Passei os últimos quatro meses, desde que me mudei, tentando conquistar a amizade de Marlene, que faz faxina a cada duas semanas na casa onde vivo. Marlene geralmente chega pela manhã, no horário em que esquento a água, separo o filtro, preparo o café. Eu, que sou um cara muito legal, sabe, sempre puxo assunto e falo bastante com ela. Porém, durante todos esses meses, carregava a sensação de que eu conversava mais com ela do que ela conversava comigo. As palavras que ela me dirigia quase sempre se referiam às outras pessoas da casa, ou que já moraram aqui, ou às pessoas de outras casas em que ela também trabalha. Respondendo como quem não quer papo, nesses momentos, Marlene sempre fora muito evasiva. As outras pessoas na minha casa, pelo que reparo, também pouco conversam com ela. Marlene ainda muitas vezes trocava o meu nome, num dia eu era Bruno, noutro Lucas, quando não Igor, enfim, jamais Hugo.
Marlene tem outro serviço na parte da tarde, e tudo que eu consegui saber sobre isso, durante esses meses, é que é um trabalho de que ela não gosta, mas do qual precisa. Eu acreditava, então, que as faxinas que ela faz somente complementavam a renda mensal.
Todas as vezes, ela chegava em casa enquanto eu preparava o café e o colocava na garrafa térmica. Oferecia-o a Marlene, todas as vezes, e deixava a garrafa na cozinha. Ela nunca bebeu do café. Todas as vezes, nessas manhãs, eu lhe ofereci pães, bolachas, frutas, o que tivesse para comer. Ela nunca aceitou nada, todas as vezes. Todas as vezes, quando eu saía pela manhã, ela reclamava de sua própria vida apressada, dos muitos trabalhos e horários para cumprir, e eu nunca soube o que responder.
Todas as vezes, menos hoje.
Hoje, preparei o café somente na minha xícara. A única coisa engarrafada era minha gentileza, o bom dia, o tudo bem, o a senhora precisa de alguma coisa. Hoje, ela perguntou onde é que estava o café. Ela não disse que queria, mas viu que eu havia feito só pra mim. Hoje, ela disse que estava com fome e me pediu bolachas. Hoje, eu não queria conversa, mesmo assim lhe dei as bolachas, claro. Hoje, Marlene não trocou o meu nome, apenas perguntou como é mesmo que eu me chamo. Hoje, quando eu saía de casa, ela me disse que preferiria vir aos domingos, porque aos domingos tinha todo o dia. Eu disse que achava ruim pra ela, afinal era domingo e os domingos são sagrados ao ócio despreocupado no mundo em que vivo. Mas eu não lhe disse isso, falei apenas que poderíamos conversar, se ela quisesse continuar com a gente... Ela interrompeu, respondeu que sim... Queria continuar, oras, e repetiu que prefere muito os domingos.
Diante do meu silêncio, hoje, Marlene, timidamente, como quem abaixa a voz para dar motivos, insistiu que aos domingos era muito melhor. Ao completar a frase se justificando, soaram, no quadrinho da minha imaginação pobre, violinos e trombones. Continuei sem saber o que dizer, ainda que minha resposta automática me viesse. Para Marlene, era muito melhor trabalhar aos domingos porque ela não tem marido. “Não tenho marido mesmo”, ela disse, de lado, em cicio, virando o rosto e levantando os ombros, envergonhada. “Que ótimo, dona Marlene!”, pensei minha resposta pronta. Era evidente, entretanto, que para dona Marlene não se tratava de sarcasmo como o meu.
Comecei a imaginar, hoje, que Marlene não trabalha, nunca trabalhou. Marlene ocupa as horas todos os dias para não se sentir sozinha.
Tchau tchau, bom dia, foi o que eu lhe disse: como todas as vezes, quando eu saía pela manhã, hoje eu também não tive resposta. Fui logo pra rua, procurei um punkzinho para os ouvidos para não imaginar rasteiramente um solo de sax. Quando me perguntei em que Marlene e eu éramos diferentes, percebi que qualquer pieguice não me traria respostas. Optei pelo barulho do trânsito, por fim.
Marlene tem outro serviço na parte da tarde, e tudo que eu consegui saber sobre isso, durante esses meses, é que é um trabalho de que ela não gosta, mas do qual precisa. Eu acreditava, então, que as faxinas que ela faz somente complementavam a renda mensal.
Todas as vezes, ela chegava em casa enquanto eu preparava o café e o colocava na garrafa térmica. Oferecia-o a Marlene, todas as vezes, e deixava a garrafa na cozinha. Ela nunca bebeu do café. Todas as vezes, nessas manhãs, eu lhe ofereci pães, bolachas, frutas, o que tivesse para comer. Ela nunca aceitou nada, todas as vezes. Todas as vezes, quando eu saía pela manhã, ela reclamava de sua própria vida apressada, dos muitos trabalhos e horários para cumprir, e eu nunca soube o que responder.
Todas as vezes, menos hoje.
Hoje, preparei o café somente na minha xícara. A única coisa engarrafada era minha gentileza, o bom dia, o tudo bem, o a senhora precisa de alguma coisa. Hoje, ela perguntou onde é que estava o café. Ela não disse que queria, mas viu que eu havia feito só pra mim. Hoje, ela disse que estava com fome e me pediu bolachas. Hoje, eu não queria conversa, mesmo assim lhe dei as bolachas, claro. Hoje, Marlene não trocou o meu nome, apenas perguntou como é mesmo que eu me chamo. Hoje, quando eu saía de casa, ela me disse que preferiria vir aos domingos, porque aos domingos tinha todo o dia. Eu disse que achava ruim pra ela, afinal era domingo e os domingos são sagrados ao ócio despreocupado no mundo em que vivo. Mas eu não lhe disse isso, falei apenas que poderíamos conversar, se ela quisesse continuar com a gente... Ela interrompeu, respondeu que sim... Queria continuar, oras, e repetiu que prefere muito os domingos.
Diante do meu silêncio, hoje, Marlene, timidamente, como quem abaixa a voz para dar motivos, insistiu que aos domingos era muito melhor. Ao completar a frase se justificando, soaram, no quadrinho da minha imaginação pobre, violinos e trombones. Continuei sem saber o que dizer, ainda que minha resposta automática me viesse. Para Marlene, era muito melhor trabalhar aos domingos porque ela não tem marido. “Não tenho marido mesmo”, ela disse, de lado, em cicio, virando o rosto e levantando os ombros, envergonhada. “Que ótimo, dona Marlene!”, pensei minha resposta pronta. Era evidente, entretanto, que para dona Marlene não se tratava de sarcasmo como o meu.
Comecei a imaginar, hoje, que Marlene não trabalha, nunca trabalhou. Marlene ocupa as horas todos os dias para não se sentir sozinha.
Tchau tchau, bom dia, foi o que eu lhe disse: como todas as vezes, quando eu saía pela manhã, hoje eu também não tive resposta. Fui logo pra rua, procurei um punkzinho para os ouvidos para não imaginar rasteiramente um solo de sax. Quando me perguntei em que Marlene e eu éramos diferentes, percebi que qualquer pieguice não me traria respostas. Optei pelo barulho do trânsito, por fim.
“O autor deste romance se renova cada vez que pega a pena; a Eterna ensinou-lhe assim. Procede como as chaleirinhas de água postas para esquentar que aprendem de novo a apitar cada vez que as põem no fogo;
notas diminuídas saltam com grande intervalo depois de um longo silêncio e um tímido apito longo, e no fim de novo o tema.
Assim eu acabo de me lembrar de falar do “guarda-roupinha” do Presidente e de suas corridas para guardar-se nele cada vez que algo não lhe agrada, mas apenas em seus colóquios e relações com a Eterna, quando humilde e triste mas sem irritação, ainda com mais amor, se encaminha para o seu canto.
É absolutamente uma criança sempre para seguir a Eterna segurando sua saia, ou para se afastar dela e se trancar no guarda-roupinha.”
É absolutamente uma criança sempre para seguir a Eterna segurando sua saia, ou para se afastar dela e se trancar no guarda-roupinha.”
(Prólogo da chaleirinha e do guarda-roupinha. Macedônio Fernández, Museu do Romance da Eterna)
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