Uma vez, ainda no colégio, questionando a imposição da leitura dos livros clássicos no ensino médio, perguntei ao professor de literatura qual seria o autor contemporâneo, vivo, que a disciplina estudaria daqui a cinquenta anos. Ele me respondeu que, de certo mesmo, apenas Gabriel García Marquéz e José Saramago. Ainda não estava preparado pros "100 anos de solidão" então peguei o único título que havia de Saramago na pequena biblioteca: "Evangelho segundo Jesus Cristo". O título não me entusiasmou, mas quando comecei a lê-lo, meio que para não dizer que não havia tentado, fiquei pasmo diante da primeira cena, o sexo entre José e Maria. Ainda incomodado com a linguagem que ignora travessões e abusa de vírgulas, só depois de dez, quinze páginas consegui o ritmo normal de leitura. Posteriormente, em uma entrevista ao Roda Viva, o autor alertaira aos que o condenava por tal hábito: bastaria ler seu texto em voz alta para conseguir entender sua linguagem. Mais que isso, jamais permitiu que se traduzisse seus livros em países de origem portuguesa.
A morte de Saramago, como esperado, tem causado uma polarização banal entre adeptos e críticos. Simpatizantes de Cuba e Simpatizantes da Veja. Ateus e criacionistas. Comunistas e Neoliberais. Defensores e críticos da Nova Reforma Ortográfica. Saramaguistas e Antunistas. Porém, para mim, o que mais me marca e me atrai em Saramago não é nenhum de seus posicionamento diante de tais polêmicas. O que mais me marca em Saramago são os disparos a queima roupa cujo gatilho suas palavras puxavam mirando o senso-comum. É a maestria com que ele pegava o que estava dado e questionava, seja em romance ou discursos. Saramago, para mim, eternizar-se-á como um provocador, que desfigurava cada certeza, cada normalidade. Tudo aquilo que quase em consenso aprovamos - tal qual democracia, utopia, Deus, linguagem - é passível de questionamento. Segui à risca a máxima de Nelson Rodrigues: toda a unanimidade é burra. E diante da veemência que pulsava de cada frase, pouco importa se comunista ou reacionário, realistas ou fantásticos, ateus ou fervorosos, foram Nelson Rodrigues e Saramago.
Em um dos livros do português, "O Homem Duplicado", o personagem principal trava diálogos densos com o "senso-comum" e deste conflito resulta suas ações. É exatamente isso que sinto quando leio ou ouço Saramago, uma batalha mórbida entre minhas crenças e o novo. Talvez o maior exemplo desse arranca rabo tenha sido quando entrei na internet para ler como tinha sido o debate sobre "utopia e realidade", entre José Saramago e Eduardo Galeano, no Fórum Social Mundial de 2005. Esperei o conforto, mas o que o trauma não me deixou apagar da memória em seu discurso foi a leitura das seguintes linhas:
“Se eu pudesse riscava a palavra utopia dos dicionários, mas claro não posso, não devo e nem o faria. Eu penso que nós, e há que reconhecer que os jovens são muito sensíveis à idéia da utopia, mas como toda a gente sabe, digamos, a utopia é algum coisa que não se sabe onde está. O próprio termo está a dizê- lo: U e topos. Portanto, algo que não se sabe onde está. Que se supõe que existe mas não se sabe onde está. Repara: há uma contradição interna no conceito de utopia, sobretudo no uso que se faz dele como algo que, de repente, toda a gente diz ou diz-se muitas vezes, todos nós precisamos de uma utopia. Eu acho que não precisamos de uma utopia.
Então, quando digo que riscaria a palavra utopia e (....) se eu tivesse que substituí-la, então, enfim, substituí-lo-ía por uma palavra que já existe: esta palavra é simplesmente amanhã. É para amanhã o trabalho que hoje se faz. Portanto, coloquemos aquilo que é utopia, aquilo que é o conceito, não o coloquemos em lugar nenhum. Coloquemos no amanhã e no aqui. Porque o amanhã é a única utopia".
Diametralmente distinto do que os efusivos utopistas haviam dito até então. Segundo relatos, alguns na plateia aplaudiram muito, mas a maioria ficou em silêncio, daqueles que sentenciam a dúvida. Há quem diga que os próprios debatedores não se furtaram a admirá-lo diante da fala. Quando se trata de Saramago, é melhor não esperar carinho, e por essa credibilidade, acredito em sua lágrima emocionada ao assistir pela primeira vez o longa de Fernando Meirelles, tão criticado por amantes das formas e cegos do conteúdo.
Saramago se foi, e aqui me lembro da fala da personagem principal do magnífico "Ensaio sobre a cegueira". Com a cidade toda cega, ela era a única que enxergava. Eis que, depois de tantas batalhas e esforços de se viver em um mundo sem lei ou proibições, a população volta a enxergar. A personagem está reflexiva, a olhar de seu apartamento a comemoração e euforia de todos que voltavam a enxergar. Em resposta ao espanto do marido diante de sua frieza perante os acontecimentos, a personagem explica, em um dos mais belos trechos do livro: “Queres que te diga o que penso (...) Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem”.
Saramago se foi e, se me sinto reflexivo, é porque penso que se, através de algum milagre ele ressucitasse, talvez pouco se animaria diante do mundo dos vivos, e, olhando para nossa gente, ele diria em tom sereno e reflexivo: "estamos todos mortos, mortos que vivem, mortos que, vivendo, não vivem".
A morte de Saramago, como esperado, tem causado uma polarização banal entre adeptos e críticos. Simpatizantes de Cuba e Simpatizantes da Veja. Ateus e criacionistas. Comunistas e Neoliberais. Defensores e críticos da Nova Reforma Ortográfica. Saramaguistas e Antunistas. Porém, para mim, o que mais me marca e me atrai em Saramago não é nenhum de seus posicionamento diante de tais polêmicas. O que mais me marca em Saramago são os disparos a queima roupa cujo gatilho suas palavras puxavam mirando o senso-comum. É a maestria com que ele pegava o que estava dado e questionava, seja em romance ou discursos. Saramago, para mim, eternizar-se-á como um provocador, que desfigurava cada certeza, cada normalidade. Tudo aquilo que quase em consenso aprovamos - tal qual democracia, utopia, Deus, linguagem - é passível de questionamento. Segui à risca a máxima de Nelson Rodrigues: toda a unanimidade é burra. E diante da veemência que pulsava de cada frase, pouco importa se comunista ou reacionário, realistas ou fantásticos, ateus ou fervorosos, foram Nelson Rodrigues e Saramago.
Em um dos livros do português, "O Homem Duplicado", o personagem principal trava diálogos densos com o "senso-comum" e deste conflito resulta suas ações. É exatamente isso que sinto quando leio ou ouço Saramago, uma batalha mórbida entre minhas crenças e o novo. Talvez o maior exemplo desse arranca rabo tenha sido quando entrei na internet para ler como tinha sido o debate sobre "utopia e realidade", entre José Saramago e Eduardo Galeano, no Fórum Social Mundial de 2005. Esperei o conforto, mas o que o trauma não me deixou apagar da memória em seu discurso foi a leitura das seguintes linhas:
“Se eu pudesse riscava a palavra utopia dos dicionários, mas claro não posso, não devo e nem o faria. Eu penso que nós, e há que reconhecer que os jovens são muito sensíveis à idéia da utopia, mas como toda a gente sabe, digamos, a utopia é algum coisa que não se sabe onde está. O próprio termo está a dizê- lo: U e topos. Portanto, algo que não se sabe onde está. Que se supõe que existe mas não se sabe onde está. Repara: há uma contradição interna no conceito de utopia, sobretudo no uso que se faz dele como algo que, de repente, toda a gente diz ou diz-se muitas vezes, todos nós precisamos de uma utopia. Eu acho que não precisamos de uma utopia.
Então, quando digo que riscaria a palavra utopia e (....) se eu tivesse que substituí-la, então, enfim, substituí-lo-ía por uma palavra que já existe: esta palavra é simplesmente amanhã. É para amanhã o trabalho que hoje se faz. Portanto, coloquemos aquilo que é utopia, aquilo que é o conceito, não o coloquemos em lugar nenhum. Coloquemos no amanhã e no aqui. Porque o amanhã é a única utopia".
Diametralmente distinto do que os efusivos utopistas haviam dito até então. Segundo relatos, alguns na plateia aplaudiram muito, mas a maioria ficou em silêncio, daqueles que sentenciam a dúvida. Há quem diga que os próprios debatedores não se furtaram a admirá-lo diante da fala. Quando se trata de Saramago, é melhor não esperar carinho, e por essa credibilidade, acredito em sua lágrima emocionada ao assistir pela primeira vez o longa de Fernando Meirelles, tão criticado por amantes das formas e cegos do conteúdo.
Saramago se foi, e aqui me lembro da fala da personagem principal do magnífico "Ensaio sobre a cegueira". Com a cidade toda cega, ela era a única que enxergava. Eis que, depois de tantas batalhas e esforços de se viver em um mundo sem lei ou proibições, a população volta a enxergar. A personagem está reflexiva, a olhar de seu apartamento a comemoração e euforia de todos que voltavam a enxergar. Em resposta ao espanto do marido diante de sua frieza perante os acontecimentos, a personagem explica, em um dos mais belos trechos do livro: “Queres que te diga o que penso (...) Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem”.
Saramago se foi e, se me sinto reflexivo, é porque penso que se, através de algum milagre ele ressucitasse, talvez pouco se animaria diante do mundo dos vivos, e, olhando para nossa gente, ele diria em tom sereno e reflexivo: "estamos todos mortos, mortos que vivem, mortos que, vivendo, não vivem".
2 palpites:
Thiago,
quando comecei a ler o Saramago, também tive a mesma dificuldade com a escrita, que passou logo. gostei bastante do que li, cegueira, lucidez e envangelho. o lance com o cristianismo sempre aparece e também quanto às burocracias com que encaramos o cotidiano, às vezes, lembrando Kafka, quem sabe, sem falar na crítica política feroz dele, o que pode ter lhe dado o Nobel, dizem alguns críticos, numa literatura muitas vezes, não só, mas sobretudo, de questionamentos sociais profundos. como no Ensaio Sobre a Cegueira, que li sem saber que pode ser visto como uma grande metáfora da globalização... via somente uma reflexão sobre as condições de nossas "relações diárias", mais face a face, muitas vezes abjeta, cruel, insensível, enfim, mas que depois continuou fazendo sentido se pensasse em termos de "relações políticas" e tudo o mais. como Saramago mesmo lembra na epígrafe do livro, é preciso mais do que apenas olhar, ou enxergar, e sim reparar.
mas, talvez, eu seja um Antunista, sei lá, apenas por preferência, aquela "insanidade" da existência humana nos devaneios da mente de um sujeito, como em Os Cus do Judas, me chamem mais a atenção. lembro de me aborrecer às vezes com Saramago, quando ele insistia em bancar o Hugo Chaves, ou o Fidel, ou sei lá mais quem, com discursos longos, sobre ONGs, por exemplo, quando era questionado justamente sobre "o olhar" tão caro de sua literatura, naquele filme/documentário Janela da Alma. não que ele não pudesse falar sobre ONGs, até deveria, mas me empolagava mais falando sobre "o olhar", quem sabe pelo cansaço que o outra temática me causava, enfim, sei lá.
Abraços
Confesso que conheço pouco de Saramago e após o seu post vou procurar algo mais a respeito do mesmo!
Quanto a Garcia Marques, realmente, esse vai ser lembrado ainda por muito tempo, talvez ao lado de Saramago.
Sobre a última frase, lembrou um pouco aquela do Oscar Wild (se não me engano) que fala que a maioria das pessoas não vivem, simplesmente existem (ou algo assim).
Abraços!
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