Foi há algum tempo, me lembro bem. A estrutura de nossa casa era velha e, nos meus dezessete anos, foi uma das poucas vezes em que vi algum brilho no olho de meu pai.
- Vamos reformar a casa! Coisa rápida, dois ou três meses. Aumentar o quarto seu e de sua irmã, colocar um barzinho na sala e arrumar toda a cozinha. Se tudo der certo, teremos ainda uma garagem para nosso carro parar de dormir no sereno.
Não havia como não gostar daquele ímpeto, e logo nos mudamos, provisoriamente, para um apartamentinho, apertado, mas suficiente. Foram exatas três semanas passadas, quando vi meu pai colocar whisky em seu copo e, eu já sabia, não era bom sinal. Ele estava quieto quando minha mãe chegou e perguntou o que havia acontecido.
- Fui demitido.
A frase me fez sentir um frio na barriga, raro, já devia ter sentido algo semelhante em alguma bronca, mas não com aquela intensidade, sabia que meu pai falava sério. Teríamos que nos apressar para mudar para a minúscula casa de minha avó materna até que a reforma fosse acabada.
Queria ajudar de alguma maneira e, com a mesma facilidade que adulto inventa problema, jovem inventa solução. Decidi que moraria na república de um pessoal da faculdade com quem eu jogava bola vez ou outra, tudo que um jovem poderia almejar. Meu pai hesitou, mas depois de se culpar pelo fracasso financeiro da família, não quis podar meu sorriso e aceitou que eu passasse o mês por lá.
E foi lá mesmo que tive grandes momentos, o primeiro porre, a primeira noite de sexo, mas, por incrível que pareça, nada me ensinou tanto quanto um quiproquó que tive com a vizinha da nossa república, dona Zilda.
A velha devia ter uns setenta, e era conhecida por ter grande influência na pequena cidade, sendo irmã do delegado, prima do prefeito e viúva de Ernesto Rosário, um grande magnata local. Ela era linha dura, não tolerava barulho após as oito e já tinha pedido pro seu irmão mandar a polícia umas três vezes para nossa casa por perturbação da ordem. Pra piorar, a velha morava sozinha, ou melhor, com seu poodle, Fifó, um xodó e talvez a única razão de viver da ranzinza.
Nós, por outro lado, tínhamos um grande vira-lata preto, Brutus, que latia alto pra burro, principalmente quando o maldito poodle insistia em passar bem pertinho do nosso portão, como quem diz “estou passeando enquanto você está preso”.
Um dia voltei da casa de minha vó e todos meus amigos estavam em frente à república, chamando Brutus desesperadamente. Ele havia fugido durante a dedetização da casa. “Vamos torcer para ele não atacar alguma criança que estiver passando” comentei antes de sair correndo à sua procura.
Foram dois quarteirões pra cima, em um terreno baldio, que vi uma cena aterrorizante. Era Brutus, viril, jogando o Fifó da vizinha para cima e para baixo, mordendo-o com determinação como se fosse uma bolinha de pelos. O poodle branco já estava marrom de terra e vermelho de sangue quando apartei o vira-lata. Levei o cachorrinho junto com Brutus pra república, escondendo o cadáver embaixo de minha camiseta. De longe, meus amigos comemoravam aliviados a chegada de Brutus, quando perceberam que eu estava sério e queria falar com todos no quintal dos fundos.
Com os moradores reunidos, respirei fundo e tirei o pequeno cachorrinho debaixo de minha blusa, destruído. Por um minuto ninguém teve palavras, considerei um minuto de silêncio. Iniciou-se, então, um debate. Parte da república defendia que deveríamos enterrar o bicho e fingir que nada aconteceu. Outra parte, da qual me incluo, achava errado não contar para a velha que seu único companheiro havia morrido.
Estava empatado quando Pablo, o voto de minerva, decidiu em um desses momentos raros de inspiração na vida de um homem:
-Vamos lavá-lo e jogá-lo de volta na casa da velha. Parecerá uma morte natural.
O pior foi que todos toparam. Como eu já havia cumprido o dever de achar o cachorro, resolvi tirar um cochilo enquanto os rapazes começavam o trabalho de limpeza que incluía desde detergente pra limpar a terra até talco nas mordidas para recompor o poodle.
Acordei umas duas horas depois e, quando olhei no canto da sala, lá estava Fifó, limpinho. Confesso que se eu não tivesse visto a inesquecível cena de Brutus esfolando o pequeno, poderia jurar que ele havia morrido de febre ou qualquer coisa que não sangra.
Esperamos a velha sair para igreja - devia estar desesperada, rezando pro cãozinho aparecer - e lá o jogamos, por cima do muro. O coitado caiu estatelado, a farsa estava pronta.
Ficamos esperando a noite, ansiosos para ver a reação da velha, um pouco orgulhosos de nossa decisão em não omitir a morte de seu companheiro. Ela simplesmente enterrou seu companheiro, e nada mais. Engraçado foi que passaram um, dois, três dias e nenhum sinal da antipática senhora. Fazia uma semana e nada da velha se manifestar, sequer um resmungo ou um questionamento sobre a morte misteriosa. Muito estranho, havia algo de mal resolvido no ar e aquilo começou a nos incomodar, nos sentíamos um pouco culpados e o ambiente na casa estava sempre pesado.
No décimo dia após o assassinato, enquanto almoçávamos, decidíamos se falaríamos ou não com a velha. Foi quando a campainha tocou e lá estava ela. Tremíamos a perna e tentávamos esconder com um sorriso amarelo nosso nervosismo. Como eu estava de favor na casa, criei coragem e resolvi atendê-la.
- Oi dona Zilda, tudo bem?
- Tudo sim.
Ficamos imersos em um silêncio meio constrangedor.
- Quer almoçar? – sabia que a velha não aceitaria.
- Não, não.
Mais uma pausa longa que começou a me incomodar.
- Posso ajudar em alguma coisa?
-Bom.. Não sei muito por onde começar.. É que... Fifó morreu.
Engoli seco e todos os rapazes na cozinha não conseguiram evitar olhar em nossa direção para ouvir o rumo da conversa.
- Mo...Morreu, foi? Poxa, sinto muito, muito mesmo...
- Pois é, mas não é exatamente esse o problema.
- Não, é?
-Não.
-E o que é então?
-É que algo estranho aconteceu...
-Es..Estranho? O que foi?
- Olha, Fifó morreu há onze dias, e, com muita dor, o enterrei em um terreno baldio dois quarteirões pra cima. Já estava me conformando com a perda após muito rezar na igreja, zelando por sua alma. Mas eis que chego em casa e lá está ele, limpinho, em minha garagem, como se nada tivesse acontecido!
Alguns talheres caíram, um dos rapazes engasgou, o outro derrubou um copo e eu, sem reação na frente de dona Zilda, só consegui dizer:
- Que milagre!
- Foi mesmo... A única explicação... Um milagre!
A velha abriu um sorriso satisfeito e se foi, gastaria sua tarde contando para toda a vizinhança a dádiva recebida.
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PS: Baseado em fatos reais, mas, juro, não me lembro de quem
3 palpites:
Thiago Aoki, o mais novo cronista da saudosa Lins. Carregando o fardo de Mário e Antonio Prata...
hahahaha...e "cronizando" piadas velhas!! farsante!kkk
Mas ficou muito melhor assim!
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