"I left my home in Georgia
Headed for the Frisco Bay
I've got nothin' to live for
Looks like nothing's gonna come my way, yeah...
Sittin' on the dock of the bay
Watchin' the tide roll away
Sittin' on the dock of the bay
Wastin' time..."
(Otis Redding)
Poucas obras talvez tenham um início tão emblemático como A Metamorfose, de Franz Kafka, ou melhor, talvez poucas obras sejam tão emblemáticas como este livro do escritor nascido em Praga: "Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso." Gregor é um funcionário público com uma vida padronizada, pautada pelas obrigações tanto em relação à sua família como em relação à sociedade, na qual as relações entre as pessoas eram norteadas por um interesse material, mercantil, somente. Kafka, com o poder que só "o papel e a caneta" poderiam lhe dar, transforma-o em uma barata. Então, com o absurdo que não só a literatura permite, Gregor adquire humanidade. Enquanto homem, Gregor era um inseto desprezível e nojento, imagina-se, como uma barata. Ao longo da novela, todavia, como uma barata do tamanho de um homem adulto, Gregor é de fato um Ser Humano, preso dentro de um quarto. E, ao mesmo tempo, pela mesma transformação, também, passam seus familiares, que adotam uma postura mais sensível entre si e em relação a Gregor.
Quando assisti ao Comer Rezar Amar (Eat Pray Love), adaptação do livro de Liza Gilbert, do qual ela é também personagem, mais uma vez me lembrei de Kakfa, porque a primeira vez que a recordação me ocorrera foi vendo Na Natureza Selvagem (Into the Wild), que conta a história de Christopher McCandless.
Nos diz Liza:
- Preciso mudar.
(...)
- Eu nunca dei um tempo de duas semanas só pra mim.
(...)
- Toda a minha enorme sede de vida desapareceu.
- Quero ir a algum lugar e me maravilhar.
(para se sentir livre)
Liza vai à Itália, à Índia e à Bali. Já Chris McCandless deixa pra trás tudo, família, amigos, dinheiro, ateia fogo no carro e em seus documentos, e desaparece no interior dos EUA.
A postura de Chris parece muito mais crítica, afinal, está contestando A Sociedade. Ele abre mão de tudo para viver em meio às aventuras que a natureza pode lhe proporcionar, distante da falsidade, das mentiras que os homens vivem uns com os/pelos outros. Chris deseja encontrar-se consigo, longe de tudo que apresenta e representa a sociedade na qual todos vivemos. Submete-se a um processo que ele mesmo nomeia de "revolução espiritual". Assim, Chris encontra Liza, e ambos, a seus modos, dialogam com Kafka.
Se a atitude de Chris pode parecer crítica, no entanto, nada tem de inovadora. Por exemplo, Edgar Allan Poe já descrevia o flâneur, trabalhado também por Walter Benjamin. Este, por sua vez, pensava o poeta Charles Baudelaire da Paris de meados do século XIX, transformada pela revolução industrial. O flâneur é uma figura sobretudo urbana e que ressaltava a perversidade das relações humanas, das quais, não por acaso, Chris também se queixava. A diferença é que, ao invés de partir para o isolamento da Natureza, o flâneur se esquece em meio à multidão presente nas ruas.
Enquanto Kafka transforma seu personagem logo de início em uma barata para torná-lo humano, Chris rejeita tudo e todos à sua volta, mostrando o quão barata, asqueroso e repulsivo, tudo ao seu redor é. Já Liza, talvez, se apresente como uma espécie de Gregor, sentido-se uma barata e em busca de uma transformação que a realize. Destituída de "crítica social", Liza viaja o mundo em busca de si própria, consome o mundo e a diversidade dele para si.
Chris e Liza estão à frente de suas decisões, de suas próprias histórias, numa postura que se confunde em meio a vários elementos, à coragem, à autoafirmação, à vaidade, ao egocentrismo, e até mesmo à indiferença, em algumas situações. Ao longo de suas trajetórias, quem se sobressai, quem está a frente, no começo, no meio e no final, no caso de Chris trágica e resignadamente, são eles, Liza e Chris. Voltados a questões distintas, Chris inconformado com a sociedade na qual vive, querendo se afastar para se transformar, e Liza incomodada consigo mesma, precisando mudar, ambos parecem seguir com rigor os valores aos quais estão ligados. São EUs enormes desfilando, que poucas concessões estabelecem ao mundo e às pessoas ao seu redor. Sujeitos bem informados, que muito bem falam, mas que têm dificuldade para ouvir. E, ironicamente, nada de novo descobrem quanto a si próprios, apenas se redescobrem. Com Chris a situação é ainda mais irônica, porque ele se depara com a obra de Boris Pasternak, que esteve com ele o tempo todo desde que partira, e da qual ele gostava muito, Doutor Jivago.
Por isso Kakfa, em A Metamorfose, triunfa, na posição de escritor genial, nos comunica nossa miséria, de barata que todos somos, em perspectiva.
♫ ♫ "Sittin' on the dock of the bay/ Watchin' the tide roll away/ Sittin' on the dock of the bay/ Wastin' time..." ♫ ♫
"A verdadeira viagem de descobrimento não consiste em buscar novas paisagens,
senão em ter novos olhos" (Marcel Proust)