Antes de se falar sobre arte e afins, é bom fazer alguns esclarecimentos, e o objetivo dessa postagem e de outras que portem esse título é fazer justamente isso - limpar o meio de campo para entender melhor o que diabos estamos falando aqui.
Na primeira postagem, a abordagem de um tema velho, mas recorrente, que vem da famigerada expressão "sétima arte", utilizada de maneira exagerada por pessoas, publicações e afins para designar o cinema - se o cinema é a sétima, quais são as outras seis, que nunca ouvimos falar por aí? E que papo é esse de "oitava arte" (fotografia) e "nona arte" (histórias em quadrinhos) que só meia dúzia de pessoas gosta de falar?
Para isso, temos que voltar a um dos grandes nomes da filosofia moderna (séc. XVIII e XIX), um dos mais incompreendidos até hoje (parte disso é culpa do próprio autor, que não fazia questão de ser claro na sua maneira de escrever e nos raciocínios que fazia) e o criador da hierarquia de artes da qual o cinema seria a mais recente - George Wilhelm Friedrich Hegel, membro do quarteto fantástico do Idealismo Alemão e parceiro da dupla dinâmica Hegel-Kant do Iluminismo Filosófico.
"Mas por que vou estudar esse cara ultrapassado, prolixo e que dizem pra eu não ler porque ele é de esquerda?!", os leitores podem exclamar. Por dois motivos: Hegel foi o filósofo que inventou a classificação das artes em seis formas - ou seja, é indiretamente o responsável pela criação dos termos "sétima arte" e afins. O outro é que o cara, independente de ser de direita ou de esquerda, continua ecoando nas nossas vidas de um jeito ou de outro com a sua filosofia extremamente complexa e detalhada - o que torna importante saber o que ele escreveu para descobrir o porquê de ter durado tanto e nos influenciar até hoje.
Para compreender essa classificação em seis formas, é preciso primeiramente compreender um dos temas principais da obra do alemão - a sua concepção de arte.
A arte é parte constituinte do sistema filosófico que Hegel desenvolve para a compreensão da realidade e a descoberta de seu sentido: para ele, a atividade humana e toda a sua história tendem a algo que ele chama de Ideia Absoluta - resumidamente, ela é a unidade de todo conhecimento humano, desenvolvido a tal ponto que não se pode avançar além dele, e que representa o ápice desse conhecimento; além disso, a própria vida material e biológica seria uma extensão dessa Ideia: a atividade no mundo material é guiada racionalmente por essa Ideia, através de uma "extensão" da ideia presente nos seres pensantes que o autor chama de Espírito. Complicado, não?
Fica um pouco pior agora: a arte, na visão de Hegel, seria uma das maneiras pelas quais o Espírito é capaz de compreender tanto a si mesmo quanto a Ideia da qual ele é derivado (para efeitos de curiosidade, as outras duas formas de fazer isso são a religião e a filosofia). Ela expressaria essa auto-compreensão do espírito fabricando objetos que tem como fim único esse entendimento de si mesmo, efetivamente expressando de maneira sensorial (audição, visão, tato) toda a liberdade do Espírito. A essa liberdade do Espírito, expressada de maneiras que podemos apreender através dos sentidos, Hegel dá o nome de beleza.
Para Hegel, a verdadeira arte possui esse único propósito - a criação dessa beleza, na qual é possível perceber, através dos sentidos, a liberdade do Espírito. Não há a famosíssima e vazia "arte pela arte", ou a arte revolucionária dos marxistas da teoria crítica, nem mesmo a arte como mera decoração de ambiente - a arte existe com um único propósito: possibilitar o entendimento de nós mesmos, e a expressão de si próprio da maneira mais livre (e, portanto, bela) possível.
Agora que já temos uma definição de arte, podemos tentar descobrir o que são as tais seis formas de arte. Mas isso fica pra próxima postagem - esta já ficou excessivamente longa. Até lá!
5 palpites:
Só um questionamento. Quando você opõe as concepções da teoria crítica e de hegel, parece óbvio devido á matriz distinta de ambos. Mas me pergunto se a arte revolucionária, aquela que contem em si aspectos de um contexto histórico, também não chega ao mesmo objetivo do "entendimento de nós mesmos". Também me apetece essa ideia do belo como arte, ou então Deus como inspiração artística. Abraços!
Então Thiagão, é que a teoria crítica coloca esse diagnóstico enquanto apontamento para a crítica da sociedade e da ideologia vigente, enquanto Hegel tem um viés (muito) mais positivista, concedendo à arte um papel central na evolução da humanidade - é a compreensão social que necessariamente caminha em direção à evolução, independente de crítica.
Diria que são duas maneiras distintas de conhecer as coisas através da arte - ela se aproximam nessa descoberta, mas os rumos e finalidades delas são bem diferentes.
Apesar da teoria crítica se colocar enquanto crítica da sociedade e da ideologia vigente, ela não se põe enquanto transformadora da realidade social posta, não? Há maneiras de pensar a arte na sua possibilidade revolucionária de liberação da sociedade das amarras do capital?
Beijos
Ótima resposta Mekaru. Então Fábio, eu acho que aí, temos distintas respostas para essa pergunta, dentro da própria teoria crítica..Acho que neste sentido, o posicionamento de Benjamin e de Adorno e Horkheimer, por exemplo são bem diferentes...Ainda fica mais complicado se pensarmos como fazer com que transformação social seja anterior a arte, que de certa forma, no marxismo mais simplista, seria uma representação dessas relações que devem ser superadas. É um debate bem legal de se fazer, tenho um trabalho sobre isso, comparando Benjamin e Adorno ;)
Bom, sem entrar na discussão (outro que me vem na memória é o Marcuse, mas nem sei o que dizer. Thi?), adorei o texto, me senti entendendo Hegel, Mekaru. Fico no aguardo da sequência, das próximas postagens!!! Há alguma referência direta, ou tudo o que foi dito agora se encontra disperso em algumas obras? Ah, já sinto saudades do "Mekaru versão Acid Life", mas tudo bem, está ótimo assim, num ph7!
Abração
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