quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Memórias De Tempos Que Nunca Vieram - Parte Segunda

. . Por Fábio Accardo, com 0 comentários


(parte segunda)
(ler antes a parte primeira aqui)


O tempo era esse. As notícias circulavam. Vivíamos um tempo de repentina paz entre as tribos. Todos pareciam estar cooperar. Ajudavam-se. Eu não entendia muita coisa, mas colaborava com tudo aquilo. Eu ainda achava que alguma coisa deveria ser feita. E assim foi. Não demorou muito a acontecer e a guerra dos de cima conta os de baixo começara, sem prévio término.

Claramente éramos inferiores à eles, materialmente, tecnologicamente, e em número. Eles tinham seus clones. Nós, somente nós. Mas tínhamos uma vantagem: conhecíamos nosso território; eles nunca ouviram falar de nós. Além de tudo, conhecíamos, de certa forma, seu sistema e seus cidadãos. Nós éramos imprevisíveis. Guerrilhávamos juntos. Unidos. Apesar de tudo, eu só torcia para não morrer, não ser eliminado. Não entendia como podia chegar ao fim tudo aquilo depois de começado. Eu tinha lido pouco. Não conhecia tudo. Mas tinha esperanças que o fim ia chegar. Sentíamos. Tempos mais breves estavam por vir.

A guerra continuou por tempos a fio. A chuva e a escuridão tornaram-se mais abundantes. Tórridas. O ritmo da guerra me afligia. Não parava. Era como o mundo deles, o tempo não parava. Contudo, sentíamos algo diferente. E tudo aconteceu muito rápido. Num dia a chuva parou. Noutro o céu clareou. Pela primeira vez eu via o fim daquelas enormes pilastras de concreto e ferro. Eram verdadeiramente os de cima. Aquela visão me maravilhou. Nunca vira tamanha luminosidade. Como nos livros: um círculo luminoso que nos aquecia. Aquela visão me apeteceu e me cegou. Dos minutos seguintes à tudo aquilo só me lembro do som dos últimos tiros vindos de cima e o grito caloroso dos de baixo.

Mas nada muda assim tão de repente. As transformações demoram realmente para tomar efeito. A população de cima enfim desceu. Um primeiro contato. Estranhamento. Porém, tudo lentamente foi se encaixando. A produção de cima cessara. Os estoques de cápsulas de alimentação dera para o tempo necessário. Os cidadãos de cima podiam se sentir livres. Não sabiam o que era isso. Estavam perdidos. Algumas decisões foram tomadas.

O mundo habitado tinha acabado por se restringir à essas cidades altamente verticalizadas, contudo, também com alta densidade populacional. Existiam poucas delas no mapa. Os citadinos que não se adaptaram passaram a viver sob essas cidades, no chão. Éramos nós. Foi assim que houve a divisão entre os de cima e os de baixo. Isso pelo menos para nós. As novas gerações que se sucederam no mundo de lá nem mais sabiam da nossa existência. E todo o mundo habitado se restringiu à essas poucas cidades. O resto do mundo ficou sem utilização. Eu não conhecia o resto do mundo, somente encontrava relatos nos livros caídos. Agora o que se via era uma migração de toda a população para essas áreas desabitadas.

As multidões foram divididas em grupos de milhares de homens, organizados em comunidades que se auto-governavam. Esses grupos saíram em romaria à procura desses antigos espaços desabitados. Cidades degradadas onde poderiam recomeçar um novo modo de vida. A ideia era modificar tanto o modo de vida deles, como o nosso. Eu estava muito animado com tudo isso. Tempos bons sempre vem. Nunca demoram a passar.

A adaptação, naquele tempo, não foi fácil. As cidades, primeiro tiveram de sofrer reformas: sanitárias, habitacionais, nas vias de acesso. Todos ajudavam. Para mim a vida tinha recomeçado. Os dias se passavam e os mais velhos tinham palestras sobre o novo. Aprendíamos que depois de tudo reformado todos seríamos iguais, uns aos outros. O engraçado é que existiam alguns que eram mesmo iguais, no sentido literal. Nos divertíamos. Mas o sentido era outro. As diferenças de castas sumiriam. A clivagem inicial desaparecia. Não existiria os de baixo e os de cima. Formávamos uma coisa só. Aprendíamos que tudo aquilo fora causado a partir de uma coisa chamada propriedade privada. Um conceito que me lembro ter lido alguma vezes, mas certamente não compreendia bem. Diziam ser ela a essência das mazelas do homem. Produzia a desigualdades entre todos.

(continua)

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