através de entre a coca-cola e o copo é que está a sede, o movimento, o caminho, o verbo beber, a ação.
mas como tem poesia demais nesse imbróglio seu aí, depois de um putaquepariu de páginas, em Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa encerra o livro com uma única palavra-frase: Travessia.
talvez importante seja lembrar o entre, porque pensar sempre onde se vai chegar, e também, que (re)começa-se sempre algo, pode esquecer que há um caminho persistente, no meio...
como sãopaulino pessimista, não escondo a simpatia pela eliminação do curintchia, mas contente fico com o futebol apresentado pelo time de são jorge, nem sempre apenas de resultado se faz futebol. uma equipe que é eliminada sob aplausos não tem do que se queixar...
Candidato a melhor texto do blog, é isso que ouvi nos bastidores?
Talvez o melhor do blogue, Mekaru. Um: porque vai na contramão do pessimismo e funciona (?) como antídoto. Dois: porque, sem querer ou querendo, mete-se o pau no Miséria e, consequentemente, em todos os que com ele se identificam (todos nós?). Três: Porque mais importante que a vida, que a filosofia, que o Aritóteles, Machado ou João Cabral, somente o futebol. E melhor ainda se for o Corinthians bailando na Libertadores...
Agora, se o sujeito não ver que está completamente cheio o copo de cocacoladegarrafinhacomgelo servido por uma morena meiga e gostosa ao nascer de um sol desses, esse cara tem mesmo é que ler o Miséria e dar um tiro na própria cabeça. Se bobear, um cara desses ainda deve odiar o mar.
Aí nem eu, que sou mais bobo...
Smac
A resposta de Seu José para o Severino é ótima, mas aproveitando o Fernando Pessoa, tem uma parte de A Casa Branca Nau Preta, de Álvaro de Campos, muito boa:
"E é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta,/
Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta,/
E nada que se pareça com isso devia ser o sentido da vida..."
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