quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Memórias De Tempos Que Nunca Vieram - FINAL

. . Por Fábio Accardo, com 0 comentários


(final)

(ler antes parte primeira e segunda)



Da mesma forma que nós mais velhos, as crianças e os jovens começaram a frequentar os estabelecimentos de aprendizagem, onde passariam uma parte da vida aprendendo o novo modo de ser. Adaptação. Aprendiam as duas coisas mais importantes do novo padrão: a não existência da propriedade privada e a prevalência do interesse coletivo sobre o individual. Eu entendia que tudo deveria se assim para não haver disputas sobre tudo e todos. Concordava. Adorava. Porém, nem tudo seriam flores. O aprendizado deveria ser estendido à todos, pois sem isso nenhuma igualdade se sustentaria e poucos se tornariam privilegiados. E não só o aprendizado social foi preciso para garantir a comunidade em equilíbrio. Teríamos que nos organizar para coordenar a vida em comunidade. Assim, fomos submetidos a participar ativamente da organização da comunidade. Tínhamos que opinar, escolher e fazer as coisas acontecerem. Pude me sentir, assim, parte de um todo.



Mas talvez a mudança mais drástica aconteceu na produção alimentícia. Qualquer tipo antigo de produção foi abolido. E mesmo o caráter dos alimentos se modificou. Não mais teríamos que engolir as velhas cápsulas de alimentos. Os alimentos eram naturais. E o trabalho deveria ser privilégio de todos, assim como a riqueza dele produzida. Com todos trabalhando, a produção seria maior e sobraria um maior tempo para todos. Tempo utilizado para outras faculdades do prazer e da felicidade. Eu também trabalhava. Como todos. Sentia-me útil para o todo. Até quando foi preciso.



A mudança na produção foi seguida por outras. Eu constituíra uma ordem familiar. Morava com minha mulher e meus filhos numa casa. Contudo, todas as casas eram iguais e nossas roupas também. Não fazia muita diferença. Existiam até casais que eram iguais! Resultado dos velhos tempos. E os velhos tempos chegaram. Não aqueles dos anos passados. Mas as pessoas começaram a avançar suas idades. Não eram mais descartados numa certa idade. E, talvez, por tudo isso foram precisos centros de saúde. Cuidavam dos velhos e dos doentes. Sim. Existiam doentes e as pessoas se propunham a cuidar deles.



E os anos se sucederam um a um. A sociedade estava equilibrada. Tinha conseguido sua estabilidade. Todos pareciam iguais. Mas algo não estava certo. Sentíamos algo ruim. A felicidade era tanta que esses sentimentos não nos aborrecia. Eu era feliz e também não pude fazer nada.



Hoje não me lembro como tudo começara. Passados 53 anos desde a guerra contra os de cima, vivo hoje aqui, observando mais um ciclo de mudança. O novo desenvolvimento da tecnologia é ainda mais ameaçador. Mais violento. Mais rápido. Sem barreiras. Sem tempo. O nosso equilíbrio social fora desmanchado. Não conseguiram deter esse novo desenvolvimento. A racionalidade permanecera intrínseca. Não se modificou. E agora não se sabia para onde tudo iria. Voltaríamos para a velha clivagem? Ou algo seria diferente? Será que esses anos vividos no novo padrão faria as pessoas pensarem diferente? Ou a vida era simplesmente um ciclo: uma vez como tragédia e outra como farsa? E depois tudo de novo? Estou velho e não sei bem o que pensar. Preciso ir.


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